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Comportamento: É impossível mesmo ser feliz sozinho?

Mulher no banheiro cantando com uma toalha na cabeça e uma escova de dentes na mão.
Viacheslav Iakobchuk / 123RF

Tom Jobim e João Gilberto, na música intitulada “Wave”, que compuseram juntos, falam que “é impossível ser feliz sozinho”. Seria a visão de mundo que traziam, estariam apenas dando um sentido poético à composição ou existe mesmo alguma verdade na afirmativa? Pelo que se sabe, dos seus 67 anos de vida Tom viveu solteiro apenas os primeiros 19 anos de sua juventude, e o parceiro João Gilberto passou por quatro casamentos em sequência até sua morte em 2019. Baseados então nas próprias experiências, teriam razões de sobra para acreditar que não existe outra forma de ser feliz, de acordo com a referência que construíram para si mesmos.

Mas isso se aplicaria a todos, de maneira geral? Mito ou verdade? Durante milênios se aplicou a homens e mulheres o mandamento sagrado do “Crescei e multiplicai-vos”, de forma literal e obrigatória. Assumida como “regra natural”, a receita do crescer, escolher o parceiro e procriar se manteve inalterável para qualquer espécie viva do planeta até bem pouco tempo, enquanto se acreditou que a felicidade estaria diretamente ligada a essa “ordem natural das coisas”, como era defendido pelos psicólogos da época. E não é raro encontrarmos ainda estudiosos da psique humana afirmando categoricamente que pessoas sós estão mais propensas a desenvolver distúrbios físicos e mentais por causa da solidão, o que levanta esta importante questão: não viver ao lado de outra pessoa poderia ser sinônimo de infelicidade ou ainda uma sentença de morte prematura decorrente de isolamento e depressão?

Tal crença atualmente é bastante questionável. E a diferença não estaria na rotina seguida pelas pessoas em si, mas na forma como entendemos o sentido da própria vida, a começar pela questão cultural na época de nossos pais até os conceitos assimilados depois. Quando falamos da influência gerada pela cultura não podemos ignorar as crenças difundidas naquele período histórico de 40 ou 50 anos atrás, quando permanecer sem um parceiro – deliberada ou circunstancialmente – era claramente percebido como anomalia. Para os pais da época, se um jovem demorasse a revelar interesse por garotas, começava-se a levantar suspeitas sobre sua virilidade ou então se buscava descobrir se ele tinha algum problema psíquico, como timidez exacerbada, por exemplo, ou até hormonal.

Já entre as meninas o que assustava era o contexto de preconceito que fatalmente elas enfrentariam com a pecha de “solteirona”, a menina rejeitada que não despertava interesse a ponto de “ficar pra titia”. Diga-se de passagem que a imagem da “solteirona” não era apenas a da “coitadinha” que não conseguiu se casar, mas a da inclusão irreversível num contexto de preconceito que a condenava ao isolamento até pelas colegas de escola, que a viam como uma ameaça a seu relacionamento. Dando-lhes um tratamento próximo ao de prostitutas, as famílias as vigiavam para que não dessem em cima de seus homens, alvos fáceis – segundo a crença difundida – dessas “sirigaitas”, que invariavelmente se ofereciam em busca de aventura, já que não tinham homens para controlá-las.

Mulher ao lado de um carro na estrada com as mãos para cima.
VisionPic .net / Pexels

“Prendam suas cabras que meu bode está solto”, era o ditado popular mais corrente naquele período de opressão explícita sobre os jovens para que não retardassem o momento de buscar por seus parceiros. E se para quem não viveu naquela época uma afirmativa como essa possa chegar como lenda, os que têm mais de 50 não têm dúvida alguma do que significava – por tê-lo vivido ou testemunhado entre os amigos – e da força que tal pensamento possuía para influenciar sua vida. O temor era tão real que pais de meninas começavam a se movimentar para casá-las tão logo atingissem a adolescência, e os meninos não raramente eram iniciados na vida sexual pelos próprios pais, que os levavam a prostíbulos, quando uma eventual recusa era motivo para constrangimentos ou até severos castigos. Pais que tinham filhos resistindo ao “rito de passagem” ou esquivando-se de pretendentes a marido por sua vez sofriam forte pressão social, razão para eles próprios assumirem a frente na “solução do problema”.

A prática recorrente era seguir a cartilha do incentivo à libertinagem junto aos meninos, e do recato sob vigilância exercido sobre as meninas. Para tanto os pais agiam ativamente, a ponto de o desempenho viril e a postura machista do menino ser assunto do qual se orgulhar nas rodas familiares, bem como oferecer um “dote” para atrair o pretendente das filhas não ter conotação de comprar um marido para elas. Jovens a partir dos 18 anos eram vítimas sistemáticas do “bullying” social generalizado, a começar pelos próprios pais, que monitoravam seu comportamento de todas as formas possíveis e imagináveis. Casamentos precoces e “eternos”, portanto, eram a regra, único atalho para se virem livres dessa pressão externa, ainda que isso condenasse os filhos a viver numa solidão a dois. Entre as mulheres o modelo era o de fechar os olhos para a vida paralela dos maridos, que mais tarde se envolveriam com quem realmente lhes interessava; e entre os homens predominava o consenso de que “agora posso fazer o que quiser”.

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Sabemos hoje que muitos “casamentos felizes” daquela época passavam longe de um convívio honesto e respeitoso entre as pessoas, espelhando apenas a hipocrisia de uma sociedade que estimulava o machismo do homem e a submissão da mulher, patrocinando assim a infelicidade de ambos por trás de uma cortina de harmonia e falso moralismo.

Felizmente nestes novos tempos o contexto das relações evoluiu para percepções mais honestas no tocante ao emocional das pessoas, e para práticas mais sutis que as daquela época. Uma delas foi separar tecnicamente conceitos como solidão e solitude, este último tão recente que, ao ser digitado nos computadores modernos, seus corretores automatizados talvez não o identifiquem como uma palavra integrante do idioma. A razão é simples: se para as pessoas ainda não está clara a diferença, é natural que não a incluam entre os verbetes dos dicionários digitais, e até no Word apareça sublinhada por uma linha indicativa de erro.

Silhueta de uma mulher de costas apoiada sobre uma cerca de madeira, ao pôr do sol.
Leah Kelley Pexels

Mas quanto a você, que está lendo isto agora, já entende a distinção entre solitude e solidão? Não seria de espantar que os visse como sinônimos, ainda que, cada vez mais, os termos assumam significados bem distintos. “Solidão” diz respeito a algo interno e nem sempre visível ao observador, e que se instala de forma lenta e gradual até se apossar por completo de sua vítima. Já “solitude” se caracteriza por uma opção deliberada por estar só. Como seus desdobramentos são quase sempre conhecidos apenas por quem as vivencia, é natural que muitos ainda encontrem dificuldade para entender a real diferença entre uma e outra. O indivíduo acometido de solidão é um “portador”, como se diz de alguém que contraiu uma enfermidade, pois que se descobre tomado por ela de maneira similar, não importando se em nível de síndrome temporária, transtorno prolongado ou de uma depressão permanente. Já o mesmo não se pode dizer de quem adota a solitude como forma de tocar a sua vida, pois que se coloca como sujeito ativo de uma escolha e não como vítima de algo sobre o que não consegue exercer controle.

Temos assim bem caracterizados os efeitos de um e de outro sobre a mente humana, remetendo o leitor à questão que deu título a este texto: alguém pode estar sozinho e, ainda assim, ser feliz? A resposta é sim! Pois, como já vimos, em se tratando da solidão – involuntária e não desejada –, seu impacto sobre esse indivíduo dificilmente será positivo, levando-o a percorrer uma trajetória de infelicidade e sofrimento. E que não se subestime seu potencial de produzir danos, pois, se nada for feito a respeito, a solidão pode evoluir para efeitos cada vez mais sérios de ordem emocional, física e espiritual, decorrentes de insegurança, medo, autodepreciação, ausência de amor-próprio ou sentimento de nihilismo, com consequências que podem levar a pessoa a extremos, como o desejo de tirar a própria vida.

Silhueta de um homem parado em frente  a um rio, ao anoitecer.
Lukas Rychvalsky / Pexels

A solitude, em contrapartida, poderá resultar não apenas num emocional sob controle como se fazer acompanhar de um sentimento intenso de felicidade pelas muitas vantagens que consiga produzir, dependendo de quem a adote, e que talvez não o vivenciasse de outra maneira. Isto porque diz respeito apenas ao estado de privacidade que se escolheu manter, e no qual experimentar um certo grau de isolamento não vem associado a sofrimento, mas a prazer.

Algumas correntes que defendem a necessidade de socialização da espécie humana poderão se perguntar se tal escolha seria uma coisa normal. Aí cabe outra pergunta importante: como se definiria o conceito humano de “normalidade”, senão como um parâmetro baseado numa pretensa (e equivocada) uniformidade do todo? Tal ideia parte da premissa de que o “efeito manada” seria uma situação inerente à nossa espécie, e quem o rejeitasse constituiria a parcela “anômala” da humanidade. No entanto sabemos que não é bem por aí, e que o mundo avança muito mais por causa da minoria que rompe com a barreira do medíocre do que pela maioria que reproduz a regra. A audácia, como sabido, não é uma virtude dos que rejeitam a ideia de integrar a exceção, e isso explica tudo.

Como se irá demonstrar, a rotina que não contempla a presença de outra pessoa pode trazer uma ampla gama de possibilidades, que seriam inviáveis num ambiente tradicional de convívio. A lista dos benefícios pode até superar em muitas vezes a de desvantagens, dependendo do grau de autonomia de quem opta por ela, e que pode se estender do campo meramente emocional para o físico a ponto de alterar para melhor todo o contexto de vida da pessoa. Vejamos alguns exemplos:

Mulher de roupas sociais deitada em uma banheira vazia, rindo.
TUBARONES PHOTOGRAPHY / Pexels

• As decisões podem se mostrar mais seguras, pois que não sujeitas às hesitações decorrentes de visões conflitantes;

• O que é tido como rotina desgastante no cotidiano pode se transformar em oportunidade permanente de aprendizagem, quando toda a criatividade é colocada a serviço da simplificação de tarefas;

• A agenda de atividades pode se revelar bem mais útil e produtiva, preenchida apenas com o que melhora a qualidade de vida;

• Ocupando-se apenas com o que faz bem, sem a interferência dos humores alheios, o emocional recebe um substancial “upgrade” em termos de tranquilidade e distanciamento dos conflitos;

• Pode-se programar o tempo para o cultivo de práticas mais positivas, com efeitos significativos, tanto no físico quanto no emocional;

• A saúde sofre menos revezes quando nos incumbimos da própria alimentação, que não fica atrelada às preferências de outras pessoas;

• O leque de atividades se faz mais prazeroso a partir de opções conscientes em sintonia com competências pessoais;

• Fica-se totalmente livre para optar por tudo o que proporciona mais prazer e menos obrigação;

• A capacidade de concentração é bastante ampliada por não ficar sujeita a constantes interrupções externas;

• Para se livrar de uma cena agressiva ou desagradável, basta mudar de canal ou trocar a tela por um livro, por exemplo;

• A solitude permite eliminar toda e qualquer oportunidade de incorporar hábitos nocivos “por osmose”;

• Estabelecem-se critérios próprios para se definir prioridades;

• Organizando a vida de um jeito pessoal, sobra bem mais tempo livre para cuidar de si mesmo;

• A distribuição de tarefas ao longo do dia se mostra mais racional por se mostrar livre de pressão;

• A forma como se lida com a economia passa por profundos ajustes, pois que os gastos são direcionados para o efetivamente necessário ou para o custo-benefício, diante de um prazer que compense o sacrifício.

É claro que as vantagens não ficam resumidas ao que se listou acima, e nem que se descubra algumas coisas que não dá pra fazer sem a companhia de alguém. Mas nada impede que possam ser feitas quando junto de amigos ou lançando mão de uma companhia circunstancial sem precisar abrir mão da solitude que se empenhe em preservar. Sempre haverá pessoas que pensam da mesma forma para compartilhar momentos que pedem uma companhia, sem renunciar a nenhuma das duas coisas. Se assim não fosse não se teria ascetas em absoluta harmonia com sua decisão de passar o resto de sua vida numa caverna das montanhas, ou habitantes de paraísos perdidos que contrariam sua origem para casar e ter filhos na cidade mais poluída do planeta. E se há uma coisa que os estudiosos do comportamento vêm observando há algum tempo e cada vez mais concordando entre si é que pouco importa se você escolheu estar sozinho, junto com alguém no formato tradicional ou num relacionamento gay, ter uma nova companhia toda semana ou se optou por um romance poliamoroso até o último dos seus dias: a fórmula será sempre válida desde que a escolha seja sua e o deixe bem consigo mesmo, convencido de que encontrou a melhor maneira de ser feliz. O resto é detalhe!

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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