Comportamento Convivendo

Sororidade virtual: um discurso que não se torna prática

Três mulheres uma ao lado da outra de olhos fechados
Gemma Chua-Tran/Unsplash
Escrito por Eu Sem Fronteiras

Em uma sociedade que se estrutura a partir do machismo, a ideia que prevalece é a de que as mulheres devem servir aos homens. Mais do que isso: elas devem competir entre si para que uma receba mais atenção do que a outra, para que se encaixe com mais precisão aos padrões de beleza ou ao ideal de feminilidade.

Essa ideia de competitividade feminina é reproduzida em produtos audiovisuais, com vilãs e mocinhas brigando por homens, e em redes sociais, com o alcance que uma mulher dentro dos padrões de beleza terá, em relação a uma mulher fora dos padrões de beleza.

No entanto, a permanência desse conceito não ocorre somente por meio da mídia ou da internet. A competição feminina está também em relações de amizade. Em vez de uma mulher se sentir bem com o sucesso da amiga, ela se sente inferior e fracassada. Às vezes, pode até torcer, inconscientemente, para que algo dê errado para a outra.

Embora a competição feminina não pareça tão nociva para algumas pessoas, as consequências que ela traz para a sociedade incluem o afastamento entre as mulheres, a ausência de discussões relacionadas à experiência feminina e a dificuldade para conferir credibilidade aos discursos de mulheres.

De acordo com o movimento social feminista, é por meio da sororidade que a competição feminina pode ser desestimulada. O cerne dessa palavra reproduz a ideia de que as mulheres devem se unir.

Diversas mulheres unidas e sorrindo
mentatdgt/Pexels

Quando uma mulher relata a própria história ou a própria experiência, por exemplo, outras mulheres devem ouvir o que ela tem a dizer, respeitar o relato e compreender que cada uma vive uma realidade diferente.

Ainda que parecesse simples fazer um exercício de união, muitas vezes a sororidade se sustenta apenas enquanto discurso. Isso é, muitas mulheres compartilham imagens e frases relacionadas a esse conceito, mas não o colocam em prática quando interagem as suas iguais.

Esse é o risco da sororidade virtual. O que pareceria ser uma rede de apoio entre mulheres de todas as partes do mundo é, na verdade, a repetição de uma palavra cujo significado foi esvaziado. É comum que a sororidade seja usada como um mecanismo para, na verdade, reforçar a competitividade feminina.

Um exemplo desse problema é o que acontece quando uma mulher termina um relacionamento. Ao saber que uma amiga começou a se envolver com quem ela terminou, a frustração, o ciúme e a inveja se manifestam. Ela alega que a outra mulher não colocou a sororidade em prática, já que passou a se envolver com quem um dia ela teve um envolvimento.

Em muitos dos casos, a pessoa com quem essa mulher se envolvia era um homem. A competição feminina está presente nesse caso porque ambas passam a lutar pelo desejo e pela atenção desse homem, utilizando a sororidade como meio de validar o argumento da competitividade.

É algo como “se você é mesmo uma mulher feminista, então não deveria se envolver com esse homem que um dia significou alguma coisa para mim”. Ignora-se que o homem tem uma participação ativa nesse processo e a maior inimizade acontece entre as mulheres. Infelizmente, esse não é o único caso de esvaziamento do significado de sororidade.

Exemplos da má sororidade virtual

1) Quando a sororidade (não) chega às paredes

Um movimento bastante comum é o de escrever mensagens, palavras ou frases em paredes de banheiro, sobretudo em universidades. Porém, não são todos os banheiros que podem conter esse tipo de intervenção.

Mulheres unidas uma ao lado da outra
RF._.studio/Pexels

Em faculdades particulares, em bares ou em outros estabelecimentos, é comum que esses dizeres sejam apagados diariamente, mensalmente ou anualmente por uma equipe de limpeza.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017, 39,8% das mulheres negras brasileiras representam os grupos que estão em condições precárias de trabalho. O mercado da limpeza, que normalmente é terceirizado, faz parte desse tipo de condição.

Nesse sentido, rabiscar em uma parede que as mulheres precisam se unir, que elas devem colocar em prática a sororidade, pode acarretar em mais trabalho para uma mulher com uma vida menos privilegiada que a de quem escreveu, que talvez nem imagine o que significa sororidade.

A sororidade deveria se manifestar fora da internet por meio da oferta de educação e de emprego para as mulheres menos favorecidas, por iniciativas que permitissem o compartilhamento e a escuta das dificuldades de cada uma. Isso seria um exemplo de união, respeito e compreensão.

Assim, a sororidade que prega a escrita de mensagens e palavras em estabelecimentos que precisarão ser limpos é uma sororidade virtual. O discurso existe, mas é colocado em prática de forma equivocada.

2) Quando a sororidade (não) reconhece o depoimento da vítima

O Atlas da Violência é uma pesquisa realizada anualmente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Em 2018, o Atlas da Violência abordou também a violência sexual contra meninas e mulheres.

Os dados obtidos pela pesquisa consideram que somente 10% a 15% dos casos desse tipo de violência são reportados para a polícia brasileira ou para o Sistema Único de Saúde (SUS). Assim, o total de 135 estupros por dia no Brasil, ao considerar os que não são denunciados, subiria para 822 a 1370 estupros por dia.

O que desestimula o ato de denunciar as formas de agressão contra a mulher são muitos fatores. A deslegitimação do discurso da vítima, o medo do agressor, a vergonha do que aconteceu, a normalização do assédio e a culpabilização da mulher pela violência que ela sofreu são questões decisivas nesse momento.

Uma mulher pode não denunciar os abusos que sofre pelo medo que sente do agressor e do que as pessoas irão dizer sobre ela. Mesmo que possam ser submetidas ao mesmo tipo de violência, o julgamento parte, muitas vezes, de outras mulheres.

Um exemplo disso foi o que aconteceu com a modelo Najila Trindade, ao denunciar que teria sido estuprada pelo jogador de futebol Neymar Júnior. Antes mesmo que a justiça determinasse o desfecho do caso, homens e mulheres já diziam que ela era aproveitadora, oportunista, mentirosa etc.

Muitas mulheres que pregam sororidade na internet afirmavam que, por Najila ter enviado fotos sem roupa para Neymar, adotou o comportamento de uma mulher desprovida de respeito e de valor.

Em um país no qual cerca de 80% das mulheres não denunciam as agressões que sofrem, posicionar-se contra a versão de uma das mulheres que denunciou um abuso pode contribuir para a permanência dessa cultura.

Os argumentos em defesa de Neymar eram mais numerosos do que os argumentos em defesa de Najila, ainda que o caso não tivesse sido finalizado. Isso vai contra qualquer interpretação do conceito de sororidade, visto que essa mulher, em nenhum momento, foi ouvida, compreendida e respeitada.

3) Quando a sororidade (não) reconhece os diferentes corpos

Mulheres sentadas no chão uma ao lado da outra
Gemma Chua-Tran/Unsplash

Uma expressão que também circula pela internet é “body shaming”. Esse termo da língua inglesa, ao ser traduzido para o português, significa algo como “humilhação pelo corpo”. Ou seja, toda vez que o corpo de uma mulher que não pertence ao padrão de beleza é criticado, ela está passando por body shaming.

No entanto, a sororidade virtual parece ignorar a necessidade de reconhecer todas as formas de beleza. Mesmo as mulheres que pregam a importância da sororidade acabam condenando famosas que engordaram muito ou que emagreceram muito, enaltecendo somente as que se enquadram em todos os padrões.

Algumas das celebridades internacionais que já sofreram body shaming são Beyoncé, Rihanna, Demi Lovato, Taylor Swift, Chloë Grace Moretz, Jennifer Aniston, Mariah Carey, Ruby Rose e Serena Williams. No Brasil, a personalidade que vem sendo alvo de ataques é Cleo Pires.

Kim Kardashian e Khloé Kardashian também passaram por esse tipo de experiência. Em vez de utilizarem essa dor para disseminar a importância de amar os próprios corpos, porém, o que elas fazem é destacar a necessidade de se encaixar no padrão de beleza.

A prática da sororidade deveria condenar os comentários que as mulheres fazem sobre os corpos das outras. Até mesmo um elogio que soe positivo, como “você está tão linda e magra!” ou “você é tão corajosa por postar uma foto com as celulites aparecendo”, reforçam a ideia de que o peso de uma mulher está diretamente relacionado ao quão bonita ela se parece.

4) Quando a sororidade (não) reconhece as questões raciais

A edição de 2019 do Big Brother Brasil teve como vencedora a participante Paula Sperling. Durante o reality, a competidora reproduziu frases e pensamentos racistas e homofóbicos. Quando foi alertada por outros participantes sobre os problemas de suas falas, Paula recusou-se a aprender.

Essa atitude racista e homofóbica de Paula, ainda que não a tenha impedido de vencer o programa, gerou revolta de telespectadores e de outros competidores do reality. Assim, quando ela saiu da casa, recebeu inúmeros comentários fazendo referência ao quão racista ela é.

Em resposta às críticas e à acusação de intolerância religiosa (causada por racismo contra religiões de matriz africana), Paula afirmou que tudo o que disse era a opinião dela, e que as pessoas deveriam ter empatia. As mulheres que a defenderam afirmaram que as outras mulheres deveriam colocar em prática a sororidade e apoiar a ex-BBB.

Nesse momento, a sororidade foi utilizada como uma ferramenta para reforçar o racismo na sociedade. O feminismo não deveria ser conivente com falas racistas de uma pessoa que se recusa a aprender e a reconhecer o significado das vidas negras.

A sororidade seria colocada em prática, de fato, se Paula fosse capaz de ouvir o que as mulheres tentaram ensinar para ela. A sororidade não deveria servir para dizer que todas as mulheres estão certas, até mesmo quando reproduzem racismo e homofobia.

É a sororidade virtual que prega a necessidade de enaltecer as falas de toda as mulheres, sem qualquer tipo de recorte de classe, de gênero, de etnia ou de sexualidade. A superficialidade desse discurso é alarmante, por se constituir como uma forma de permanência de estruturas opressoras de etnia.

5) Quando a sororidade (não) dá espaço para a privacidade da mulher

Três mulheres uma ao lado da outra
Omar Lopez/Unsplash

Um caso que ganhou destaque na internet foi o fim do casamento de Débora Nascimento e de José Loreto. Os sites de fofocas anunciavam que a separação do casal tinha como responsável a atriz Marina Ruy Barbosa, casada e então colega de elenco de José Loreto.

Imediatamente, as redes sociais da ruiva foram poluídas por ataques. Diziam que ela era uma traidora, que fazia de tudo para se promover na carreira, que não respeitava as outras mulheres.

Atrizes como Bruna Marquezine e Giovanna Ewbank se solidarizaram com Débora e a internet também passou a atacá-las, alegando que tinham inveja de Marina. A polêmica envolveu outras celebridades e veículos de comunicação, mas essa não é a parte relevante dessa situação.

Fato é que todas essas mulheres foram vítimas de ataques virtuais por pessoas que usavam a sororidade como argumento de defesa de cada um dos lados. Ou a Marina não tinha praticado sororidade com Débora ou Débora não tinha praticado sororidade com Marina.

Eram muitas as versões que ganhavam espaço em comentários de Instagram, de Facebook e de Twitter. Poucas eram as mulheres que respeitavam esse momento difícil na vida de todas elas e lhes dava o direito de não serem perturbadas.

A sororidade não deve servir como forma de colocar uma mulher contra a outra. A sororidade deve ser um exercício de respeito e de compreensão. A separação de um casal não deveria resultar em ataques cibernéticos entre mulheres que querem defender uma ou outra sem conhecerem verdadeiramente a situação.

Um exemplo de sororidade para esse caso, e para muitos outros, seria permitir que as mulheres contassem as suas versões ou tivessem o direito de não se pronunciarem sobre isso. A sororidade é um processo de troca e de aprendizado, e não de competição e intriga.

De acordo com o movimento social feminista, é por meio da sororidade que a competição feminina pode ser desestimulada. O cerne dessa palavra reproduz a ideia de que as mulheres devem se unir.

Definição de sororidade

Duas mulheres com as mãos nos olhos uma da outra
Analise/Unsplash

De acordo com o feminismo, a palavra “sororidade” originou-se no idioma latim, da palavra “soror”, que significa “irmã”. Então a prática da sororidade nada mais é do que entender que as mulheres devem se unir e se apoiar, formando uma irmandade de respeito, compreensão e confiança.

É importante ressaltar que a sororidade não tem como ideia o amor entre todas as mulheres. Se você não se dá bem com uma mulher que conheceu em algum momento da sua vida, isso não te faz menos feminista. Desde que você respeite as mulheres, conhecendo-as ou não, e que você saiba ouvi-las quando necessário, a sororidade tem lugar na sua vida.

É a partir da sororidade que poderemos alcançar o empoderamento feminino. Ao reconhecer o valor e as capacidades de outras mulheres e apoiá-las para que continuem atuando em seus segmentos ou compartilhando suas experiências, estimulamos a confiança e a autoestima dessas pessoas, permitindo que elas se tornem cada vez mais empoderadas.

Quando uma mulher relata a própria história ou a própria experiência, por exemplo, outras mulheres devem ouvir o que ela tem a dizer, respeitar o relato e compreender que cada uma vive uma realidade diferente.

Sororidade masculina e feminina

Como muitas pessoas que usam a palavra “sororidade” acrescentam “feminina” ao lado, formando “sororidade feminina”, é comum que acreditem que existe algum tipo de sororidade masculina. Na verdade, como a sororidade é um termo do feminismo, um movimento de mulheres para mulheres, não há uma sororidade masculina.

Assim, dizer “sororidade feminina” é até mesmo um pleonasmo, já que não é possível definir uma outra sororidade que não a feminina. O motivo de não existir necessidade de defender uma sororidade masculina é que em nenhum momento os homens foram desestimulados a se apoiarem. Os homens não são construídos socialmente como inimigos uns dos outros, como acontece com as mulheres.

Uma vez que não há rivalidade ou competição masculina, não há necessidade de um movimento em resposta a isso, como o feminismo ou a aplicação da sororidade. Não há problemas teóricos em dizer sororidade feminina ou empoderamento feminino, mas é preciso compreender que esses termos não podem ser transferidos para o masculino.

Como praticar a sororidade virtual

Mulher digitando no celular
Paul Hanaoka/Unsplash

Você sabia que é possível praticar a sororidade virtualmente, pela internet? Ao compreender o que esse conceito significa, existem alguns passos que você pode seguir para que ele seja cada vez mais disseminado e estudado por outras pessoas. Veja o que fazer!

1) Compartilhar é essencial

Compartilhar os conhecimentos que adquirimos ao longo da vida é sempre importante para que outras pessoas, que não tiveram o mesmo acesso à informação do que nós, possam entender as causas pelas quais lutamos. Dissemine estudos, manuais e informações sobre sororidade, feminismo e empoderamento feminino, para que mais mulheres estejam atualizadas a respeito desses temas e possam lutar por seus direitos.

Você também pode gostar

2) Julgamentos não têm vez

Na internet, é comum que nos rendamos ao ato de julgar outra pessoa. Comentar sobre as roupas, sobre a aparência ou sobre alguma atitude de uma mulher pode não ser a melhor coisa a ser feita. Existem muitas formas de instruir e de alertar sobre algum comportamento nocivo, se esse for o caso, mas em nenhuma delas você deve ofender. Evite também fazer conclusões sobre as mulheres a partir das fotos que elas postam ou dos comentários que elas fazem. Lembre-se de que todas estão em um processo de aprendizado.

3) Apoiar e divulgar

Apoiar e divulgar o trabalho de outras mulheres é essencial para que elas se sintam motivadas a lutar por seus sonhos e por aquilo em que acreditam. Use suas redes sociais para mostrar trabalhos feitos por mulheres, para compartilhar conteúdos produzidos por pesquisadoras ou por profissionais de diversas áreas e crie uma rede de apoio poderosa no seu perfil!

Sobre o autor

Eu Sem Fronteiras

O Eu Sem Fronteiras conta com uma equipe de jornalistas e profissionais de comunicação empenhados em trazer sempre informações atualizadas. Aqui você não encontrará textos copiados de outros sites. Nossa proposta é a de propagar o bem sempre, respeitando os direitos alheios.

"O que a gente não quer para nós, não desejamos aos outros"

Sejam Bem-vindos!

Torne-se também um colunista. Envie um e-mail para colunistas@eusemfronteiras.com.br