Convivendo

Um Triangulo perfeito

Imagem de paisagem urbana desfocada , com triângulos laranjas de luz.
Escrito por Marisa Pretti
Sonho só é sonho se da cabeça não sai. Acredito em moldar pensamentos e materializar. Nasci menina de apartamento e aos 10 anos fui morar com a minha mãe e irmão em uma casa de vila. Quatro lindas casinhas em São Paulo, no Itaim Bibi.

1, 2, 3, a nossa, e 4, a do meu primo.

A nossa, com fachada de tijolinhos aparentes e um canteiro abaixo do janelão de correr com vidros triangulares. Espaço pequeno, no entanto, perfeito para a minha mãe plantar uma diversidade de roseiras escandalosamente divinas.

Ao lado esquerdo da porta arredondada de entrada, um quadradinho delimitado pelos mesmos tijolinhos aparentes. Lá, a minha mãe enterrava o umbigo de algum recém-nascido, inclusive das minhas 3 filhas, junto ao pé de uma charmosa arvorezinha com folhagem vermelho escuro.

E nesses dias, menina, eu nem pensava em plantar nada além de bananeira.

Feito que nunca consegui, só dentro da água e sem marola.

Nem estrela nem bananeira, nunca tive aptidões olímpicas, quando muito cambalhota… E na cama!

Curiosa que sou, não mais menina, descobri por acaso o nome da arvorezinha: Leiteiro Vermelho. A ingestão das folhas causa intoxicação por causa do látex e provoca queimaduras na pele.

Triangulo

Nunca intoxicou nem queimou, apenas encantou. Generosa, sombreou a entrada da casa.

Taurina que sou, dizem os astros, caseira, gosto de estabilidade e muita terra para plantar.

A obsessão por uma casa maior, com terreno para esverdear o solo, seguiu até encontrar.

Há 17 anos, uma casa com bom preço, aguardando uma família grande e uma bela reforma, plasmou-se no bairro do Butantã.

Bom, eu acredito em forças poderosas reagentes ao nosso pensamento. Hoje, nós moramos nessa casa térrea, com 490 metros aquinhoados em um terreno plano.
Com um único degrau na entrada, ela é quase totalmente acessível, depois da reforma executada pelo arquiteto, marido. Vamos ao fundo, é o que interessa…

No fundo da casa, temos uma área de lazer para usar e contemplar em sintonia com o pulsar de um lar. E é lá no fundo que batia o coração da casa.

E você logo entenderá o porquê o verbo no passado.

Um coração verde foi plantado na área de laser sob o disfarce de uma Palmeira Triangular.

Triangulo

Com os seus talvez 1,5 metro de altura, trouxemos a mudinha viçosa do Ceasa, por sugestão de um cultivador japonês, um falso profeta que assegurou: não passa dos 3 metros.

Plantada em uma cama de grama, junto à parede amarela que intensifica em dourado quando nela toca o sol, a palmeirinha pisou tímida na terra, fincou raiz e, sem pressa, com vigor, apoderou-se do espaço.

Virou dona do pedaço de chão, tomou conta da casa, alegrou a vista das visitas que para ela faziam declarações de amor: “Ai, que linda essa palmeira! Me diz o nome que ela tem!”.

Triangular. Equilátera. Perfeita com as suas arestas e vértices.
 Gosto de todas as árvores que tenho em casa, mas a Triangular era a minha preferida. Novamente o tempo passado…

Participou de festas, churrascos, ouviu música alta e até mesmo o sertanejo brega do vizinho sem reclamar.

Aceitou sem queixas fingir que era poste para litros de xixis do nosso piá. Um labrador chocolate que o nome já entrega: gaúcho, bah, filho de mãe Prenda e pai Guri.

Confidente, curandeira e conselheira em minhas horas de angústia.

Eu olhava para a sua cabeleira lá no alto, percorria o seu corpo e baixava os meus olhos úmidos até as suas raízes. E sem pedir licença, enlaçava os meus braços apertando o seu tronco até a minha dor passar.

Quanto mais me unia a ela, mais sentia a sua seiva pulsando no tronco no mesmo ritmo do meu coração a vibrar. Tivemos longas conversas, eu e ela.

Dos máximos 3 metros profetizados pelo cultivador, alcançou quase 7 de altura.

As folhas eretas e arqueadas, em um tom verde-azul-acinzentado, só elas, alcançaram quase 3 metros de comprimento.

A Triangular agigantou-se, procurou se escorar na parede, espichou e desviou com delicadeza da beirada do telhado. Chegou pertinho do terraço, onde tem um tanto assim de plantas, e começou a se curvar.

E de lá, a gente admirava o grande leque de folhas longas, rasgadas e abertas. E, por meio delas, avistava o céu inteiro até onde os olhos pudessem alcançar.

Os mais racionais diziam: “Ih, essa palmeira vai fazer um estrago, está quase caindo, vai ter que arrancar!”.

Mudo eu, mas daqui ela não muda. Teimei. É aqui que ela vai ficar!

Em São Paulo, antes terra da garoa, hoje, a tempestade chega sem a gente esperar.

E foi em uma madrugada, dessas de raios e trovoadas, que a Triangular não resistiu.

Triangulo

Curvou a cervical com a majestosa coroa composta pelas pesadas folhas, ligada ao topo do tronco. Pesou, pesou, até se soltar.

E do quarto onde durmo, acordei com o baque forte. Fechei os olhos e voltei a dormir. Covarde. Não querendo acreditar.

No dia seguinte, vi o alto tronco ereto e firme de pé. E a coroa no chão.

Só depois de uma semana tive coragem de pedir ajuda para retirar o que sobrou da minha Triangular.

Forte que só, imensa! Do tamanho dos sonhos que eu imaginava concretizar.

Passou de planta para parente e de parente passou para antepassado.

O tronco? Vai ficar por lá, até quando ele quiser. Saio eu, mas ele não sai.

Pretendo enfeitar com orquídeas nessa primavera, homenagem à minha Triangular.

Obrigada pela lição de resiliência, minha amiga, obrigada por me escutar!


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Sobre o autor

Marisa Pretti

Amigo leitor...

Caro leitor...

Querido leitor...

Prefiro chamar você de Passageiro leitor.

Afinal, você está aqui de passagem como eu. Caminhando nesta Terra cheia de buracos e tanta água que haja braços fortes e pernas ligeiras para não se afogar.

Viver, a começar pelo ato de nascer, é para quem tem pacto fechado com a teimosia. O ar inflando os pulmões e o primeiro choro para que ninguém se engane: não estamos aqui só para sorrir, mas principalmente. Sim!

Sou mãe por vocação. Atriz por formação. Entusiasta por opção. Audiodescritora por paixão e profissão desde 2010.

Minha profissão, em uma breve descrição, se resume em traduzir imagens em palavras com o maior detalhamento possível para a pessoa com deficiência visual. Um recurso acessível também para idosos, disléxicos, pessoas com deficiência intelectual e para quem mais sentir necessidade dessa ferramenta assistiva. Simples e complicado assim. Trabalho com filmes, espetáculos de dança, teatro, vídeos, suportes empresariais, e o maior desafio foi levar acessibilidade visual ao Carnaval paulistano, desde 2017.

O mundo é visual, estímulos visuais são constantes! Por meio da audiodescrição qualquer produto pode ser traduzido em palavras.

Trabalhar com inclusão é estar atento ao outro, é ser um facilitador e igualar oportunidades.

Provavelmente foi esse gosto pelas letras encadeadas, mastigadas e saboreadas na língua como um demorado beijo que me trouxe até aqui.

Pretendo contribuir com minhas vivências e reflexões sem pretensão alguma, apenas para compartilhar alguns saberes. Uma leitura leve, um livre pensar, mas nem por isso descompromissado com a sua inteligência.

E porque creio na humanidade, na diversidade e na inclusão aceitei colaborar com o #EuSemFronteiras.

Abraços acessíveis!

OBRIGADA.

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