“Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força – eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.” – Clarice Lispector
Após dois meses finalmente recebi notícias de Olívia.
Aguardava ansiosa por notícias, e como nossa comunicação é apenas por cartas, o tempo de espera se mostra em ritmo diferente das mensagens instantâneas atuais.
A alegria de receber a carta foi desfeita assim que comecei a ler as primeiras linhas. Olívia, direta como somente ela pode ser, iniciou a saudação avisando: voltou e progride rapidamente.
Não consegui continuar. As pernas amoleceram e sentei no chão da cozinha, sem forças para qualquer ação. Os pensamentos me invadiram como flechas envenenadas. Na boca o gosto amargo. No peito, o aperto. Aperto apertado que fez nó na garganta, mas não impedindo meu pranto. Pranto. Soluço. Desespero. Apelo. Mais pranto.
Despertei com o martelo da culpa golpeando minha consciência; por diversas vezes desejei ser doente terminal. Emaranhada em minhas dores existenciais, neuras emocionais, desejando muletas para justificar minha fraqueza; se ao menos estivesse morrendo – teria forças para tentar viver. Imaginação tola que mal sabia, alimentava ainda mais meu desequilíbrio emocional.
Senti a presença da culpa quando, de certa forma, desejei acompanhar a doença de Olívia para observar o quanto ela seria bem-sucedida. Em minha visão imatura, vê-la sofrer e superar uma doença me faria bem. Seria inspiração. Ou, caso ela não conseguisse, quem sabe eu poderia ajudar. Confusa. Equivocada. Egoísta.
Agora é real. É o que diz a carta: progride rapidamente. O que será de mim? A solidão diante da possibilidade de perder minha amiga.
Se Olívia morrer quem vai me ouvir? Para quem poderia confessar minhas alegrias e angústias? O que será de mim?
Ouço meu próprio soluço seguido de um som. Mi mi mi.
Le Chat Noir (o gato preto) surge com seu mantra! Mi mi mi.
Nosso orientador no retiro em Nazaré nos explicou que se conseguíssemos estar atentas ao momento e conseguíssemos observar nossos pensamentos focados em nós mesmos, ele surgiria para nos alertar. E lá veio ele: Le Chat Noir. Mi mi mi (me me me: eu, eu, eu).
Sim! Como estava sendo egoísta. Olívia me conta que a doença progride rapidamente e que faço? Choro pela minha dor. Penso na minha solidão. Em mim! Somente em mim. Não consegui terminar de ler a carta e já permiti que diversos pensamentos me invadissem e projetassem medos e fantasmas. Deus… Nem terminara de ler a carta e já estava chorando minha dor pela possibilidade da morte dela.
Respirei profundamente. Levantei e caminhei até o banheiro. Lavei o rosto e olhei-me no espelho: Quase Catarina… Mas que bom que conseguiu perceber uma atitude egoísta e ansiosa em tempo de muda-la! Sorri.
Retornei para a cozinha. Preparei um chá. Chá de frutas vermelhas, o favorito de Olívia. Quando o chá ficou pronto, sentei diante do jardim.
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Observei as primeiras flores nascendo no hibisco. Respirei. Tomei um gole de chá.
Segurei a carta próxima do coração por uns instantes e fechei os olhos. Respirei lentamente visualizando o olhar amável da minha querida amiga.
Abri a carta com carinho, esbocei um sorriso e pensei: hora do chá amiga, vamos conversar.
Catarina e Olívia são personagens fictícias de “Clara e o Caderno de Escrita”.