Filosofia

Filosofia do cuidado

Dois pequenos monges budistas conversando e rindo. Um deles está segurando um guarda chuva e o outro lê um livro. Ambos estão sentados em uma pedra na floresta.
Escrito por Luis Lemos

A crise que afeta atualmente o homem contemporâneo deriva da crise mesma de um modelo de civilização, aquela engendrada pela razão instrumental capitalista. Para essa civilização só é racional o que serve ou se converte ao regime da produção de mercadorias e, mais ainda, mercadorias ditadas pelo exclusivismo do lucro.

Ora, é esse modelo de razão civilizatória, que reduz a vida à dimensão do lucro, da competição e da acumulação, que dá sinais inúmeros de mal-estar, ao mesmo tempo em que começa a se confrontar com os valores da civilização oriental e com as possibilidades de recuperar outras formas de exercício da razão: a razão sapiencial, a razão ética, a razão poética, a razão estética, a razão religiosa, a razão contemplativa.

Mãos dadas.

Em outros termos, trata-se de pensar a razão sob a forma de cuidado, do cuidar da vida, de permitir que o outro seja o que deve ser; que o mundo seja aquilo que historicamente constituiu-se a ser. Trata-se, enfim, de superar o utilitarismo das relações do homem consigo mesmo, com os outros e com todas as comunidades de vida (animal e vegetal, bem como com o mundo inorgânico).

Um bom exemplo dessa “filosofia do cuidado” nos vem do poema abaixo, de autoria de Chuang Tzu, célebre escritor taoísta do período clássico da filosofia chinesa (550 a 250 a.C). Diz ele:

“O Imperador Amarelo, vagueando, foi ao norte da Água Vermelha. À montanha de Kwan Lun. Olhou à volta. Debruçou-se sobre o mundo. Na volta perdeu sua pérola cor-da-noite. Mandou a Ciência procurar a pérola, mas em vão. Mandou a Análise procurá-la, em vão. Mandou a Lógica, em vão. Depois interrogou o Nada, e o Nada a possuía! Disse o Imperador Amarelo: ‘Estranho, deveras: O Nada que não foi enviado, Que não se esforçou por achá-la, É que possuía a pérola cor-da-noite!’”

Ilustração de Chuang Tzu.

Ao comentar estas linhas, o filósofo e teólogo brasileiro Leonardo Boff (1999, p.101) afirma que “O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais do que um ato; é uma atitude.” Portanto, o cuidado abrange mais do que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.

Dessa forma, o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. E, se fizer, ela sempre vem acompanhada de cuidado e imbuída de cuidado. Significa ainda que o cuidado é um modo de ser essencial, e irredutível à outra realidade anterior. É uma dimensão vital, portanto, ética, originária, ontológica, impossível de ser totalmente desvirtuada da vida prática do homem contemporâneo.

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Enfim, o desafio maior da contemporaneidade é pôr o cuidado com o outro em prática. O cuidado com a vida, com o espaço, com o tempo, com o corpo pode ser a saída existencial que todos buscam. Se de fato isso acontecer, estaremos iniciando uma nova era, não mais narcisista e egoísta, e sim uma época de amor e de cuidado.


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Sobre o autor

Luis Lemos

Luís Lemos é filósofo, professor, autor, entre outras obras, de “Jesus e Ajuricaba na Terra das Amazonas – Histórias do Universo Amazônico” e “Filhos da Quarentena – A esperança de viver novamente”.

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