Em todo santo dia, a gente crucifica Jesus… É na risada que a gente dá da travesti, é no escárnio que a gente tem de política assistencial, é no olho que a gente vira para o moleque malabarista do semáforo. Exceto em dezembro, em dezembro a gente fica caridoso, do bem, a gente ama o próximo como a nós mesmos. O resto da ceia a gente doa para a empregada e comenta: “Ela ficou feliz até…”. Em dezembro, a gente leva os filhos para entregar refrigerante e boneca para as meninas pobres do abrigo e depois fala que “é para aprender a valorizar a vida.” Em dezembro, a gente se esforça para ficar tão bom, que mostramos o nosso pior lado: o caridoso seletivo.
Há quem ame fazer caridade, e realmente é ótimo que ela exista, o que não pode ser feito é esticar o braço em dezembro “porque o espírito natalino e a paz de Jesus Cristo alcança o nosso âmago” e depois virar a cara para o morador de rua dizendo que dinheiro para ele acaba virando cachaça.
Nosso lanchinho diário é a hipocrisia, quando nos convém, fazemos da criança pobre e do velho desdentado o nosso palquinho de gente caridosa, doamos duas cestas básicas, abraçamos a criança, tiramos foto dando gargalhada com o velho e saímos por aí mostrando para todo o mundo o bem que fizemos.
Já quando não nos importa, a gente faz cara ruim para o mendigo cheirando a cachaça, atravessamos a rua se a criança preta está do mesmo lado, resmungamos do governo falando que é um absurdo ajudar os outros: “Ensina a pescar, mas não dá o peixe!”.
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Sabe a criança que você abraçou, deu um brinquedo e um panetone, tirou foto, postou no Instagram e contou a história deste momento com os olhos cheios de lágrimas para a sua vizinha? Há grandes chances dessa criança sentir fome no mês que vem, mas não vai rolar cesta, nem panetone, nem brinquedo…
É janeiro. A gente só é solidário no Natal, talvez na Páscoa e, se sobrar dinheiro e paciência, no Dia das Crianças.
Ou façamos da caridade um estado de vida constante, que começa na desconstrução dos preconceitos diários, continua nos sorrisos que a gente doa a quem precisa e termina na busca e na garantia do acesso geral à qualidade de vida, ou admitimos de uma vez que a gente gosta mesmo é de se sentir por cima, que a gente doa para mostrar que somos melhores, mas que nunca a gente dá condição para fazer um pobre chegar lá.
Que a caridade se transforme em políticas públicas, contínuas e bem aceitas pela sociedade. Do contrário, nada mais é do que um momento para se sentir superior.