Qualquer texto que fale a respeito ficará longe de explicar o TAO. Como diz o “Tao Te Ching”, já no primeiro momento de sua leitura, “o tao que pode ser expresso não é o Tao verdadeiro, o nome que pode ser enunciado não é o Nome real”. Alguns se referem ao “Tao Te Ching” como o livro dos mistérios, quando mistério é tudo o que ele se propõe a não ser, parecendo assim somente aos que ainda não iniciaram a caminhada, pois que de nada vale aquilo que não possa ser levado à prática. Contrariamente, o mistério tem como característica permanecer inacessível e desconhecido. Precisa ficar de fora do nosso rol de descobertas para se manter como mistério, permitindo no máximo que o admitamos como hipótese. Só por isso o Tao já não poderia ser visto dessa forma, mas sim como algo que o aspirante encontrará algum tempo depois de trilhar seu caminho em direção ao Conhecimento.
A primeira percepção objetiva que não passará despercebida ao iniciante da Senda é a diferença entre artigos definidos e indefinidos ou entre iniciais maiúsculas e minúsculas em transcrições para outros idiomas. Por se mostrar inexistente no idioma em que foi escrito, o “Tao Te Ching” não se preocupa com tais coisas, mas nos demais sua grafia introduz um importante diferencial entre o real e o irreal nos conceitos abordados, daí porque se faz necessário mantê-los. Quando se fala do Tao, qualquer adjetivo se mostra redundante e sem sentido, pois que Ele fala por si mesmo. Em irrestrita coerência com o que vai desvelando sutil e imperceptivelmente, o Tao jamais se autonomeia ou se revela em termos concretos, pois que tem na forma uma ilusão dos sentidos, um mero recurso de quem precisa de uma linha para separar o real do irreal, e o denso do sutil. Ao longo do Caminho, portanto, tais diferenças se farão apenas sentidas em maior ou menor grau pelo viandante, em sintonia com seu estágio de avanço. Ele o perceberá como um teste aplicado ao seu patamar em um instante preciso, pois que algumas lições são tão sutis que só obterá consciência delas em algum momento mais distanciado do ponto de partida do que os que lhe vêm atrás. E é quando o andejo acordará para a distinção entre um caminho e O Caminho, ou entre um conhecimento específico e O Conhecimento, identificando na concisão subjetiva deste último o quesito que dispensa todo adjetivo que se proponha a qualificá-lo.
O Sem nome é o princípio do céu e da terra, o nominado é a mãe de 10 mil coisas.”
Em seu movimento sincronizado de expansão e contração, e giro sobre si mesmo nos dois sentidos, o Tao expressa a natureza intrínseca do Universo de manter o equilíbrio em moto-perpétuo. Assim, o primeiro princípio que se possa apreender por meio do conhecimento – e não o restringindo aqui apenas ao reservado à inteligência humana – é que o conceito de Absoluto na existência só se aplica ao próprio Tao. Todas as demais coisas – tangíveis e intangíveis – estão contidas nele e se fazem relativas, sendo entendidas como verdadeiras apenas na ótica do observador. “Significaria dizer que o Tao e o próprio Deus em que acredito se tratariam de uma mesma coisa?” – é a pergunta que alguém se faria. Conceitualmente sim! Uma vez entendido o Tao como o princípio de tudo – aquele que cria, mantém e transforma ao final de cada ciclo – então os conceitos do Tao e de Deus se confundem, exceto pelo fato de que a existência de Deus pressupõe haver uma crença por parte de sua própria criação, algo que não se aplica ao Tao, posto que não está atrelado à nossa percepção para lhe justificar a existência – subjacente e permeável a tudo – e transcendendo do visível ao invisível, do existente ao inexistente pelos parâmetros de quem esteja no ponto de observação.
Assim, a permanente não aspiração é contemplar as Maravilhas.”
Este outro princípio expressa mais uma diferença em relação ao Deus em que se convencionou acreditar: a de que o Tao não se coloca como alternativa entre escolhidos e não escolhidos. Ele estará regulando a vida de todos, independentemente das escolhas que façam, e cada qual colhe o resultado do que semeia por efeito de uma lei natural, e não sob a égide de recompensa ou punição. Ninguém precisa agradar ao Tao, pedir proteção, temer sua ira ou exaltar sua glória: apenas agir assim em relação a si mesmo, e colherá o que de melhor o Universo tem a oferecer, conscientemente ou não. Não nos é cobrado amá-lo sobre todas as coisas, nem somos proibidos de tomar em vão ao que não tem nome. Não há um dia para se guardar, nem honras obrigatórias, e a vida subtraída por si mesma produzirá perdas a quem a tirou. O Tao dá à castidade o peso de uma escolha dentre muitas, à mentira apenas a vergonha pela descoberta e a desonra, e para o desejo sobre o que não nos pertence a resposta de seu legítimo dono ou de seu preposto.
Em resumo, o Tao concentra sua atuação em um único e básico conceito que rege todo e qualquer elemento contido no Universo, o do Equilíbrio a que Buda chamou de “O Caminho do Meio”. Em seu tempo, a mesma opção dos místicos pela abstenção dos prazeres segue viva em nossos dias, em que se prega a automortificação para que o estado de pureza e desprendimento seja obtido. Meditação à exaustão, orar várias vezes ao dia e jejuns prolongados são impostos a título de elevação do espírito em detrimento aos apelos do corpo. Apesar disso, muitos não evoluem, culpando a própria pequenez espiritual, quando o que lhes falta é consciência e bom senso.
O príncipe Sidarta Gautama – depois conhecido como Buda – o descobriu quando, no auge de sua fraqueza física devido às suas práticas de elevação, viu um barqueiro descendo o rio Nairanjhana e junto um rapaz com um alaúde nas mãos. “Se apertares demasiado a corda, ela arrebentará” – disse ele ao jovem discípulo. – “E se a afrouxares demais, ela não produzirá nenhum som!” Após ter vivido sua epifania e fugido do palácio, Sidarta caminhara pelas florestas seguindo os gurus que lá se isolavam em cavernas, e naquele momento trazia o corpo enfraquecido pela fome, os pés machucados por pedras e espinhos e a mente entorpecida pelo sono. Prática e praticante se confundiam sem que se pudesse distingui-los, de modo que se viu distanciado da própria ancoragem interior. Acreditava obter total domínio dos sentidos, mas, em vez disso, eles o deixavam cada vez mais exaurido e incapaz de se mover, quanto mais de se colocar maior do que já fora antes. No momento em que ouviu as palavras ditas ao aprendiz por seu mestre, ele se percebeu em estreita sintonia com o Equilíbrio do Tao e, por conseguinte, com todo o Universo ao constatar que, em lugar de uma batalha inglória, deveria tão somente permitir que sua natureza seguisse seu curso. E a natureza de Sidarta já lhe havia apontado o Caminho a seguir quando ainda dentro dos muros do palácio sequer se cobrava a abdicar de sua experiência física.
Não somos seres humanos vivendo uma experiência espiritual, mas seres espirituais vivendo uma experiência humana.”
(Teilhard de Chardin)
O Tao não nos cobra coisa alguma que precisemos tomar como obrigação. Seja o que for que façamos ao nos sintonizarmos com ele é fruto de uma consciência intrínseca que brota de nossa própria essência em algum momento, e daí em diante nos transmuta em algo diferente de tudo o que já fomos. O Tao não faz escolhas dentre nós, mas nos garante a prerrogativa de fazer as nossas. Revela-se no livre-arbítrio na sua mais legítima concepção, não aquele que nos coloca entre o bem e o mal, entre o crer e o não crer, ou entre o céu e o inferno. O Tao nos desperta para um outro padrão ao mostrar que, onde a escolha se resume a dois lados, não há Liberdade, mas prisão. É a diversidade em toda a sua plenitude que nos garante o real arbítrio sobre nossas escolhas, já que cada uma possui seu próprio mecanismo para nos dizer se foram acertadas ou não, mecanismo esse que se assenta sobre um único conceito: o Equilíbrio que deve se fazer presente nos resultados colhidos. Em não se preservando o estado de equilíbrio, penderemos para um lado aleatório que nos escapa ao controle, e tendo-o perdido não teremos como saber quanto tempo esse estado anômalo se manterá ou se até se constituirá em parte do que somos.
Ao contrário do que se pensa, o Equilíbrio que o Tao nos faculta alcançar é diferente daquele ilustrado por uma gangorra que tem o Bem numa ponta e o Mal na outra, e onde a proporção de um ou de outro é o que fará com que pendamos para um deles. Quando se pensa em “equilíbrio” pelo modo convencional, automaticamente conduzimos a mente para o ponto central de uma gangorra onde dois lados que se opõem são colocados nas extremidades (Fig. 1), não é assim? Essa é a primeira imagem de que lançamos mão ao nos referirmos à chamada “Teoria dos Opostos”, ou “Lei da Dualidade”.
E apenas neste pequeno porém já é possível constatar o diferencial do Tao em relação aos modelos tradicionais do pensamento humano: o Equilíbrio que ele representa não respeita essa abordagem simplista, revelando-se como algo bem mais complexo e inusitado. Ele vai sendo extraído de nosso âmago em virtude de o verdadeiro Equilíbrio não se mostrar linear como o da imagem da gangorra que acabamos de ver. Quando começamos a vivenciá-lo, precisamos pensar no ponto central (o da bola preta da figura 2 mostrada a seguir) como uma posição tão indesejável quanto a ocupada pela bola vermelha, situada no topo da curva côncava da figura, ou até pior do que esta. A bola preta, como se pode observar, se apresenta como a menos confiável dentre todas, pois enquanto podemos nos resguardar da vermelha devido à sua visível e inequívoca instabilidade, não se pode dar o mesmo tratamento à preta, pois que se faz imprevisível e traiçoeira nos seus 50% de chance de manter-se em equilíbrio e mesma probabilidade de perdê-lo, o que impede de prever-se o resultado como forma de proteção. O desenho mostra a bola vermelha em situação impossível de ser mantida, porém previsível; já a da bola preta – por se revelar absolutamente imprevisível – poderá tanto pender para um dos lados quanto mover-se para qualquer ponto entre um e outro, o que nunca a deixará confiável. A melhor situação, como se pode constatar, certamente é a da bola azul, alojada no interior da curva convexa, pois que se revela estável quanto ao seu equilíbrio. Dentre todas é a única com 100% de confiabilidade por sua tendência de voltar rapidamente à posição original, mesmo diante de ingerências externas que lhe forcem um eventual deslocamento do seu ponto de equilíbrio, e onde este se apresenta como seu estado natural.
No que toca à Diversidade, há que nos reportarmos a um velho hábito oriental de não colocar foco num único componente que se transforme em hábito arraigado ou comportamento imutável, característica essa levada até ao alimento de que se faz uso.
Tal prática decorre do esforço de se neutralizarem os efeitos de componentes nocivos pela descontinuidade, ou seja, se comemos em excesso num dia, faz-se jejum no outro; se num dia oferecemos ao corpo o que gostamos em lugar do que lhe faz bem, no próximo não cedemos aos caprichos da língua, focando na saúde. O bom senso nos alerta de que o excesso é pernicioso em todas as suas formas, seja para o prazer, seja para o sofrimento. Não há, por regra, nenhum excesso benigno, mesmo em nome de uma disciplina no cotidiano que se mostre exemplar, seja na resistência incansável na busca pelos objetivos, seja até na capacidade de superação que nos destaca dos demais. Em qualquer destes casos há que não se perder a noção dos limites, mesmo na contingência de ultrapassar alguns, pois que tal onipotência atentará contra nossa natureza humana e nos fragilizará também para as coisas do espírito. A sabedoria popular já ensina que “não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe”, como se ouviu falar por tantas vezes. E isso tem uma lógica: tanto a ideia de felicidade permanente quanto a do eterno sofrer jamais passarão de utopia, daí porque nós lhes devemos colocar tanto peso. Em se mostrando duradouros ou de curta duração, em algum momento serão interrompidos, seja por ação da vida, seja por efeito da morte, e não nos esquecermos disso ajuda bastante a não se exagerar na dosagem para lado algum.
Que não se espere, portanto, que por decisão possamos impedir a inexorável intervenção do tempo para fazer cessar esses dois opostos, mas a grande lição oferecida pelo Tao é que sempre poderemos exercer significativa influência para reduzir-lhes os impactos, e a isso se chama Sabedoria. O pender para um lado ou para o outro, pelo modelo da gangorra (Fig. 1), nos produzirá prejuízos, pois que não se apresenta como nosso estado natural. A permanência no meio da gangorra, como contraponto, também se mostra insustentável por causa de sua instabilidade (como no exemplo da bola preta), pois que pode estacionar junto de um dos dois extremos por mais tempo que o suportável. A alternativa, portanto, é escapar à polarização, aprendendo a lidar com múltiplas possibilidades. Em se dando nome ao feito, significa entender a Teoria dos Opostos sob outro prisma: o de buscar o Equilíbrio como primeira alternativa, e pelo outro lado buscar entender o desequilíbrio como apontado pelo Tao.
O desequilíbrio, como premissa básica, é tudo o que dá causa ao resultado indesejado, e o Equilíbrio o que conduz ao resultado que se busca. O Tao nos mostra a distinção entre um e outro, mesmo quando esses dois conceitos se confundem, reforçando alguns pontos que precisam ser constantemente observados:
O desequilíbrio traz a insegurança dos movimentos circunstanciais e aleatórios; também nos engana com uma falsa dicotomia entre os extremos; e é capaz de embotar um sofrimento futuro, emprestando-lhe um doce sabor no presente.
O Equilíbrio oferece uma diversificação consciente que deixa livre o retorno ao ponto original quando se fizer necessário; ele também nos torna capazes de discernir entre o real e o aparente, como o de que o Bem e o Mal são iguais para todos; ou ainda que um ponto central será sempre melhor do que qualquer deslocamento.
Por último o Tao nos prova que o choque desses polos contrastantes em nossa natureza humana nos aponta o rumo para o ponto em que desejamos nos manter e do que podemos fazer para consegui-lo, mesmo que não o consigamos todas as vezes.
A percepção de nossos limites para lidar com qualquer dos aspectos do elenco que o Tao nos propicia em sua diversidade deixa visível o momento em que nossa relação com ele se faz mais íntima, pois que nos harmonizamos com seu sentido mais completo de equilíbrio, em lugar da tentativa enganosa de buscá-lo no centro da gangorra ou carregar no peso para o lado que produz mais prazer. Note-se essa lógica na ação contínua do próprio Tao, onde exibe um ponto negro na parte branca e um ponto branco na parte negra, lembrando-nos que trazemos a centelha dos dois opostos em nós. Que quando expande esses pontos e em seguida os contrai revela que continuamente um lado se impõe ao outro para que o equilíbrio entre eles se mantenha. Durante seus movimentos rotatórios para um lado e para o outro também nos alerta para o fato de que o equilíbrio não reside no seguir constante dos opostos: a centelha de um contida no outro irá se expandir até que se fundam e se lhe invertam as trajetórias, de modo que cada um sinta a dificuldade do outro para chegar ao ponto maior.
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O grande despertar proporcionado pelo Tao em nossa vida acontece quando ele substitui Bhaman e Vishnu pela face de Shiva no exercício de sua maior função cósmica. E neste quesito específico novamente nos surpreende com seu contraponto aos equívocos que nos foram transmitidos, como o de que o momento mais importante do Universo é o da Criação. Geralmente causa estranheza a ideia de desconstruir o entendimento de que o surgir da Vida seja o ato supremo da intervenção divina. Mas tudo muda quando o vemos em sua realidade: o momento de reprodução entre seres de mesma espécie. A intervenção de Shiva, no entanto, cuida de algo bem mais profundo que a mera fusão de duas células haploides para formar uma terceira, e é quando nos damos conta do momento da Transmutação. Sem ela, a fusão em nada resultaria.
A vida acontece em um único momento, mas o milagre da Transmutação se repetirá indefinidamente – antes, durante e depois de nossa experiência física –, não deixando dúvida quanto à sua supremacia. Ela ocorre na evolução para o que definimos como modelo almejado, quando troca nossa existência de agora pela permanente, e também quando funde a centelha sutil que trazemos no corpo físico à centelha humana que o Tao traz em Si, para que o divino em nós se transforme na maior parte do que somos. Ela revela o momento em que, tomados pela Consciência da Senda, percebemo-nos cruzando seu umbral para sentir o Tao em eterna expansão e contração dentro de nós, como nós mesmos em movimento de expansão e contração dentro Dele. E nesse momento poderemos vê-lo tornando a nós e ao Universo uma única coisa permeando toda a existência, de modo a conectar cada elemento dinâmico ou inerte nele contido. E é quando não mais conseguimos distinguir entre o Eu e o Tao.