Em janeiro de 2021, em meio a uma pandemia que permanece assustando o mundo inteiro e uma crise política sem precedentes na história do nosso país, completei 72 anos. Jamais imaginei chegar ao outono de minha vida numa situação dessa natureza. Tomada por um medo coletivo da morte, perplexa com os acontecimentos não só de meu país, mas do mundo todo, vieram-me à memória dois livros incríveis que li, de autoria de José Saramago: “Ensaio sobre a cegueira” e “Ensaio sobre a lucidez”. No primeiro ensaio, a população da capital de um país imaginário é consumida por uma cegueira branca que vai acometendo cada pessoa a ponto de provocar um verdadeiro caos na vida da cidade. No segundo, as pessoas voltam a enxergar e, no dia das eleições, a maioria delas vota em branco. Pelo que sei, Saramago tinha não apenas uma forma totalmente original de escrever, mas também uma capacidade fantástica de olhar a realidade à sua volta e interpretá-la com uma crítica sagaz e impactante.
Por que me lembrei desses livros? Eu os li há muitos anos, mas eles revelam com perfeição o cenário atual não só de nosso país, mas de todos os países ditos democráticos. Então eu me pergunto qual seria a melhor saída para mim, para meus filhos, para os meus netos: permanecermos cegos ou recuperarmos a lucidez? Você pode me dizer: “Temos que recuperar a lucidez, claro!”. Mas qual o caminho para isso? “Temos que escolher melhor nossos representantes”, você me diz, “porque uma democracia só funciona se as pessoas forem livres para escolher seus governantes e esses governantes assumirem o compromisso de trabalhar pelo bem comum”. Mas como realizar essa mágica num país capitalista? Por favor, responda-me! Precisaremos de muito tempo para encontrar essa resposta? Quanto tempo? Não temos tempo! Tudo é tão urgente! O que é mais breve que a vida? Mas, se olharmos por outra perspectiva, muitas vezes um segundo vale uma vida; uma vida melhor, uma vida pior ou até a morte. Tudo depende de nossa lucidez ou, como dizia Kant, de nosso esclarecimento, ou, ainda, como dizia Paulo Freire, do nosso processo de conscientização. Algo que vem de dentro porque resulta de nossas escolhas contínuas, de nossa condição de ser livre, mas sofre um impulso exterior, um fato, uma circunstância, uma vivência, uma influência.
Então você me pergunta: “Mas tudo isso é assim, individual, ocasional, dependente da sorte de cada um? A lucidez é uma conquista de cada pessoa? Se assim for, de que adianta a minha lucidez num mundo caótico? Sim, porque, do ponto de vista da minha lucidez, julgo muitas pessoas pouco lúcidas. Isso quer dizer que existem formas diferentes de lucidez, estágios diferentes de lucidez?”. Voltando aos livros de Saramago, o caos foi provocado pela cegueira, porém o retorno da visão não representou a volta da lucidez, porque as pessoas não foram votar. Não votar foi uma decisão pouco lúcida para cidadãos que vivem num país democrático, você não acha? Então será esse o grande problema da nossa democracia, a nossa falta de lucidez? Por que permanecemos impassíveis? De que precisamos para retomarmos, juntos, o caminho do discernimento, do diálogo criterioso e esclarecedor, da vivência coletiva na busca do bem comum? “Precisamos de bons líderes”, você me diz. Mas onde estão os nossos líderes? Procuro por eles perto de mim e não os vejo! Busco consolo na história de muitas nações. Como foram fundamentais para o seu esclarecimento e engrandecimento. Visualizo Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos, comandando a Guerra Civil Americana e abolindo a escravidão; Martin Luther King, pastor protestante e ativista político, liderando a luta pelos direitos dos negros e das mulheres na década de 1960; Mahatma Gandhi, ativista indiano, promovendo uma revolução pacífica pela independência da Índia; Winston Churchill, líder do governo britânico, conduzindo o Reino Unido à vitória na Segunda Guerra Mundial; Nelson Mandela, presidente da África do Sul, liderando o movimento contra o Apartheid; Georges Jacques Danton, um dos principais líderes da Revolução Francesa, lutando pela fim da monarquia absoluta na França; Joana d’Arc, camponesa francesa, liderando as tropas contra os ingleses durante a Guerra dos Cem Anos; Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, lutando pela liberdade de culto e religião, bem como pelo fim da escravidão colonial no Brasil; Amílcar Cabral, um dos grandes nomes da luta nacionalista africana, libertando a Guiné-Bissau da ocupação portuguesa … E muitos outros.
Esses foram líderes natos! Imagino que você retruque: “Mas existem líderes natos?”. Isso me faz pensar na velha metafísica: eles trazem consigo a essência da liderança ou, como se costuma dizer, nasceram feitos. Será mesmo? Prefiro pensar que eles cultivaram a lucidez no enfrentamento coletivo dos problemas e nos desafios sociais. Sem lucidez, não há liderança verdadeira. Os líderes nascem em ambientes desafiadores e defendem a vontade coletiva. Os melhores líderes enxergam além de seu tempo. Por isso precisamos deles.
Então por que não conseguimos reconhecê-los neste momento tão sofrido pelo qual passa a nossa sociedade? Porque, talvez, a nossa vontade coletiva esteja enfraquecida. Precisamos superar o nosso ego e tecer com um amor incondicional a teia de nossas relações com as outras pessoas, com a natureza, com o Transcendente. Para isso é fundamental retomarmos o processo de autoconhecimento: “Quem sou eu? Para quê estou neste mundo? Sou sujeito de minhas ações?” Nesse processo, o conhecimento e a reflexão serão de fundamental importância, porque conduzirão ao esclarecimento por meio do qual conquistaremos nossa autonomia, posicionar-nos-emos como sujeito diante dos outros e do mundo. Assim, passaremos a enxergar as outras pessoas como sujeitos também, ou seja, com a mesma capacidade de entendimento e reflexão que possuímos. Assim como elas não poderão subjugar–nos, nós não poderemos subjugá-las. Nós todos seremos sujeitos livres, com pensamento próprio, e não precisaremos de alguém que pense por nós, que tome decisões por nós, desde que tenhamos coragem e vontade de exercer a nossa liberdade. Mas a decisão é exclusivamente nossa.
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A lucidez é uma conquista difícil e sofrida, mas, sem sombra de dúvida, muito realizadora. Ela nos torna mais humanos porque nos faz enxergar que o bem de um é o bem de todos e que, se convivermos em harmonia com nossos semelhantes, com a natureza, com o Universo, encontraremos a resposta para a razão de nossa existência neste mundo.