Existem mulheres fortes e existem aquelas que ainda não descobriram a sua força
Contar sobre uma mulher que marcou minha vida, conheço muitas. Mas para ser fiel àquilo que vou escrever, é melhor falar de uma que conheço desde que nasci.
De natureza simples, aparentemente frágil, era notada por ser solícita, dotada de uma estranha força que destoava do seu perfil sereno.
Tornou-se enfermeira, tinha o dom de cuidar. Casada, com sua prole de três filhos, chegava de um exaustivo plantão e se trancava no quarto com o intuito de descansar ou estudar. Mas sua vontade sempre ficava em segundo plano, porque, do lado de fora, seus enérgicos pequenos tentavam se matar entre si por causa da última bolacha do pacote.
Dona de uma mão leve e precisa, era solicitada para aplicar injeções e vacinas nos bumbuns rechonchudos. Com seu filho mais arteiro, ela agia feito mamãe Guepardo, enlaçava e imobilizava-o em meio as suas pernas enquanto ele berrava a plenos pulmões. Ela, com uma calma inabalável, sem expressar o mínimo de tensão, era certeira com a agulha direto ao alvo. O mesmo acontecia para cortar as unhas ou auxiliar na sutura de um corte mais profundo na cabeça.
Sua dupla, às vezes tripla jornada de trabalho, não impedia que sua casa tivesse uma atmosfera de lar. O cheiro de amaciante podia ser sentido quando a brisa soprava suas roupas no varal ou, então, o cheiro do bolo recém assado que invadia todos os cômodos da sua casa.
Era sábia para ensinar, escolhia o momento certo para falar, tinha a voz firme e suave para repreender. Não há relatos dela usando palavras ásperas ou agressivas com alguém. Mas possuía uma autoridade no olhar e nas ações.
Quem a via não imaginava que ela se culpava por não ter sido uma boa mãe, achava que tinha se ausentado demais e, como resultado, um dos filhos escapou-lhe por entre os dedos não escolhendo o caminho da retidão…
Nem por isso lamuriava. Tinha um senso de humor ímpar. As palavras medo e desistir não existiam no seu vocabulário ou na sua personalidade. Enfrentava qualquer situação que exigisse força física, mental ou emocional.
Anos de convivência com essa mulher, pude experimentar todas as formas de amor… Nasci dela em uma noite de primavera na década de 70, numa cidade conhecida como a Cidade das Rosas, cresci em meio aos canteiros de flores da vovó… tinha tudo para ser uma florzinha. Mas não rolou…
Quando se tem uma mãe forte, você tem um modelo a seguir e se torna uma pessoa forte. Me ensinou tudo que sei. Como ser ética na profissão, como ser uma esposa de valor, como ser amiga, filha e uma boa mãe… me ensinou, inclusive, como viver sem ela. Deixou um legado de exemplos sobre o real sentido da nossa existência. Não somos aquilo que juntamos e, sim, aquilo que espalhamos. Até hoje colho ou recebo flores, frutos da semeadura dela.
Ela fez sua passagem precocemente na minha opinião. Tinha uma doença crônica grave e complicada que gerou outra ainda mais terrível. Embasado naquilo que sei e nos prognósticos médicos, ela viveria em torno de 2 anos. Porém quebrou todos os protocolos, viveu por seis, sem maiores intercorrências, disposta, corada e fazendo a gente rir.
Certa vez, eu a acompanhava numa consulta com especialistas. Na sala de espera, havia pacientes em cadeiras de rodas, alguns com balão de oxigênio, outros com cateter, todos com uma aparência péssima. Ela me puxou pelo braço e me disse baixinho no ouvido:
– Viu, só!? Eu não tenho acessórios. E nem vou ter! – E não teve mesmo. Ela morreu sem nunca ter precisado usar um “acessório”.
Naquele dia, eu e meu fígado saudável admirávamos seu apetite no momento do almoço. Depois fomos bater pernas no shopping, como se o motivo daquela viagem fosse um passeio. Era assim que ela queria que fosse, era assim que eu me comportava diante daquela tamanha gravidade e eminência de perdê-la.
Num outro episódio, me ligou dizendo em tom de brincadeira sobre o início das sessões de quimioterapia:
– Não gostei da novidade. Logo agora que eu acertei um corte no meu cabelo.
Eu ficava pasma com a lucidez e calma que ela reagia diante daquele apavorante tsunami de más notícias que recebia dia após dia. Em vez de deprimi-la, ela crescia e ficava gigante na sua força e determinação.
Eu nunca a vi chorando por causa da doença. Então, eu também nunca chorei. Pensava: eu sou da linhagem de uma guerreira, preciso honrá-la, não posso esmorecer agora.
O dia da sua partida foi um dia especial. O mais triste, porém especial. Eu renascera depois da experiência.
A calma dela transgredia as paredes do hospital e contagiava a todos. Mesmo com uma pressão arterial 3 x 7, no oxigênio, com seus órgãos falindo… ela não perdia seu controle emocional. Não deixava de colaborar com aqueles que estavam ali para cuidar dela, apontava com o dedo indicador para suas colegas de profissão onde estava a sua melhor veia… não se queixava, não questionava a Deus.
Num determinado momento, no silêncio da madrugada que só se quebrava pelo som do bip do monitor cardíaco, uma voz falou na minha consciência:
– É chegado o momento. Despeça-se de sua mãe, mostre a ela o quanto você é forte, permita que ela descanse.
E mesmo sem compreender direito, eu obedeci àquele pedido. Uma paz me envolveu e uma força imensa brotou do meu ser.
Eu tive que prometer a ela que seria forte, que ficaria bem, que havia aprendido com ela como seguir adiante. Que zelaria pelos seus netos, genro, marido, filha caçula, filho controverso e cachorro, inclusive. Ela lembrava coisas do cotidiano que não havia feito e nos orientava como resolver como se ela fosse logo ali… As lágrimas ensopavam nossas faces, ela passava uma mão no meu rosto e a outra no rosto da minha irmã e ponderava:
– Mas vocês estão chorando?! – Como se não tivéssemos motivo. Se não fosse trágica, seria cômica aquela cena.
Eu venci o dia mais temido da minha vida, porque ela me treinou e algum ser celestial me amparou. A simples mulher não me deixou alternativas. Era preciso ser forte, ou ao menos disfarçar a fraqueza. De tanto treinar, acabei me tornando resistente.
Quando a órfã sente saudades, se recolhe e chora. Porém, logo vem ela na memória com sua fala típica:
– Agora já chega. Já chorou bastante levanta daí e vai cuidar da sua vida. – E, assim, lágrimas cedem lugar ao sorriso de novo…
De maneira concisa este foi o modelo de mulher que eu tive na vida, de um estereótipo instigante. Por fora era flexível, macia, leve, serena, cheirosa e doce. Mas por dentro, era sólida feito rocha, seus nervos só podiam ser de aço, e suas fibras musculares deviam estar entremeadas a fibras de Q-carbono. Já dos seus olhos se podia ver uma luz que brilhava mais do que o próprio diamante.
Uma joia de valor inestimável. A mulher que eu tive o privilégio de chamar de Mãe.
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