Insistimos em manter pendências afetivas: lembranças inúteis, amizades sem valor, objetos quebrados, casamentos partidos, medos aprendidos, mágoas estagnadas, coisas sem energia para serem mantidas por si mesmas.
Teimamos em dar vida a tudo como a uma marionete, reflexo nem sempre preciso de quem a manipula.
Relato pessoal de apego e desapego: Eu pequena, largava o corpo no colo do meu pai, folgadamente sentado em uma poltrona Bergère. Daquelas bem grandonas com espaldar alto e personalidade requintada.
Gatinha aninhada, ficava cutucando com a unha do dedo indicador esquerdo o tecido em tapeçaria estampada que recobria o enchimento. Dia após dia cutucava até o braço da poltrona rasgar. Quando alcançava a estrutura de madeira, sossegava. Lançava um olhar desafiador para o meu pai, que nunca me advertiu, apenas ria da minha persistência.
Minha mãe, na sequência dava uma bronca de estremecer meus tímpanos e chamava o tapeceiro para remendar o dano. Não me recordo quantas vezes consegui dilacerar o tecido mas recordo a expressão cúmplice do meu pai.
Meu pai foi morar com o Pai do Céu – palavras da minha mãe – antes dos meus 7 anos. Teve leucemia aos 42. Certeiros 3 meses éramos: mãe com 41 sem muito explicar, irmão com 1 ano sem falar e eu sem nada entender.
Lampejos na minha memória. Não fui ao enterro nem à missa. Minha mãe pensou me poupar. Pai sumiu, assim. Não vi. Até meus 18 tive essa situação pós-morte mal resolvida. Pouca idade para tanta numerologia. Muita terapia para preencher a falta do pai.
Tempo passa passatempo.
Cresci. Montei casa. Casei. Procriei.
Num dia talvez sem sol, minha mãe em um de seus ataques típicos de se livrar dos sentimentos através das coisas, deu a poltrona para o meu primo, primo irmão, mais irmão, sem nem mesmo cogitar se eu gostaria – e gostava na ocasião – de ficar com ela.
Junto com a poltrona, meu primo levou um rato morto desidratado prensado por baixo da almofada mofada. Só percebeu quando trocou o estofado fadado.
Tudo perde a graça a seu tempo. A poltrona foi parar na chácara dele em Araçariguama, interior de São Paulo.
Meu marido, arquiteto, fez uma reforma na chácara e um dia comentou comigo: Coitadinha, está tão abandonada!
Pedi de volta e recebi um não. “Não mesmo. Foi presente da tua mãe e eu gostava tanto do teu pai.” Mas o pai era meu, certo?
Tempo passa passatempo.
Num dia talvez de sol, meu primo sugere, honestamente nem sei para quem, que a poltrona deveria ficar comigo, afinal, ratos à parte, admitiu: o pai era meu.
Certeza eu sei, virou trambolho e ninguém queria mais sentar naquele trono de um rei deposto. Chego em casa cansada, meu marido inocente aponta algo.
Avisto de longe a Bèrgere. Visita inesperada me esperando na sala. Atrevidamente soberba.
A sala ficou amuada, silenciou, encolheu.
Foi uma catarse vislumbrar aquele fantasma. Não representava nada. Lembrança incômoda roubando meu espaço sem permissão. Chorei. Muito. De raiva. Raiva do meu pai que me deixou sem aviso.
Raiva da falta de respeito do meu primo com o tempo passado. Essa poltrona metida com nome francês? Nem reconheço mais como parte do aconchegante abraço paterno.
Dia seguinte, meu primo ao telefone, animado, pergunta:
– Está feliz?
– Não estou. Não tem mais espaço. Passou o tempo.
– Mas, Isa, você queria tanto, consigo te ver velhinha sentada nela com seus netinhos no colo.
– Marcos, eu lá tô pensando em netos? Veja bem, meus 1.60 vão ser engolidos por aquela imensidão. Tá, obrigada, vou ver o que faço.
Fiz. A Bergère não significava mais nada e nem remetia a tudo que era meu pai.
Meu marido se apaixonou pelo estilo da danada, pediu clemência em favor da pobrezinha. Chamei o tapeceiro para reformar. Catálogos e mais catálogos de tecidos. Não quero. Não gosto. Eu compro e te ligo. Não comprei nem liguei, arranjei um pretexto: o tapeceiro ainda não me ligou. Se eu não liguei e ele não liga para que apressar o serviço? Ligou. A senhora esqueceu da poltrona? Sim, seu Cícero, eu sei, então, sério, faz quase um ano que está na sua oficina? Na lata. Tem utilidade para o senhor? Pode ficar. Veste ela com um pano de rainha, o melhor que tiver, deixa como mostruário. Vai trazer sorte para o seu negócio. Ele ficou feliz. Eu, mais feliz ainda.
Juro! Sem cruzar os dedos. Desliguei o telefone e escutei:
“Essa menina cresceu” e o som do riso de meu pai satisfeito.
Tempo passa passatempo.
E as lembranças doces ainda passarinham no meu coração.
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Ciclo fechado. Agora entendo. Afeto e lembranças não carecem da matéria como apoio.