Aos amigos leitores, hoje trago como tema “Nietzsche como Decisão: A Interpretação de Heidegger da Sentença Nietzschiana ‘Deus Está Morto’”.
Quando Heidegger elege Nietzsche para pensar o sentido do(e) ser, ele o toma como decisão. Mas o que significa aqui decisão? Ora, em Nietzsche, e por meio dele, segundo Heidegger, opera o que de mais fundamental acontece na história do Ocidente, a saber,
o esgotamento da metafísica. Para Nietzsche, o âmbito fundamental, responsável pelo sentido dado à “vida”, se exauriu. E isso é anunciado na sentença nietzschiana “Deus está morto”.
Mas o que significa essa sentença? E por que Heidegger a toma enquanto decisão? O que Heidegger quer experimentar no pensamento de Nietzsche? Pois bem, as respostas a essas questões encaminharão os objetivos do presente artigo. Parto do pressuposto de que a leitura heideggeriana de Nietzsche, embora seja uma acusação de que o mesmo seja ainda um filósofo metafísico, é também uma leitura de apropriação. Quer dizer, quando Heidegger lê Nietzsche, ele se apropria de elementos importantes do seu pensamento, sobretudo o que Nietzsche entende por tempo. E essa afirmação se confirma no fato de Heidegger admitir que Nietzsche teria percebido o niilismo como lógica interna do pensamento metafísico. Dizer que a metafísica está fundada no niilismo significa dizer que é por ela, e por meio dela, que ocorrem as interpretações equivocadas sobre o ser. E também: é pela metafísica que se desenvolve um ressentimento contra o tempo.
Nietzsche já teria percebido isso, só que informou esse equívoco não a partir do esquecimento do ser, conforme faz Heidegger, mas, sim, denunciando a metafísica como moral; quer dizer, denunciando a metafísica enquanto uma forma de pensar resultante de um “instinto fraco”, que atribui uma ordem absoluta para fundar o mundo em detrimento do reconhecimento fático da existência.
Fático entendido como o reconhecimento dos aspectos finitos e passageiros do existir, sendo estes os elementos decisivos em nossas “ações” diante das exigências para sermos.
A metafísica, no entender de Nietzsche, é uma forma de vida que, enquanto exercício do pensamento, se desvia da imanência das forças finitas da “vontade” por não suportar seu caráter de devir. Esse desvio da metafísica tem uma implicação com a questão do tempo, uma vez que é no tempo, finito, que se opera o devir. Nietzsche já teria observado a relação que há entre metafísica e tempo, portanto sua acusação do niilismo operante na metafísica tem, assim como em Heidegger, um reconhecimento da ausência da assunção da questão do tempo enquanto o decisivo para o pensamento.
Heidegger mesmo reconhece isso. Em seu texto “Quem é o Zaratustra de Nietzsche” (Ensaios e Conferências), confere a Nietzsche a virtude de, em seu anúncio da doutrina do eterno retorno, perceber uma vingança contra o tempo por parte dos filósofos metafísicos; sobretudo contra o vir a ser do tempo que não certifica o passado. Essa vingança contra o tempo é a marca da metafísica e, em nosso entendimento, é isso que dá fôlego a Heidegger para conceber a temporalidade finita do homem como o que fica esquecido em toda a história da metafísica. As reflexões que seguem procuram fazer uma leitura heideggeriana de Nietzsche, porém, distanciando-se dela, mostrando, sobretudo, como Heidegger deve ao pensamento de Nietzsche.
A sentença nietzschiana “Deus está morto”:
Deixemos o que afirmamos acima em aberto e voltemos para a análise da sentença nietzschiana “Deus está morto”, que é o motivo maior das nossas reflexões, mas não perderemos de vista o que acima deixamos, pois a denúncia nietzschiana da metafísica
tem uma relação direta com o modo como os filósofos, denominados por Nietzsche de moralistas/metafísicos, desenvolvem seus pensamentos na determinação secreta do tempo. Em nosso entender, Heidegger herda essa denúncia, adaptando-a à sua questão do sentido do ser.
A sentença a respeito da morte de Deus é proferida em “A Gaia Ciência”, parágrafo 125, intitulado “O homem desvairado”. A partir do título desse aforismo, podemos perguntar: será que só os loucos podem afirmar a morte de Deus? É o que parece, porém, se entendermos a loucura como um modo de existir que está para além do bem e do mal; e ainda: uma existência inocente, que, segundo Eugen Fink (1988), é capaz de experimentar o sentido estético do ser. E é isso que de fato Nietzsche pensa. Nietzsche elege um “louco” para anunciar a morte de Deus porque esse ato é grandioso. E é grandioso porque está em jogo o futuro da humanidade. Não é qualquer um que pode perceber isso; portanto, não é qualquer um que ingressa na história com tal intento. Somente quem deixou atrás de si os ensinamentos da filosofia, da religião, da moral e da ciência pode perceber que “Deus morreu”.
Ao proferir a sentença, Nietzsche está confirmando que por meio dele a história do Ocidente não é mais a mesma, pois experimenta um novo momento para ser. Isso quer dizer que ele suporta uma decisão fundada em uma história, que por meio dele cobra um novo sentido para a “vida”. Para ele, o Deus que morre não é o deus das religiões; quem morre é o âmbito metafísico, suprassensível, que sempre alimentou as grandes aspirações humanas. Daí Nietzsche entender Deus como um valor; valor que perdeu seu sentido porque a vida quer outras formas, não mais baseadas em âmbitos transcendentais, conforme opera na metafísica. E ainda: Deus morre no tempo em que o homem não precisa mais de valores metafísicos para fundar seu existir.
Para Nietzsche, esse tempo é o tempo moderno; tempo em que predominam os valores imanentes da ciência. Quem mata Deus é o homem moderno, mas realiza tal intento sem ter a consciência de tal ato. Daí Nietzsche assumir a máscara do louco para realizar o anúncio. Ele se entende como um homem moderno, mas toma distância do seu tempo porque sabe da grandeza da sua missão. Sabe também que não é moderno como os outros, no caso, ele não é moderno como os cientistas. Nesse aspecto, Nietzsche, usando a máscara de Hermes, se mostra um hermeneuta; isto é, aquele que traz uma nova mensagem para uma nova Era, desvelando, portanto, no seu tempo, o que potencialmente está esquecido. O homem moderno, que também mata Deus, não percebe a grandeza desse ato, pois colocou o método e a investigação no lugar que ficou vazio. É importante ressaltar aqui o fato de Nietzsche já perceber o que é essencial na ciência moderna, a saber, o método. Heidegger, em várias passagens de seus textos, retoma essa constatação nietzschiana.
Para Heidegger, a essência moderna da ciência se caracteriza pelo método, cujo sentido se dá no planejar, antecipadamente, o que vai ser aplicado no ser ou natureza.
Aprisionados ao método, eles, os homens modernos, desprezam o episódio da “morte de Deus”, logo desprezam para si a possibilidade de ver o que é grande nesse ato. Daí Heidegger perceber a importância do que é anunciado por Nietzsche na “morte de Deus”. Presa ao método, a atividade científica não pensa, portanto não toma distância do imperativo metodológico que dá forma a todo “espaço” do seu tempo. Para Heidegger, Nietzsche constata isso, sobretudo quando se intitula um louco. Somente esse é o verdadeiro pensador, pois anuncia o que é grande e sabe que o seu pensar traz a peste e não a cura, como nos diz Clément Rosset (1989), se referindo a Artaud e ao teatro.
Aos autênticos pensadores está reservado anunciar e suportar o que é grandioso, na hora em que são convocados à decisão; é por isso que os homens de ciência não anunciam a “morte de Deus”, embora o tenham matado.
Curiosamente, esse entendimento do pensamento nietzschiano mostrado acima é de Heidegger; pois é Nietzsche, como vimos, quem afirma que o âmbito metafísico, âmbito da transcendência, perdeu força com a morte de Deus. Para Heidegger, Nietzsche, com o anúncio de sua sentença, percebe que uma novidade está posta no ar, e que essa novidade tem relação com o futuro da humanidade e sua relação com a história da metafísica; metafísica que há muito tem induzido o homem a depor em seu favor. Portanto, para Heidegger, Nietzsche está dialogando com o que mais decisivo acontece no Ocidente, a saber, Nietzsche se encontra convocado a responder a um novo apelo para o significado do ser. Nesse aspecto, para o pensamento de Heidegger, Nietzsche se imbrica com a história da metafísica e ainda depõe em seu âmbito essencial.
Outros autores também comungam com a interpretação heideggeriana; é o caso de Jaspers, quando vê em Nietzsche um defensor da vida como criação: “Como é que o criar entra em cena para Nietzsche no lugar da liberdade ou como é que, para ele, a liberdade
é criar, isso é algo que precisamos desenvolver de uma maneira detalhada” (JASPERS, 2015). Embora fale em criação, vê-se que, para Jaspers, o âmbito da liberdade, âmbito da transcendência, ao assumir a forma do “lugar” da criação funda-se no âmbito da metafísica, uma vez que depõe no espaço da transcendência. A transcendência é o “lugar” que se torna metafísico quando não é assumida enquanto tal, quer dizer, quando ela não é assumida na forma de êxtase temporal. Heidegger e Jaspers (por tabela hermenêutica) acreditam que Nietzsche, com o conceito de vontade de poder ou conceito de criação, ao preencher o âmbito fático/extático do transcender, âmbito que possibilita a metafísica, nomeia o ser pelo ente e, por conseguinte, depõe em favor da história da metafísica.
Acima de tudo, é Heidegger quem afirma que a história do Ocidente está marcada pela dinâmica da metafísica, portanto é ele quem a caracteriza por uma forma de pensar que esquece o ser enquanto o transcender fático temporal; ou ainda, é no seu pensamento que a metafísica está caracterizada por uma deficiência, cuja consequência é o esquecimento do ser (temporalidade) e sua relação fática com o homem.
Opondo-se e ao mesmo tempo fazendo uma provocação ao pensamento heideggeriano, pergunta-se então: não encontramos em Nietzsche uma denúncia, por meio do anúncio da morte de Deus, de que a metafísica se caracteriza por engendrar valores absolutos para fundar o sentido do ser? Esse absoluto, enquanto sentido, não seria uma forma do tempo? Retomando o que deixamos acima, na introdução, se observa nesse diagnóstico nietzschiano uma associação entre metafísica e tempo, quer dizer, o desvio operante na criação dos valores absolutos acaba vinculando o modo metafísico de pensar com a questão do tempo.
Mais uma vez, reforçamos que Nietzsche percebe uma falha temporal na metafísica quando afirma que Deus e outros “artigos de fé”, como o bem, a causalidade, o princípio de identidade etc., possibilitam uma ordem absoluta e verdadeira para tudo que é e pode ser. Isso está explícito quando esse pensador afirma que a história da metafísica se funda na lógica do niilismo.
Ora, o niilismo é uma forma de ser e de pensar caracterizada por engendrar valores absolutos. Portanto, se concretiza quando os filósofos, por meio da metafísica, engendram valores que dão sentido à vida. Mas, diferentemente do que se pensa, o niilismo também resulta de uma criação e, enquanto tal, também responde por uma forma de afirmação do devir. Portanto, responde por uma afirmação do tempo. Mas essa afirmação Nietzsche a concebe simultaneamente como uma afirmação que nega. Entretanto, não se entenda afirmação e negação em sentido moral de bem e mal, pois ambas estão decididas antecipadamente pela vida enquanto vontade de poder.
A vida quer o nada ao nada querer. Para Nietzsche, não se pode contra o querer. Assim, a vontade é um “imperativo”, que necessariamente se inflige, dando sentido ao ser, mesmo que esse sentido tenha valor de tempo absoluto, isto é, de nada. Mas é preciso entender que esse nada não tem nada de lógico, quer dizer, de negação. O nada, firmado ao ser pela vontade, significa que o que se valoriza não corresponde ao que possibilita o valor, portanto não possibilita assegurar o poder que permite a criação. O nada resulta de um “cansaço”, isto é, resulta de um desvio da afirmação da imanência do devir finito. Daí o não suportar metafísico do poder da criação, poder este caracterizado pela assunção do devir finito do existir na forma do instante que passa. É Nietzsche quem pensa assim, quer dizer, é Nietzsche quem percebe que a operacionalidade da vontade, enquanto criação, se desmembra no interior do pensamento metafísico.
Entretanto, seria o imperativo da vontade, a criação, operante, segundo Nietzsche, nos filósofos, um procedimento metafísico? Para Nietzsche, os filósofos metafísicos são também criadores, porque a vontade de poder atua sobre eles. Mas eles são metafísicos porque não se enxergam, em seu tempo, nas mesmas; daí não se entenderem criadores e, sim, criaturas. Criam fundando um sentido para a vida fora da criação. Medem-se, portanto, por um valor absoluto que se encontra no além. Os filósofos, para Nietzsche, esquecem a vontade de poder enquanto devir imanente, por isso desenvolvem, em seu tempo, a lógica do niilismo.
Voltemos a perguntar: Heidegger não teria herdado essa crítica nietzschiana? A vontade de poder como criação não seria a assunção fática da vida? Essas questões são possíveis quando analisamos o pensamento de Heidegger sobre Nietzsche, sobretudo quando Heidegger analisa a sentença nietzschiana “Deus está morto”; portanto quando afirma que Nietzsche entende o niilismo como lógica interna operante na história da metafísica. Responderemos a essas perguntas se entendermos o que Heidegger entende pelos conceitos nietzschianos de vontade de poder, eterno retorno do mesmo, niilismo e super-homem.
Afirmamos no início que, para Heidegger, Nietzsche ingressa na história da metafísica como uma decisão, pois, por ele, a metafísica atinge suas últimas possibilidades, a saber, os valores transcendentes se esgotam e impera no mundo uma falta de sentido total, pois sem Deus não há mais a verdade, e o mundo real portanto perde também o seu sentido. Não impera mais nem o mundo suprassensível, nem o mundo sensível enquanto doadores de valor. Há instaurado um nada absoluto, logo uma falta de sentido geral. Mas Heidegger acha que Nietzsche vê nesse cenário negativo algo de positivo. Ele entende que Nietzsche percebe um cansaço na metafísica e que a mesma chegou ao fim. E é essa visão da metafísica por parte de Nietzsche que interessa a Heidegger.
Como último metafísico, segundo Heidegger, Nietzsche teria percebido os desvios dos filósofos, entendendo-os como niilistas. Assim, o exame do niilismo desenvolvido por Nietzsche será a chave para revelar seu pensamento.
O entendimento de Heidegger da vontade de poder, eterno retorno e super-homem:
Vejamos então o que Heidegger entende por vontade de poder, eterno retorno e super-homem. Vejamos também como esses conceitos ainda são entendidos por Heidegger como metafísicos, portanto ainda niilistas; e como, por meio desses conceitos, de uma forma indireta, Heidegger se apropria do pensamento nietzschiano. São vários os textos nos quais Heidegger examina os principais conceitos nietzschianos. Três deles nos servem de base para nossas análises, a saber: “A sentença Deus está morto”, encontrada na obra – Holzweg – “Caminhos de Floresta”, caminho do campo e ainda, “caminhos que levam a lugar nenhum”, “Nietzsche – metafísica e niilismo” e finalmente o texto “Quem é o Zaratustra de Nietzsche”.
A leitura desses textos não esgota a compreensão que Heidegger tem de Nietzsche, mas são textos significativos para quem quer compreender tal leitura. Na sentença “Deus está morto”, por exemplo, há muitas informações sobre a revelação dos conceitos nietzschianos por parte de Heidegger. Sempre nas leituras de Heidegger ocorre uma apropriação dos autores; estes são “obrigados” a mostrar seus pensamentos por meio dos seus não ditos. Dito de outra maneira, Heidegger faz aparecer o que está oculto, não dito, nos pensamentos dos filósofos. A tônica é sempre a mesma: todos estão presos à metafísica, pois quando pensam o sentido do real, quer dizer, quando pensam o sentido do ser, o tomam por um ente exemplar. Assim, cabe-nos mostrar, no pensamento de Heidegger, o que significa o ser e sua relação com a metafísica.
Em primeiro lugar, devemos retirar do ser o artigo, portanto fiquemos somente com ser; em itálico, de preferência. Ser, para Heidegger, é o que sempre deu fôlego aos filósofos, quer dizer, o que sempre exigiu do pensamento a doação do sentido. Já Aristóteles, em sua obra “Metafísica”, teria mostrado isso. Aristóteles afirma que todos os filósofos anteriores a ele se mantêm determinados a pensar o significado fundamental das coisas por exigência do próprio ser. Isso mostra que é o próprio ser que assegura a questão sobre o ente e que mantém aberto o espaço da metafísica. Observem que aqui a metafísica não é vista como uma disciplina escolar, metafísica é o espaço de garantia das respostas dadas às exigências colocadas pelo ser.
Heidegger retoma esse raciocínio e lhe dá uma conotação própria. Para ele, os filósofos, quando são solicitados a dar um sentido ao ser, não o percebem enquanto ser que se dá somente na correlação com o ser do homem. Isso se desmembra no problema da identificação do ser. Para Heidegger, os filósofos estão sempre entificando o ser e, portanto, destoando o sentido da palavra metafísica, uma vez que a mesma passa a ser entendida como um “espaço” da correlação do homem com o ser. Quer dizer, os filósofos atuam no âmbito metafísico, reforçando a mesma.
Quando analisa o niilismo na filosofia de Nietzsche, por meio do texto “A sentença nietzschiana ‘Deus está morto’”, Heidegger (2003, p. 483) nos dá uma pista do que seja a metafísica. Diz ele:
A metafísica é o espaço histórico no interior do qual se torna destino o fato de o mundo suprassensível, as ideias, a lei moral, a autoridade da razão, o progresso, a felicidade da maioria, a cultura, a civilização perderem o seu poder edificador e transformarem-se em nada.
Em vários textos, Heidegger mostra o seu entendimento da metafísica. Elegemos especificamente essa citação porque ela mostra a metafísica como o espaço que assegura a história do niilismo. Citamos a mesma para fazer uma provocação com o pensamento de Heidegger, porque seu contexto é o resultado do que Heidegger examina por niilismo, segundo Nietzsche. Veja que a metafísica aí se mostra como um espaço histórico que suporta o destino do sentido dado ao ente na sua totalidade. Esse conceito é de Heidegger. Nos seus textos, a metafísica é mesmo um “lugar” por onde o sentido do ente se decide. E isso é histórico porque em cada época o ente, no seu todo, assume forma diferente. Nesse caso, as diversas épocas acompanham as decisões dos filósofos quando são solicitados a dar o sentido do seu tempo. É o tempo então que exige o sentido do ente. É aqui que Heidegger percebe a armadilha em que caem os filósofos.
O tempo que exige o sentido é o presente. Mergulhado nos entes e afetado pelos mesmos, o pensamento humano se inquieta e se espanta com essa afecção. Daí formularem a pergunta: o que é o ente enquanto ente? As respostas serão decididas por força do presente; e o sentido dado, mediante a resposta dada para a pergunta, receberá um sentido de eternidade. Pela eternidade, o ser que exige o sentido do ente se perdeu. Para entender esse processo, é preciso voltar a exercitar a pergunta pelo ser, que na versão de tempo mostra-se como o decisivo na história da metafísica. Para Heidegger, esse tempo é o da temporalidade humana. Pela temporalidade já se percebe a imbricação entre ser e homem. Portanto, para que o ser se mostre, precisa-se mostrá-lo na relação direta com o homem.
Ser resulta da temporalidade humana e se oferece assim porque a estrutura humana é temporal, cumprindo-se enquanto temporalidade finita e não eterna. Foi a relação finita de ser homem que a metafísica esqueceu. Guardemos essa definição de ser homem e voltemos, a partir da citação acima, à leitura heideggeriana de Nietzsche, mostrando como Heidegger apresenta os conceitos nietzschianos, como se apropria dos mesmos.
A citação acima está direcionada ao modo como Nietzsche mostra o niilismo; então, em consideração a essa citação, podemos dizer que Nietzsche entende o niilismo, associando o mesmo ao poder edificante que se transforma em nada. Ora, o poder edificante, segundo
a citação, se transforma em nada no âmbito da metafísica. Isso quer dizer, como já desenvolvemos acima, que no interior da metafísica há um fluxo de troca de valores. Veja, por exemplo, o suprassensível, as ideias etc., na dinâmica da metafísica se transformam
em nada. Nada aqui é a perda de sentido, isto é, perda de valor ou valor de nada. Então a metafísica, para Nietzsche, é uma constante desvalorização dos valores; assim, os homens, da mesma forma que criam os valores para dar sentido ao seu tempo e à sua vida, os desprezam; portanto os desvalorizam. Mas por que isso se dá? Aí precisamos entender o que significam os valores e o que, por trás deles, ditam suas permanências e suas desvalorizações.
No texto “A sentença nietzschiana ‘Deus está morto’”, Heidegger pergunta o que Nietzsche entende por valor, e formula tal questão usando uma anotação do próprio Nietzsche, pronunciada no seu livro “Vontade de Potência”.
Cito Heidegger citando Nietzsche: “O ponto de vista do ‘valor’ é o ponto de vista das condições de conservação-elevação em vista de conformações complexas de duração relativa no interior do devir” (2003, p. 489). Heidegger utilizará outra citação para explicitar o significado de valor e como este se mostra como ponto de vista:
Se Nietzsche conclui a caracterização da essência do valor com a palavra devir, então essa palavra conclusiva fornece a indicação do âmbito fundamental ao qual pertencem, em geral e sozinhos, os valores e as avaliações. “O devir” é para Nietzsche “a vontade de poder”. A “vontade de poder” é assim o traço fundamental da “vida” – palavra que Nietzsche também utiliza frequentemente em sua significação ampla, segundo a qual ela é equiparada no interior da metafísica (comparar Hegel) com devir. Vontade de poder, devir, vida e Ser no sentido mais amplo significam na linguagem nietzschiana o mesmo. Por aqui se percebe que o valor é um ponto de vista. (HEIDEGGER, 2003)
Pela explicitação do conceito de valor se chega ao conceito máximo nietzschiano de vontade de poder. É a vontade de poder que cria os valores para conservação/elevação da vida, mas vida enquanto vontade de poder. Nesse caso, tudo que é criado para conservar a vontade é criado também para sua elevação. Então, tudo é resultado da vontade de poder; e como esta quer se elevar seu querer é querer o poder. Nesse aspecto, estamos em um círculo. A vontade que é poder quer a própria vontade. Daí Heidegger nomear esse conceito nietzschiano por vontade de vontade. A vontade não quer a outro senão a si mesma. Com essa definição, vislumbramos logo o conceito de eterno retorno. O retorno é o retorno da vontade para si mesma. Isso traduzido na linguagem heideggeriana diz o seguinte: se o ente no seu todo é decidido pela vontade de poder, isso implica em afirmar que o modo como se dá o ente é o retorno. Quer dizer, quem imprime o valor ao ente é a condição de a vontade retornar. Ser, para algo, significa estar caracterizado pela vontade que se quer. Cada valor dado a algo se torna potenciação da vontade, vontade que se quer.
Mas se a vontade sempre quer, quer dizer, quer a si para crescer, ela então não para de querer a si, portanto ela é o próprio devir. Mas um devir imanente fundado no retorno. Quando esse devir opera, subjacente à filosofia, nós podemos perceber o que permanece na troca de valores por parte dos filósofos. O que permanece é o querer da vontade traduzido no seu crescimento. Assim, quando um valor enfraquece a vontade, ela o troca por outro, dando vazão ao fluxo do devir. Nesse caso, Nietzsche teria percebido o que no devir permanece; e o que permanece no mesmo é a vontade de poder, enquanto devir.
É aqui que Heidegger denuncia e critica Nietzsche; mas é aqui também que ele de Nietzsche se apropria.
Para Heidegger, o que permanece sempre na história da metafísica é a pergunta e a resposta pelo ser. Quer dizer, todo filósofo, em seu tempo, sempre está submetido à exigência em dizer o que é o ente; por isso, eles pensam sempre na mesma coisa. Nietzsche diz que a vontade de poder, como devir, é o que sempre cobra dos filósofos o sentido para a vida, a saber, o sentido do ser. A história da metafísica considerada por Nietzsche enquanto a história de um erro depõe em favor disso. O erro está no fato de os filósofos não afirmarem a vontade de poder como exigência. Heidegger sabe que Nietzsche percebeu no retorno da vontade a exigência do sentido. Mas é cruel com o mesmo ao afirmar que a vontade de poder, no modo do eterno retorno, imprime a marca absoluta para o sentido do ser, portanto imprime no ser a marca de um ente (tempo) total.
Segundo Heidegger, os conceitos de vontade de poder, eterno retorno e super-homem se comungam, o que implica em dizer que os dois primeiros conceitos estão articulados para beneficiar o último, a saber, o conceito de super-homem. No entender de Heidegger, a filosofia de Nietzsche é uma preparação para a superação do ser do homem concebido pela metafísica até aqui, quer dizer, a filosofia de Nietzsche vislumbra superar o conceito do ser humano apresentado pela metafísica em detrimento de uma nova humanidade apta a assumir o controle da terra no tempo em que Deus morreu. Veja o que diz Heidegger no seu texto “Quem é o Zaratustra de Nietzsche”:
Mas de onde vem o clamor pela necessidade do super-homem? Por que o homem não é mais suficiente? Porque Nietzsche reconhece o instante histórico em que o homem se prepara para entrar na total dominação da terra. Nietzsche é o primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta decisiva e a pensa por meio de toda sua amplitude metafísica. A pergunta é: o homem enquanto homem, em sua constituição de essência até agora vigente, está preparado para assumir a dominação da terra? Se não, o que então precisa acontecer com o homem atual, de modo que ele se “submeta” à Terra e assim cumpra a palavra de um velho testamento? Não será preciso conduzir o homem atual para além de si mesmo, para poder corresponder a essa missão? Se assim é então o super-homem, pensado corretamente, pode não ser o produto de uma fantasia desenfreada e degenerada, turbilhonando no vazio. A natureza desse super-homem não se deixa, de modo algum, descobrir historicamente por meio de uma análise da época moderna. Por isso, jamais deveremos buscar a configuração essencial do super-homem naquelas figuras que, como “altos executivos”, são empurradas para a cúpula das diferentes formas de organização de uma vontade de poder malvista e mal-interpretada. Uma coisa devemos observar imediatamente: esse pensamento, que se põe a pensar a figura de um mestre que ensina o super-homem, diz respeito a nós, à Europa, a toda Terra, não somente hoje, mas sobretudo no amanhã. (HEIDEGGER, 2001).
Se Nietzsche, no entender de Heidegger, atrela a nova humanidade (o super-homem) à vontade de poder, então esse novo homem, apregoado por Nietzsche, precisa se reconciliar com o tempo, uma vez que a essência da vontade é o devir. Veja que é o próprio Heidegger (2001) que nos leva a pensar assim quando afirma: “A natureza desse super-homem não
se deixa, de modo algum, descobrir historicamente por meio de uma análise da época moderna”. A reconciliação com o devir se dará em um tempo para além do tempo moderno. Isso Nietzsche já sugere quando propõe a superação do homem atual. Superar o homem atual significa se reconciliar com a vontade de potência, para a qual o homem moderno não está apto. Na citação acima, Heidegger confirma isso, pois mostra que o super-homem, anunciado por Nietzsche, está além de ser compreendido pelo tempo moderno. Ora, em nosso entender, é aqui que Heidegger percebe que Nietzsche está falando sobre a relação entre o ser e o tempo.
Para Nietzsche, o super-homem, como nova humanidade, não pode ser concebido pela modernidade. Segundo ele, o novo homem só se confirma quando assumir a vontade de poder operante no devir. Mas assumir a vontade de poder não é assumir o tempo? Sobretudo o tempo finito que é a marca do devir? De fato, isso nós vemos em Nietzsche. Mas, no entanto, Heidegger precisa dizer que esse tempo da vontade, dado no retorno da vontade para si, cumpre-se enquanto “acabamento” da metafísica; logo, faz da mesma o sentido absoluto que dá sustentação ao ente. Na forma absoluta, a vontade, portanto, assume a forma eterna do tempo. Para Heidegger, o eterno retorno é o modo como a vontade se dá em seu devir; repetindo: mas esse retorno se dá em um sentido absoluto. Com isso, Heidegger vincula Nietzsche como pertencendo à história da metafísica. Quer dizer, Nietzsche seria aquela espécie de pensador que, não percebendo a relação que o sentido do ente tem com o tempo, acaba, sem saber, por pensar o ser enquanto ente absoluto. Entretanto, se olharmos bem a interpretação de Heidegger sobre Nietzsche na citação acima, perceberemos que Heidegger refere-se ao sentido do super-homem de Nietzsche como o sentido da terra. De fato, no parágrafo 3 de sua obra máxima, “Assim Falou Zaratustra”, Nietzsche (2011) defende o super-homem, enquanto sentido da terra, contra os que fixam sua existência no suprassensível: “Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não”.
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Em Nietzsche, a terra não teria o sentido de mortalidade? E também: o sentido da terra mostrado por Heidegger, referindo-se a Nietzsche, não seria um chamamento para pensarmos a assunção do devir enquanto tempo existencial finito? Nietzsche, em suas obras, aponta para a entrega da vontade de poder para fazer valer o sentido do novo homem. Mas essa entrega, como já afirmamos antes, é uma entrega ao devir, isto é, uma ratificação ao tempo que passa. Mas quando Heidegger fala da temporalidade (ek-sistente) do Da-sein (Ser-aí) não está falando também do tempo finito? Com essa pergunta encerramos provisoriamente esta reflexão.
Sabemos que o conceito de tempo em Heidegger é complexo, como também seu conceito de ser. Este último, na imbricação com o tempo, está presente em toda sua produção filosófica. Ser é tempo que se esvai, tempo que não se alcança; daí o porquê de os filósofos pensarem o ser na forma esquecida. O pensamento não alcança o tempo da sua permissão, fazendo com que os humanos como seres pensantes decaiam em seus afazeres ordinários.
Nietzsche, para Heidegger, esqueceu o ser quando anunciou seu conceito máximo de vontade de poder. Mas mostramos que Nietzsche, ao mostrar a história da filosofia como niilista, estava apontando um “erro” operante na mesma. Para nós, é nesse erro, e no anúncio do super-homem como o tipo apto a assumir a vontade de poder, que vemos o aceno nietzschiano desenvolvido por Heidegger para a relação do ser com o tempo.
Pois bem, são a essas questões que chegamos quando analisamos a leitura que Heidegger faz de Nietzsche.