Quando o amor pela música é maior que qualquer barreira.
Quando damos vazão à voz que vem do coração somos capazes de nos reconhecer, conhecer nossos dons, de nos encontrar e respeitar nossa essência buscando a realização apesar de quaisquer dificuldades.
Hoje, em comemoração ao Dia do Músico trouxemos uma história inspiradora. Trata-se da história do Maestro Diego Pacheco, que tem um trabalho inspirador como Maestro do Coral no Colégio Ábaco, Maestro Titular do Coral USCS – Universidade de São Caetano do Sul e Maestro Assistente da Orquestra Jovem Municipal de Guarulhos, para quem o amor pela música foi maior que todas as barreiras que encontrou.
Bom dia Maestro, muito obrigada por nos conceder essa entrevista e gostariamos que nos contasse um pouco de como a música entrou em sua vida, se houve influências positivas nesse sentido e desse quando percebeu seu dom para a música.
Desde pequeno eu gostei de música e falava de ter uma banda, uma dupla, tudo muito inocente, muito lúdico, nada muito concreto,sempre fui muito sonhador. Tinha inspirações e escrevia algumas músicas na quarta série, com 8 ou 9 anos e realmente acreditava que estouraria nas paradas de sucesso, mas não sabia tocar nenhum instrumento, só criava melodias.
Meu pai tinha proximidade com o samba porque tocava em escola de samba e sempre gostou muito. Todos nós em casa conhecemos e gostamos muito de samba por conta disso. Ele era apaixonado por isso, fazia bailes e começou a trazer alguns instrumentos para casa. O primeiro instrumento de que comecei a tirar som foi um pandeiro.
Foi quando comecei a ter essa proximidade com instrumentos, ia fuçando no instrumento até conseguir tirar o mesmo som que escutava nas músicas. Sempre tive facilidade com ritmos, por conta dessa genética e vivência que tive desde pequeno.
Depois quando já adolescente, perto dos 14 anos, meu primo Eduardo comprou um violão e eu achei super legal. Ele tocava rock e eu achava legal achei bem interessante. E eu, curioso, pedi para ele me ensinar a tocar. Até aí, não sabia o que eram notas e acordes musicais. Começamos a estudar juntos e ele compartilhava comigo o pouco que sabia.
Outra coisa que acabou me impulsionando foi o relacionamento com a igreja. A rua onde eu morava era muito perigosa, jovens drogados, muitos caíram no crime, muitos morreram por conta do crime e a Igreja fazia um trabalho muito interessante com os jovens da comunidade. Era a Igreja Evangélica Unida do Pastor Hugo. Acabei me aproximando dessa igreja através dos meus primos e irmão que jogavam futebol, num projeto que tirava os jovens das ruas por meio do futebol.
A igreja sempre incentivou os jovens a tocar instrumentos musicais e me interessei e fuçava em tudo, e na bateria fazia um ritmo e percebi uma facilidade porque pegava rápido as coisas que meu primo me ensinou e para pegar outros instrumentos. Um ex-músico dessa igreja era o seu baixista e pegou todos os jovens dispersos, ociosos e montou uma banda e me colocou no baixo elétrico. Comecei a estudar violão e buscar informações com outras pessoas da igreja que tocavam violão e meu desenvolvimento foi muito rápido.
Nesse meio tempo, meu pai percebendo minha vontade em tocar, comprou um violão pra mim: Casas Bahia em 24 vezes. Comecei a engolir o violão. Tocava o dia inteiro até os dedos ficarem com calos. Foi um processo muito gostoso, um universo novo e desconhecido. A música começava a acontecer.
E, com o investimento do Roberto, que coordenava a banda da igreja, esta começou a investir mais nos jovens músicos para que tocássemos em grupo. Ele foi um mentor e me apaixonei pelo contrabaixo. Nesse momento a igreja começou a investir na nova geração de músicos e ofereceu pagar aulas de contrabaixo para mim. Imagine isso, para uma pessoa simples, de família humilde sem condições financeiras para pagar um professor de música. Foi muito especial para mim. Isso me empolgou ainda mais. Passei a estudar na Oficina do Som em São Caetano do Sul, onde conheci a teoria e a técnica da música. Até então era só uma coisa autodidata. Antes só conhecia fuçando revistinha de música.
Acabou dando certo por conta da minha facilidade em trabalhar com os dedos. Eu e meu irmão digitávamos muito rápido e isso ajudou a tocar instrumentos, com velocidade para fazer escalas.
Me apaixonei ainda mais pela música.
A influência maior era da igreja porque nela eu tirava os louvores, tocava músicas gospel e foi muito gratificante e que me ajudou a ser o músico que sou hoje. Não só ela, mas nessa época, com o meu primeiro maestro (estava com meus 16 pra 17 anos) entrei num projeto de fanfarras na escola pública onde estudava. Fiquei empolgado, queria tocar qualquer coisa que fosse música, não me importava o instrumento. Era um grupo de cornetas e cornetões e tirava o som com a boca.
Comecei a tocar instrumento de sopro. Realmente tinha facilidade para tocar. Esse foi meu primeiro grupo orquestral. Depois disso fui para a Banda Marcial da escola, onde aprendi instrumentos de metais. Outro universo musical, novos desafios. Sempre investigando onde eu poderia ser mais útil. Mas nunca me desligando da igreja. Foi na igreja que criei meu primeiro coral, onde fiz meus primeiros arranjos musicais para orquestra. Então isso só aguçou ainda mais minha curiosidade de entender e aprender mais sobre essa arte.
A música gospel me inspirou muito e me fez avançar nesse assunto. Fui ainda muito inspirado, fora do meio gospel, pelo músico Robertinho Carvalho, professor da Fundação das Artes, baixista e muito competente; Emiliano Patarra, músico maestro e hoje amigo me inspirou e me inspira e um regente famoso, brasileiro Isaac Karabtchevsky, maestro que me inspira muito. Quando entrei na faculdade de música eu já havia estudado instrumentos na Fundação das Artes.
No entanto, nessa época, acabei me envolvendo com uma empresa que financiou minha primeira faculdade. Sou formado em Publicidade. Como um garoto simples, e com poucas condições financeiras, não tinha como negar uma oportunidade dessa, de ter alguém bancando uma faculdade, ter a oportunidade de me desenvolver. Isso me desenvolveu muito como pessoa e foi muito importante na minha vida. E, em meio a isso, tive que me distanciar da música, não integralmente, por conta da igreja, mas de eventos como casamentos que eu fazia e me distanciei um pouco por conta do trabalho nessa empresa que exigia de mim muito tempo.
E, em que momento você percebeu que a música era seu caminho?
Esse caminho foi uma construção! A gente precisa decidir muito jovem qual o caminho, qual carreira a gente quer seguir, o que a gente mais gosta, o que a gente mais ama. E aquele receio de não poder errar, principalmente quando você não tem dinheiro, você não pode errar muito. Você pode errar, mas as consequências são fortes.
Quando essa empresa me deu essa oportunidade, eu já era músico, estava tocando na Fundação das Artes, estava fazendo lá-lá-lá, estava me destacando como baixista elétrico, a empresa me deu essa oportunidade de fazer uma faculdade, receber um salário para estudar, poxa, meus olhos brilharam. Fiquei numa situação muito confusa, e agora? Meu professor de música, me disse: você tem 18 anos, tem talento é hora de alavancar. E, por outro lado, um projeto de trabalhar numa multinacional e ter uma faculdade paga, ter ajuda de custo. Fiz a escolha de largar a música para trabalhar no meio empresarial. Não integralmente, mas parei a Fundação das Artes, foquei minha vida no meio empresarial, onde fui aprovado diante de 50 pessoas dentre as quais só 6 jovens foram aprovados. Foi um presente e foi importante para minhas formação como ser humano e me ajudou a desenvolver meus pensamentos, meus conceitos de vida, me fez conhecer um mundo que eu não conhecia.
E aí quando estava me formando em publicidade, desenvolvendo o TCC e trabalhando na empresa, me veio muito o questionamento: é isso que eu quero para minha vida? Eu estava me esforçando muito para dar o meu melhor lá dentro, por mais que fosse a empresa dos sonhos para se trabalhar, para muita gente, mesmo tendo sido muito bem cuidado lá, e ter me desenvolvido, eu olhava as pessoas e me sentia um peixe fora d’água e não conseguia enxergar meus sonhos ali dentro, aquilo que tinha como missão de vida. Foi um processo bem confuso. Eu sonhava em ser músico e não trabalhar numa empresa ideal.
Nesse momento, eu criei um coral de 50 vozes na igreja, fizemos uma música super legal eu regí e foi uma experiência tão boa e daí disse para mim mesmo: Caramba, olha é isso que eu amo! Cheguei a conversar com amigos meus mais velhos, pessoas que inclusive me ajudaram diretamente com o projeto da empresa e disse: eu amo trabalhar na empresa, mas amo muito mais fazer música.
Com 23 anos, tomei a decisão de largar tudo, dei um tiro no escuro. Poderia ter dado errado, mas felizmente está dando certo. Uma mistura de sentimentos muito grande. Vindo de uma família simples, minha mãe sempre se orgulhou de ter um filho que tinha universidade, que trabalhava numa multinacional. Então foi muito difícil. Meu pai foi um pouco mais flexível e me disse: – Se não ganhar dinheiro de um jeito, ganha de outro!
Eu me perguntava: será que estou sonhando demais?
Mas estava tão fora de mim mesmo, dos meus sonhos, das minhas convicções, cheguei para a minha gerente e disse que eu só tinha um plano A na minha vida: largar tudo e seguir aquilo que eu amo, a profissão de músico. Que isso eu enxergava como uma missão de vida, tocar as pessoas pela música.
Na mesma semana em que entreguei meu TCC de Publicidade, eu estava estudando para a prova de música. Prestei a Faculdade Santa Marcelina, uma faculdade muito cara. Larguei tudo! A carreira em publicidade, a empresa e fiquei sem nenhum centavo no bolso e arrisquei na música. Fui aprovado em primeiro lugar como Regente e comecei o curso de música. Mas era uma universidade muito cara, eu não tinha o dinheiro. Foi aí que comecei correr atrás. Era ali que eu queria estudar. Tenho muita fé e Deus foi abrindo as portas. Durante um ano, meu cartão de transporte foi recarregado pela empresa (não sei como), mas isso me ajudou muito. Meu pai me ajudou, a igreja me ajudou e a cidade de São Caetano me ajudou porque não havia o Curso de Música nas universidades locais. E assim, conseguia pagar a metade da bolsa e a outra metade eu fiquei devendo para a universidade. Não havia bolsa para regente porque era um curso muito longo, 6 anos. Mas, eu fui o primeiro regente da Santa Marcelina a ter bolsa de estudo. Fiquei muito feliz, minha preocupação com o lado financeiro da faculdade tinha acabado.
Era isso mesmo que eu queria para vida, que eu iria atrás! Foram pensamentos muito fortes de incapacidade, de não ter dinheiro, de depender dos outros, mas como a força dos meus sonhos era maior, isso não durou muito. Em um ano, já estava me envolvendo com trabalhos de música, conseguindo sustentar minhas necessidades básicas.
O que a música representa para você?
A música me ensina muita coisa. A liderança, o aperfeiçoamento técnico e a interagir com pessoas, a saber liderar pessoas, a conseguir tirar o melhor daquela pessoa, que chega muitas vezes com baixa auto-estima e consigo tirar o melhor dessa pessoa e mostrar a ela o quanto o que ela faz é bonito e pode tocar as pessoas, sendo profissional ou não. Tecnicamente desenvolve nossa coordenação, disciplina, paciência, matemática, trabalho em equipe. Desenvolve o ser humano.
Quais as principais barreiras que você enfrenta ou enfrentou?
A mudança de carreira estando numa família simples onde a dificuldade financeira é grande, você mudar de carreira, para outra que é muito instável e que infelizmente é dado como vagabundo. Hoje, como músico, trabalho muito mais do que trabalhava na empresa. Você não desliga, está conectado constantemente. O financeiro ainda é real em minha vida. Tenho sonhos grandes e eles custam. Isso é uma barreira muito grande. Mesma a música da grande massa, não dá facilmente um retorno tão alto. O investimento para ser músico e maestro é muito alto. Materiais, cursos, instrumentos são muito caros. Sonho em fazer mestrado fora do país e custa muito. Conheço pessoas que foram fazer o mestrado. Ainda não me inscrevi porque ainda não tenho o dinheiro. Não é vitimizar. É um mundo capitalista para conquistar. Vai demorar mais. Isso é uma barreira na música.
Existe também a barreira por eu ser preto, só que ela é mais oculta, mais sutil, às vezes você nem percebe mas ela está acontecendo. É uma barreira porque é muito sutil. Na faculdade eu sentia isso por parte de alguns professores e outros que me defendiam. Quando pequeno uma professora me chamou de sagui. Nem sabia o que era isso. Quando chego nos lugares, eu não sou o Maestro, sou o pagodeiro. Existem clichês e tenho cara de pagodeiro (rsrsrsrs), mas sou Maestro. Existe o preconceito. Já tive uma situação em que sumiu um material de produção e acharam que tinha sido eu. Você percebe, mas procuro não olhar muito pra isso. Me sinto honrado de estar numa profissão onde existem poucos. De certa forma, estou abrindo caminho para que venham muitas outras posições de liderança, mas que isso não seja tratado como uma coisa diferente, mas uma coisa normal. Não é a cor que vai mudar aquilo que a gente tem no coração, não é a cor que vai mudar nossa capacidade de fazer alguma coisa.
Ser incentivado não foi uma barreira importante, apesar de minha mãe ter ficado bem preocupada, meu pai incentivou mais. Sentia a cobrança de financeiramente me manter e eu queria mostrar pra minha mãe que eu tinha feito a escolha certa.
Sobre o mercado de trabalho é muito competitivo porque existem muitos profissionais e poucas oportunidades. E, o fato de estar em uma posição de liderança e pela minha cor, pode incomodar algumas pessoas, infelizmente. As provas de que existe muito preconceito entre os brasileiros estão aí na mídia, quando pessoas são insultadas. Essa área que atuo, o ramo orquestral é um ramo europeu, música européia, acaba tendo um certo preconceito, mas sutil. Eu tenho amigos de infância que me chamam de negão, mas eu sei que eles me amam. O problema não é esse. O problema é quando as pessoas não se referem a você assim, mas sutilmente ele não coloca fé em você.
Felizmente eu estou numa orquestra que tem muita mistura, existe um maestro muito competente e educador e não tenho esses problemas. Estou num Coral onde eu me sinto muito amado e num projeto num colégio que a minha cor não influenciou em nada em relação a minha competência. Porém, sei que isso é uma coisa que vou ter que lutar. Se um dia eu tiver que competir com outro Regente, que jamais a minha cor seja um ponto de desempate. Espero que olhem para minha competência e técnica, pela carreira. Mais do que ser preto, ser pobre é uma barreira grande. Não desenvolvi algumas aptidões quando jovem por não ter oportunidade. Então há uma fusão do fato de ser preto e pobre. Isso traz lacunas e deficiências culturais. Um exemplo disso é o colégio onde eu trabalho, é maravilhoso para o desenvolvimento das crianças e nem é tão caro, mas nele vejo pouquíssimos pretos. Esses pretos estão em escolas públicas quando não estão na rua, tendo que trabalhar para ajudar a sustentar a casa. É triste, quando ele resolver fazer uma faculdade, ele vai disputar com esse adolescente que foi muito desenvolvido durante anos e anos. Uma disputa desigual.
Além da dificuldade financeira, cresci numa rua complicada e de certa forma me sinto um milagre por ter me tornado um Maestro porque no meio de tantas outras oportunidades, de influências negativas, como fui escolher ser maestro?
Que conselho você daria para quem pretende ser músico e para o jovem da raça negra?
Primeiro é muito estudo, conhecer muito do meio orquestral, conhecer repertório, instrumentos, procurar conservatórios de música que vai fazer você se envolver com outros músicos e isso desenvolve mais também. Prestar uma universidade e não ter problema com curriculum quando quiser estudar fora e, principalmente, muita determinação. Não é uma profissão que de um dia pro outro você terá retorno. Para todas profissões, uma hora o retorno vem. Se tiver determinação você se destaca, se encaixa e sente que é isso mesmo, que é sua missão de vida e se sente feliz e realizado com isso. Acima de tudo, tenha certeza de que você ama muito aquilo que está fazendo porque é isso que vai de dar fôlego nos dias difíceis, de tempo, de parecer que nada está dando certo. Se fizer o que ama, vai ter uma energia fora de série. Você é muito mais sugado quando faz alguma coisa que você não ama. Não tenha medo de dar passos para trás como eu fiz. Não tenha medo. Tenha medo de não estar naquele lugar para o qual você foi feito para estar. Não importa a idade, mude!
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Em relação às pessoas da minha raça, cada vez mais olhar menos para isso e seguir em frente, para não se tornar uma pessoa amarga, sempre armada, esperando o pior. Faça o seu melhor e siga em frente, não só na música, mas em qualquer profissão em que o preto procure ser líder. Se procurar ser o melhor vai se destacar e pessoas do bem vão valorizar isso. Acredito que as pessoas num momento não farão mais essa distinção, vão enxergar a competência e não a cor. É importante sim ter a consciência de que existiu uma escravidão e que as consequências disso estão aí até hoje e, principalmente em São Paulo, os imigrantes foram trazidos porque não queriam dar empregos para os pretos que eram escravos e estavam livres e por isso foram morar nos morros. É importante saber a história, mas jamais se diminuir por isso ser uma pessoa competente, inteligente, não tem diferença alguma. Valeu a pena cada mudança, cada esforço, e valerá ainda mais porque ainda tenho muitos sonhos e vou conquistá-los!
Muito obrigada Maestro por compartilhar conosco uma história tão inspiradora.