A política da não violência no budismo.
Por Anne Moon
São Paulo, 1º de outubro de 2019
Vamos falar sobre a violência? Sim, acredito que durante estes dois anos surgiu uma necessidade de falar sobre e complementar apresentando uma visão budista sobre a violência, ainda mais na delicada situação em que se encontra o Brasil e o mundo.
É mais necessário ainda vendo que este ano foi o ano que segundo alguns dizem “o ano da colheita”, e o ano de 2020 será o ano da justiça. Estamos em um momento de repensar a forma como lidamos com a violência.
(ANTES DE LER ESTE ARTIGO, SAIBA QUE TEM AVISO DE GATILHO, QUE NÃO ESTAVA JÁ EXPLÍCITO NO TÍTULO)
Hoje em dia é muito comum se ver por aí casos de violência, não precisamos nem ir muito longe para encontrar. Na TV, na internet ou presenciamos pessoalmente algum tipo de violência, seja ela verbal, física, psicológica, material ou sexual.
Violência (“violentia” latim vulgar): impetuosidade, violação dos direitos dados a todos os cidadãos.
Sim, já é de conhecimento de várias pessoas que a violência não é somente física, existem variadas formas em que alguém poderia ser violento.
Violência verbal: ter a imagem prejudicada, ser subestimado, ser tratado com muita grosseria, com palavrões, ser desconsiderado, invalidado e agressão verbal.
Violência psicológica: sempre em conjunto com a violência verbal, mas também tem outras características. Por exemplo, questionar a sanidade, as competências, manipular, tirar vantagem do outro.
Violência material: controlar o ir e vir, o dinheiro, o patrimônio, os bens materiais, destruí-los.
Violência física: não preciso nem falar sobre, né? O nome já é autoexplicativo.
Violência sexual: ato sexual forçado, conduta sexual inapropriada e assédio.
Agora que já discutimos os vários tipos de violência, vale a pena refletirmos sobre a origem. De onde vem essa natureza violenta do ser humano? Se estamos falando sobre a violência, é porque primeiramente nós conhecemos os sentimentos de ira, mesmo que hoje em dia você não flui mais nessas energias e isso vai passando de pai para filho há milênios.
Falo desse sentimento, pois é o maior motivador da violência.
Como falei no início, a violência é impetuosidade, a violação dos direitos dados aos cidadãos, se fala em falta de respeito, de ferir os limites da outra pessoa. Outra coisa que também mencionei no início do artigo foi o fato de a violência ser passada de pai para filho, ou seja, o tipo de criação que se tem em casa, a responsabilidade dos cuidadores em formar o caráter de quem está sob os cuidados deles, de ensinar a ouvir o não e principalmente ensinar limites, a respeitar…
A escola vem como um reforçador desse ensinamento, não sendo a única responsável pela educação.
LEMBRANDO: Não estou querendo culpabilizar nenhum cuidador pela violência existente e sim colocar um olhar analítico, de responsabilidade sobre alguém que está sob os cuidados de alguém. Nossas primeiras influências vêm de dentro de casa e de nossos cuidadores, então esses cuidadores têm a responsabilidade na formação da pessoa dependente dele, de prepará-la para a vida.
No coletivo, isso é muito mais perceptível. A falta de limites, bom senso, educação e respeito é o maior fator para se criar uma sociedade violenta.
Com a rapidez que as coisas hoje em dia estão acontecendo, em que as informações chegam até nós e assim a violência fica a cada dia mais escancarada, nada passa despercebido. A forma como vem sendo tratado esse assunto nos faz ficar anestesiados, estamos acostumados, o que é péssimo.
A psicanálise chama essa era moderna a era dos narcisistas, das pessoas que se relacionam superficialmente, o chamado “amor líquido”. Eu vejo as pessoas não se entregando ao amor. Eu não falo de criar uma dependência emocional (batendo de novo nessa tecla), mas devemos nos permitir aproveitar esse sentimento de amor de forma mais profunda, sem egoísmo, ou o desejo de ter vantagens exclusivas para si mesmo. Infelizmente não é exatamente o que está acontecendo. Estamos em uma era que a psicanálise chama de “era dos narcisistas”. Não que eles tenham surgido apenas agora, mas hoje em dia eles estão mais visíveis, porque hoje em dia as coisas estão tão acessíveis, estamos discutindo sobre saúde mental, sobre comportamento, discutindo a violência e com isso sabemos quem é narcisista.
“Mas, Anne, por que falar sobre narcisismo se o assunto é violência?”
Porque o narcisismo está muito relacionado à violência, estão interligados. Veja só:
Todo narcisista é centrado em si mesmo, não possui afetos e, sim, “peças do jogo” emocional para que se sinta bem consigo mesmo, querendo sempre vantagem para si próprio e aí vem aquela história toda de que o narcisista começa como grande bajulador, há muita chantagem emocional, mas quando vê que a sua “presa” está se tornando ou que é independente, vem a fase do maltrato, de destruir a autoestima da vítima até a fase do descarte (não sei se falei sobre isso em algum artigo anterior, então relevem se eu estiver sendo repetitiva)… Enfim, esse ciclo não para, não se depender do narcisista.
Voltando ao fato de que as pessoas hoje em dia se relacionam superficialmente, relacionamentos líquidos, e nem falo necessariamente sobre interesses. Em tudo na vida tem interesses, tem algum interesse em cima. Você se interessa por alguém, por algum lugar, alguma proposta de trabalho, alguma forma de pensamento, esses tipos de interesses não são ruins, certo? Por isso não falo desses tipos de interesses, mas da confusão que se tem em cima disso. Por exemplo: casais, amizades que se formam apenas para gerar um “buzz” nas redes sociais, criar alguma situação para conseguir tirar algo de alguém…
“Mas, Anne, por que você está falando isso?”
Por eu ter falado que hoje em dia está muito mais visível o egoísmo nas pessoas. Falei em um artigo que as pessoas se atraem muito por tragédias. O jornalismo trabalhando mostrando por horas e horas uma notícia ruim e dando apenas um segundo para notícias boas. Tragédias dão mais ibope, visualizações, chamam mais a atenção, assim vamos ficando anestesiados. Percebo que quando acontece algo que achamos inadequado, o que costumamos fazer? Agir com indiferença ou filmar para ter visualizações e curtidas nas redes sociais em vez de intervir, ajudar alguém que está precisando. Por isso falo sobre esta era em que estão muito mais visíveis os narcisistas, grupo grande de pessoas que vive apenas pelos seus próprios prazeres, seus objetivos, em uma individualidade exacerbada. Cada pessoa com que o narcisista se relaciona é vista por ele como apenas algum objeto com alguma utilidade, que a partir do momento em que não for mais útil será descartado. Não confundam transtorno de personalidade narcisista com transtorno de personalidade antissocial (psicopata). Todo psicopata é narcisista, mas nem todo narcisista é psicopata.
O narcisista consegue formular a empatia, mas apenas consigo mesmo, se vê como um ser individual e não como parte de um todo, por causa de uma programação mental e comportamental, aí entra o papel do especialista em psicanálise e psicologia para apagar essa programação, substituindo por outra para poder melhorar a convivência dessa pessoa com o distúrbio de personalidade narcisista.
Já o psicopata não possui a capacidade de gerar afeto por ninguém, nem por si mesmo, ele simplesmente não compreende, não consegue configurar aquilo em sua mente, por isso ele fica distante emocionalmente. Mas não, nem todos os psicopatas são daquela forma retratada em filmes, embora eles sejam, sim, perigosos, por serem manipuladores e dissimulados… não possuem remorso, são frios. Não há cura, mas existe tratamento com um especialista em psiquiatria e psicanálise.
Quantas vezes já não nos deparamos com pessoas assim?
Vitor Santos, perito em análise da linguagem corporal, do canal do YouTube metaforando, fala bastante sobre expressões corporais usando Paul Ekman como base. Ele também já analisou entrevistas com psicopatas famosos e como eles podem ser quaisquer pessoas no mundo; a dra. Cassia Rodrigues, psicóloga e psicanalista que sempre dá aulas sobre narcisistas e psicopatas usando PNL e o DSM-5, desmistifica bastante a questão da psique humana. A quem se interessar pelo assunto, recomendo muito!
Uma coisa que esses dois tipos de transtornos de personalidade têm em comum é além da manipulação, quem possui essas patologias vai sempre se apresentar de primeira como uma pessoa boa ao extremo, uma pessoa muito sedutora e que vai te bajular muito, vai se fazer de muito frágil
“Mas, Anne, existe no budismo uma política de não violência.”
Sim, existe isso, mas não podemos esquecer que assim como em qualquer tipo de crenças existem seus extremismos e somos seres humanos, sendo assim, todos passíveis de possuírem luz e sombra. Essa imagem que se tem de que o budismo é ultrapacifista não é a realidade. Tanto que existem grupos budistas querendo uma hegemonia budista, monges super-radicais usando discursos armamentistas da época da guerra civil do Sri Lanka para garantir a “pureza”, atacando outras crenças, exaltando a violência (como tem crescido no sudeste asiático), sendo que, sim, vai contra o que é pregado no budismo. a busca pelo bem coletivo, por entendermos que não somos seres individuais, separados do mundo, dos seres vivos, dos, seres humanos, e prezar pela dignidade. Temos sim conhecimento das sombras, assim como da luz, colocamos em equilíbrio para alcançar o caminho da iluminação, chegar no nirvana. Principalmente de não se fazer distinção de ninguém, seja pela sua sexualidade, etnia ou religião.
Mas isso não quer dizer que temos que lidar com a violência e com as atitudes inadequadas de forma passiva, e sim que temos que agir da melhor forma que o contexto pede.
Pode ser que o contexto te peça para ser indiferente e relevar. Ou pode ser até que o contexto te peça para interferir e isso pode significar se levantar contra. Como diz a venerável Roshi Cohen, temos que ter ações de compaixão, que seria agirmos de forma a levar a pessoa ao caminho da iluminação, nem anjos nem demônios, temos luzes e sombras que temos que saber equilibrar. A venerável ainda critica a passividade das pessoas diante da violência. Nas palavras da monja, as pessoas estão covardes.
Você também pode gostar
Já até ouvi “Anne, como você pode praticar meditação, yoga e ao mesmo tempo praticar artes marciais? No budismo pode? O budismo não é sobre ser pacífico e zen?”
Por isso é irreal essa imagem que as pessoas têm do budismo, essa ideia de ultrapacifismo, pois não é por esse lado.
É manter o equilíbrio, saber balancear seu lado sombra e seu lado luz. Para mim não há melhor explicação para o budismo do que “caminho do meio”, nem um, nem outro, viver com consciência de suas falas e ações.
Mas, como eu disse, conhecemos as nossas sombras, o nosso caos, assim como conhecemos nossa luz, a nossa ordem e escolhemos a qual damos mais força. Por isso não é problemático praticar yoga, meditação e artes marciais. É exatamente como naquela fábula dos dois lobos, temos uma dualidade. O que importa é qual lobo estamos alimentando.