Segundo pesquisa encomendada pela Confederação Brasileira de Skate (CBSK) ao Datafolha, o número de mulheres skatistas no Brasil dobrou entre os anos de 2009 e 2015. Durante esse período, a estatística saltou de 3,9 milhões para 8,4 milhões de praticantes. Com a inclusão do esporte nos Jogos Olímpicos, somada ao sucesso do skate feminino durante o evento da edição Tóquio 2020, o céu será o limite para as mulheres que escolherem o shape e as rodinhas como novos parceiros de vida.
Tais constatações são de imenso significado e valor para a questão da mulher e a evolução desta na sociedade. Considerando que o ambiente do skateboarding é de incontestável predominância masculina, o avanço da presença feminina dentro dessa cena é um ato (e tanto!) de emancipação da mulher.
As dificuldades enfrentadas pelas mulheres no skate
É sabido que o mundo esportivo por si só já é centrado nos homens e completamente voltado aos interesses deles, com exceção de poucas práticas que se dizem “de mulher”; e essas últimas geralmente associadas a exercícios artísticos, como ginástica e nado sincronizado. Quando se trata de um esporte como o skate, porém, a segregação da figura feminina se intensifica, e isso se dá por diversos fatores.
Em primeiro lugar, as imagens associadas à prática do skateboarding se afastam muito de tudo aquilo que é socialmente tido como ideal ou adequado para mulheres. O teor marginalizado do skate, o fato de ser classificado como um esporte radical e a própria cultura que o cerca (estreitamente relacionada com a cultura hip hop) o qualificam, de acordo com a socialização vigente de gêneros, como impróprio para a presença feminina. Presença esta que é comumente estereotipada como o sexo frágil, recatado e do lar.
Nesse contexto, Karen Jonz, a primeira campeã brasileira de skate vertical, já declarou que, para conseguir praticar a modalidade, escondia os peitos e se vestia como os homens para que pensassem que ela era um deles e, assim, a deixassem frequentar em paz os ambientes do skateboarding.
Ademais, o lugar físico de prática do skate é, de fato, hostil para as mulheres. Se uma mulher decide frequentar uma pista ou outro local público do tipo para andar sobre as rodinhas, raramente lá encontrará outras do mesmo sexo para apoiá-la. Em contrapartida, a skatista topará com homens encarando-a o tempo inteiro, ou, no mínimo, examinando-a com estranhamento, como se a esportista fosse um peixe fora d’água. É claro que existe a possibilidade de alguém do sexo oposto oferecer suporte e entender uma skatista feminina na pista como normal, mas casos como esses são pontos fora da curva.
Ainda a respeito disso, é válido lembrar que, para a maioria dos praticantes do skate, a vivência com o shape vem das ruas, e sabe-se que o perigo urbano é acentuado para o sexo feminino. Isto é, o privilégio que um homem tem de ficar horas praticando manobras sozinho pelos cantos da cidade não acontece da mesma forma para as mulheres, que, no Brasil, são vítimas de violência sexual a cada 8 minutos. O dado é da 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, do ano de 2020.
O Sagrado Feminino e o despertar da mulher
O Sagrado Feminino é uma corrente que motiva o autoconhecimento das mulheres, incentivando-as a descobrirem mais sobre si mesmas, estimulando-as a perceberem melhor os próprios instintos e vontades. As adeptas dessa filosofia relatam que, a partir desse processo de interiorização, o mundo à volta delas parece mudar, como se uma nova consciência as abraçasse.
Esse despertar para uma nova consciência sobre si mesma, segundo o Sagrado Feminino, pode ser interpretado como a saída do indivíduo feminino da supremacia patriarcal, já que motiva a mulher a se desvincular de padrões e regras pré-estabelecidas pela sociedade. Diz-se, ainda, que a partir dessa filosofia quebra-se uma série de regras e preconceitos que são internalizados nas fêmeas ainda na fase infantil; como o machismo enraizado, a cultura do estupro e os moldes que ditam o que é certo e errado para a mulher. Quanto mais a mulher se livra dessas amarras, mais ela alcança a liberdade e o prazer.
Dentro disso, ao trabalhar o autoconhecimento, a mulher entende o que de fato almeja e, da mesma forma, desprende-se dos objetivos que lhe foram impostos por terceiros, passando a ser mais determinada em relação aos próprios prazeres. É nesse processo que está, então, o despertar da mulher para fazer coisas e adentrar em espaços que antes ela não ousava porque eram consideradas “coisas de homem”. Portanto, quando uma mulher ocupa e se apropria do movimento do skateboarding por prazer próprio em fazê-lo, ela se desperta e passa a marchar em nome de todas rumo à emancipação e à libertação.
O avanço das mulheres na cena do skate
Embora preconceitos sociais e impedimentos concretos diversos criem altos muros entre as mulheres e o skate, faz-se notável que o avanço de uma delas é motor suficiente de movimento para várias outras que se sucedem e decidem também entrar na cena das pistas. A representatividade é uma das protagonistas da questão do incentivo ao skate feminino. Isto é, para que uma mulher se encoraje a subir na lixa, é de suma importância que ela tenha referências femininas para se espelhar, se inspirar e até mesmo acreditar no próprio potencial diante das rampas.
Karen Jonz relatou, em comentários durante as competições de Skate Street Feminino das Olimpíadas de Tóquio 2020, pelo canal SporTV, que carecia de referências na época em que começou praticar o esporte, o que dificultou muito seu caminho, em comparação com colegas homens, que tinham cardápios cheios de influências masculinas para admirar e se apoiar. A skatista ainda disse, na mesma ocasião, que ver meninas como Rayssa Leal conquistarem importantes posições de destaque é muito significativo para o crescimento da cena feminina no skate. Afinal, esse ato, que é muito simbólico e subversivo, incentiva uma série de outras garotas a darem os primeiros passos sobre as rodinhas, criando um efeito dominó e potencializando a possibilidade de uma massiva futura onda do skate feminino.
Constituindo desde já essa potencial onda, muitas praticantes andam, pelas pistas e pela vida, em coletivos femininos de skate. Grupos como o Britney’s Crew, do Rio de Janeiro, formam-se em prol de fortalecer e sustentar as mulheres na prática esportiva e caracterizam-se como uma solução inteligente para enfrentar as problemáticas encaradas pelas skatistas no dia a dia. Além de prezar, acima de tudo, a união das meninas da cena e apoiar atletas que careçam de algum recurso para participar em campeonatos, o Britney’s Crew é também responsável por realizar intermédios entre skatistas que precisam de patrocínio e empresas que podem investir nelas, e, ainda, promover visibilidade a novas profissionais.
A ascensão de figuras femininas no esporte não apenas é importante para incentivar que novas mulheres adiram à prática, como também é essencial para que as já estabelecidas na cena recebam o devido reconhecimento e valor pelo tempo, esforço e dedicação prestados ao skate. Uma polêmica envolvendo Yndiara Asp e Pedro Barros, no ano de 2018, foi crucial para que os patrocinadores voltassem os olhos para a categoria feminina nas competições. A situação se deu após o pódio do Oi Park Jam, no qual ambos os esportistas citados venceram em primeiro lugar, mas receberam premiações demasiado díspares — enquanto Yndiara recebia um cheque de 5 mil reais pela vitória, Pedro ostentava o prêmio masculino de 17 mil. Tamanha foi a repercussão do episódio que, desde então, outras competições de skate passaram a igualar as quantias entre as duas categorias. Vê-se que a vitória de Yndiara Asp no Oi Park Jam, em 2018, potencializou, literalmente, o valor da vitória de outras mulheres em outros campeonatos.
Eu espero que as mulheres cada vez mais se sintam livres e pertencentes. Espero que seja um terreno que acolha todas as idades, raças e gêneros. Seja sempre uma ferramenta de superação e transformação pessoal que revele grandes potenciais. Que dê muitas oportunidades de todos os tipos para quem quiser fazer parte. Que possamos usar toda nossa criatividade, solidariedade, alegria, intuição e visão para continuar construindo nossa própria cena, dando exemplo e acreditando em nós mesmas”
Karen Jonz, em artigo da Red Bull sobre o futuro do skate feminino.
Quando uma mulher pisa na pista de skate, ela abre caminhos para que outras mulheres se sintam seguras para adentrar e ocupar esse espaço também.
A presença feminina em outros esportes e jogos
Para além do cenário do skateboarding, a questão da segregação da mulher se expande em outros contextos igualmente considerados masculinos, munidos de empecilhos quase sempre da mesma natureza. No futebol, por exemplo, essa batalha pela equidade de oportunidades não é recente.
Apesar de os nomes de algumas jogadoras serem bastante conhecidos, como Marta e Formiga, ambas atuando há anos na seleção da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a realidade por trás das trajetórias dessas mulheres em nenhum grau se compara ao luxo dos jogadores homens que estão cotidianamente estampados em manchetes diversas, publicidades e afins. Enquanto a Copa do Mundo de futebol masculino tem o poder de paralisar países inteiros a cada quatro anos, mobilizando a população para vibrar em massa pelos homens em campo, o mesmo evento da seleção feminina foi exibido em TV aberta, pela primeira vez, só no ano de 2019.
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Nos jogos virtuais e nas competições de cartas, a situação enfrentada pelas mulheres é a mesma. Juliana “showliana” Maransaldi ultrapassa os limites impostos ao dito “sexo frágil” representando as mulheres na esfera dos videogames, enquanto Vivan Saliba o faz nas mesas de poker. É admirável constatar que a presença feminina está, de fato, se expandindo a espaços de naturezas diversas, que, por séculos, foram restritos a homens. Pode-se apontar, também, o crescimento delas em campos teóricos e acadêmicos, dentro de ciências exatas, linguagens de códigos e outras tecnologias.
A importância de se incentivar meninas
Considerando tudo o que foi apontado até agora, e tomando como principal exemplo o destaque que meninas de diferentes nacionalidades tiveram no pódio das competições de skate nas Olimpíadas de Tóquio, como as japonesas Momiji Nishiya (13 anos) e Kokona Hiraki (12 anos), a britânica Sky Brown (13 anos) e a própria brasileira Rayssa Leal (13 anos), é essencial destacar a importância de se incentivar crianças a praticarem atividades que saiam da zona daquilo que é considerado apropriado a elas. Com o sucesso desses Jogos Olímpicos, fez-se evidente que o skate é, sim, coisa de menina!
Por isso é que propor que meninas se desafiem a fazer “coisa de meninos” é parar de reprimi-las; é alimentar uma geração de mulheres que transcenderá limitações sociais e passará a marcar presença e fazer história em todos os âmbitos possíveis, sem discriminação, numa corrente indomável rumo à emancipação.
Espera-se, portanto, que as próximas pesquisas a respeito do skate feminino apresentem dados de crescimento exponencial e que mulher alguma, nunca mais, precise se esconder sob códigos masculinos para conseguir exercer suas próprias vontades e ambições.