Bom, daí se eu forçar um pouquinho mais e quiser ir “passear” na casa da minha avó paterna, que faleceu quando eu tinha apenas 5 anos, basta eu sentir o cheiro do alho sendo refogado por volta das 6h da tarde, horário em que ela preparava o jantar, a partir disso dá para “ouvir” minha avó falando comigo.
Ainda na infância, talvez por volta dos 7 anos, o cheiro do bolo recém assado espalhado pela casa e a música do grupo ABBA ou, especificamente, a música Lady Laura do Roberto Carlos traz a cena de eu sentada no chão brincando enquanto minha mãe está a cuidar dos afazeres domésticos, sinto aquela atmosfera de cuidado, carinho e felicidade invadindo o meu coração e todo o meu ser.
O cheiro de ervas utilizadas para fazer infusões me faz lembrar de minha avó materna. Para todo mal que pudesse existir no universo das doenças infantis, desde uma dor de barriga até uma dor de garganta ou ouvido, ela curava a gente com os seus chás e colinho macio e quentinho. Hoje, quando alguém me apresenta algum matinho, eu levo a folhinha ao nariz, fecho os olhos e logo me transporto para aquele colo.
Essa minha avó materna sempre me levava para acompanhá-la nos chás da tarde na casa das suas comadres… E pensa em umas comadres que faziam quitutes divinos!? Havia uma mesa enorme, com vários tipos de bolos, bolachinhas delicadas e adornadas com algum açúcar ou canela que derretiam na boca, biscoitinhos de polvilhos crocantes, broas, entre outras delícias.
Antes de sair de casa, vovó dizia: “Se comporte, seja uma menina educada, não avance nas coisas sobre a mesa, é apenas para provar uma coisinha por vez…”.
Assim, eu obedecia a vovó, porque senão na próxima eu ficaria em casa. Mesmo diante daquela ostentação gastronômica, eu pegava uma bolachinha por vez, as comadres da vovó insistiam muito para que eu pegasse mais, porém, antes, eu olhava para a minha avó à espera de um sinal de permissão que ela fazia com o olhar. Quando eu já havia provado boa parte daquelas delícias, pedia licença para sair da mesa e ia brincar em algum cantinho que não atrapalhasse as animadas comadres conversando. Logo que me afastava um pouco, ouvia um comentário tipo: “Maria, que beleza da sua neta, que educação!”. Então, era isso o que a vovó desejava ouvir por meio do meu comportamento alimentar.
E assim seguiu a minha infância… Ora com o rocambole da tia, ou o pão caseiro de cebola da mãe, ou bolinho de chuva da avó materna, ou feijão da avó paterna, ou arroz temperado da outra tia, etc…
Me recordo de apenas uma situação desagradável que envolve comida, onde eu e o meu irmão brigamos por causa de uma sobremesa que a minha mãe fazia em todo Natal. Depois de muita discussão e disputa entre nós, onde, com certeza, esquentamos muito a cabeça do meu pai, ele nos obrigou a comer a travessa inteira. Era um doce bastante enjoativo, tanto é que cheguei a vomitar depois. Agora, nesse exato momento, quando eu me lembrei desse fato, o meu estômago deu uma revirada e a expressão de nojo veio ao meu semblante.
Depois de formada em Nutrição, no atendimento clínico, eu desenvolvi uma escuta diferenciada que ia além da anamnese ou do diário alimentar. Sempre quis compreender o comportamento daquele indivíduo sentado à minha frente, antes de fechar um diagnóstico baseado apenas em um julgamento raso e prematuro. Porque comida, para mim, significa mais do que uma contagem de calorias ou composição nutricional.
Certa vez, um jovem de 25 anos me procurou, ele queria mais uma vez tentar emagrecer. Segundo a anamnese colhida, ele sempre fora “gordinho”, desde a infância, e sempre fora privado de comer. Na casa dele, reunia-se com frequência muitas pessoas envolta de uma mesa farta, com muita variedade de massas e doces, típico da tradição italiana. Mas por ele estar sempre “gordinho”, a sua mãe o repreendia quando ele ia pegar algo para comer, dizendo: “Você está muito gordo, chega de comer!”.
Então, ele começou a comer escondido, não comia perto de ninguém, escondia a comida dentro do seu quarto e comia lá, sozinho e escondido. Esse moço me contou que os seus primos e primas não eram tão “gordinhos” quanto ele, desse modo, podiam se empanturrar de comida e alguns eram estimulados a comer, pois estavam “magrinhos”.
Diante dessa situação vivida anos a fio por esse menino, ele mesmo, depois de adulto e morando sozinho, comia escondido. Perguntei, curiosa: “Como assim, mas você não mora sozinho?”, ele respondeu: “Sim, eu moro sozinho em outra cidade, mas só consigo sentir o sabor de um alimento quando sigo esse ritual. Por exemplo, eu pego um sorvete e vou para dentro do meu quarto, me sento em algum canto e, somente assim, me sinto calmo, consigo degustar o sorvete.”.
Outro caso foi de um senhor. Chegou no consultório trazendo nas mãos um encaminhamento da cardiologista e exames laboratoriais, todos alterados. Na anamnese desse senhor, constatei rapidamente a fonte do problema, que justificava pelo excesso. Parei de seguir o protocolo de consulta e quis ouvir a história dele, a fim de entender o porquê ele precisava comer um pacote inteiro de bolachas recheadas.
Ele olhou para um ponto da sala e foi buscar explicação para o meu questionamento, lá no fundo do seu baú de memórias, e disse: “Dra., eu venho de uma família de 8 irmãos, sendo eu o mais velho, passamos fome na infância. Quando a minha mãe tinha recursos, ela fazia uma rosca, eu podia comer só a pontinha, porque a rosca precisava ser dividida com os meus irmãos menores e quase sempre eu não podia repetir, pois como eu era o mais velho, precisava compreender a situação. Hoje, graças a Deus, eu posso comer o quanto eu quero!”.
Sim, eu compreendo o senhor!
Em algum momento, o senhor viveu a escassez, porém hoje está comprometendo sua saúde devido ao excesso. São os dois pontos extremos, precisamos somente achar o ponto exato de equilíbrio. Ok?
Nesses dois casos e em muitos outros, precisei pedir a intervenção da psicoterapia, para reprogramar a mente. E assim conseguir conscientizar o paciente que era preciso estabelecer outra forma de lidar com os alimentos. Obtivemos sucesso em boa parte dos casos.
A nossa infância, embora seja a fase mais curta da vida, quando comparada com as outras, se faz determinante. Tudo o que vivemos, escutamos, vemos, cheiramos, provamos e sentimos fica armazenado na nossa memória como referências.
Independentemente se lembramos ou não de forma consciente, tudo está lá, gravado no nosso poderoso “CPU”. Pense em um iceberg, a ponta que vemos acima da linha d’água é o consciente e tudo o que está abaixo é o inconsciente.
Segundo o que pude constatar em um curso de Nutrição & Psicanálise que fiz recentemente, mesmo antes do nascimento de um bebê, a relação de um indivíduo com a comida pode ter início na vida intrauterina. Quando um bebê nasce, o primeiro contato dele com o externo é por meio da amamentação (independentemente se é nas mamas ou mamadeira), o “vazio” que é a boca é preenchido pela mama da mãe, ou mamadeira, que traz o seu alimento. Nesse momento, o bebê está acolhido em um abraço para receber o seu alimento e, assim, se estabelece a fonte de nutrição afetiva. O ser humano passa toda a sua existência à procura de um “preenchimento”. A partir dessa constatação, devemos parar e refletir: o que está sendo oferecido a uma criança além da comida e dos nutrientes? Afeto? Representações? Valores? Normas sociais?
Diferenciamos de todos os outros seres vivos, que comem apenas por meio de sobrevivência. Nós, seres humanos, somos mais complexos, bem mais…
A fome precisa ser compreendida, até que ponto é fisiológica e quando a fome sinaliza falta. Todo excesso esconde uma falta!
A partir do momento em que as pessoas obtiverem essa consciência e procurarem o autoconhecimento, se libertarão dos paradigmas atuais que envolvem e determinam uma forma de comer tão desequilibrada, doentia, com padrões tão extremistas e de forma tão nociva ao corpo e à mente.
A propósito…
Você tem fome de quê?
Você também pode gostar de outros artigos da autora: NUTRIR COM ESSÊNCIA