Não tantas, mas algumas vezes fui contemplado com o privilégio de ter amigos em quem confiava profundamente, por quem nutria enorme respeito e até por quem admirasse pela forma corajosa de tocar a própria vida. Mas pela primeira vez acabei descobrindo, dentre anônimos colegas de interesses comuns, um amigo de quem me orgulhasse.
O mais bacana disso é quando o orgulho vai brotando assim como quem não quer nada, espontâneo, pelas pequeninas e sucessivas descobertas não ditas, por retalhos que vão sendo reunidos nas pequenas frases e alinhavados nos recônditos do espírito por um afeto que vai crescendo sobre alicerces de profunda admiração. Sentimentos que vão pipocando aqui e ali, extrapolando perguntas e desafiando a lógica técnica das análises.
Simplesmente um dia você vai ter, por acaso, em um texto qualquer no meio de milhares, dentre aqueles perdidos entre anos de freqüência em fóruns anônimos… E de repente lá está um que parece nos pular no pescoço e apertar a garganta… Sucinto, despretensioso, porém intenso… transbordante de sentimentos imprecisos disfarçados de letras, tropeçando em cotidianos pictóricos de humor. Pergunto-me o que me despertou. Leio alguns comentários… Comuns como tantos… Por que raios me pareceu tão incomum? Por que exatamente a mim?
Corro os olhos pelo título, pela classificação literária, pela quantidade de postagens, buscando uma explicação para aquele deslumbre pelo texto… “Mamãe não quero provar nada…”. Uma crônica entre quatorze ao todo… Simples assim! E eu, tão cético e escaldado de anos pela vulgo-qualidade dos escritos que encontro, ali impactado por efeito daquele texto sem entender o porquê do deslumbramento em alguém tão antideslumbrado quanto eu, do fascínio e encanto instantâneos impostos a um espírito ultimamente tão pouco “encantável” quanto o meu…
A busca dos meus próprios porquês me conduziu quase involuntária e obrigatoriamente a algum dado, informação comum que fosse, que emprestasse um pouco de realidade àquela intrigante procura por entendimento. No lugar do perfil buscado, uma letra de Sinatra. No lugar da foto, um desenho aludindo ao fundo de cena comum aos poucos textos. O dado real, talvez, perdido entre tantas interrogações, foi a idade denunciando um jovem de pouco mais de trinta… E era tudo! Mas o pouco reunido começava a falar muito dessa personalidade escondida por trás de poucas crônicas, que explodia em verdades disfarçadas de fantasias nos seus textos… Alguém o terá percebido além de mim? Por que só eu?
Acompanhei os comentários dos seus leitores nos dias seguintes, que começavam a crescer, ainda que os textos não… Pouco comum! Meu talentoso e desconhecido escritor começava a chamar atenção e acumular seguidores. Entrei na fila e o segui nos outros textos… Nova surpresa: não haviam aqueles esperados altos e baixos em suas obras, próprios até de consagrados talentos… Aquele dia em que não se acorda tão bem e a coisa não sai tão bela… Nada! Todos eram igualmente brilhantes! O pique do impacto interno e do encantamento não eram amenizados em trecho algum, em texto algum… Seguia uniforme, imaculado, incólume à síndrome do “dia infeliz” de qualquer talento. A obra gritava muito mais verdades do seu autor do que os disfarces travestidos de fantasias poéticas. Criatura e criador se fundiam num todo indivisível para quem tinha olhos para ver. Concentrei-me neles para descobrir o que havia de concreto disfarçado nas quimeras do seu humor lírico. O inusitado cronista não conseguia controlar o motim de suas crônicas denunciando realidades que sua modéstia insistia em disfarçar. Percebiam-no talvez uma vitória-régia brotando no pântano, sem consciência da própria beleza, e se julgaram na obrigação de se autonomearem seus megafones e holofotes por livre-arbítrio de seu senso de justiça.
Deixo-lhe alguns comentários, tolhidos pela enorme dificuldade de encontrar adjetivos. Todos eles se revelavam incompetentes para exprimir o que os textos faziam brotar sob efeito cascata da alma! Perda de tempo buscar palavras bonitas, muito menos estímulo… Aquele cronista tão jovem e sem rosto era um desses que nunca precisou de agentes externos para ter seu talento lhe escapando ao controle. Este simplesmente pula a cerca de suas reservas e salta para fora sem pedir licença para sua modéstia.
Alguns dias se passaram até que um e-mail de retorno brotou de minha caixa postal. O meu cronista favorito – sem rosto e sem identidade – agradecia pelos supostos elogios. O que não eram! Mera constatação! Trocamos endereços de contatos on-line… “Teclamo-nos” em tempo real. As pequenas descobertas foram vindo mais pela postura que por revelações do tímido cronista. Ele continuava escudado em suas reservas, forçando perguntas atendidas por respostas monossilábicas… As entrelinhas e suas fantasiosas crônicas continuaram falando muito mais dele do que seus dedos no teclado do computador.
Receei que a repressora timidez se mostrasse como obstáculo para meu acesso a novos e admiráveis textos. Propus transformá-los em livro. Ele aceitou mergulhado sempre em suas tímidas reservas, talvez acentuadas pela comum incredulidade dos encontros casuais que se desfazem nos esquecimentos do cotidiano. Descobri que uma das crônicas era semi-autobiográfica, no estilo já identificado de um real escondido sempre pelas paredes da ficção. Descobri nela o protagonista dos seus dois mundos já órfão muito cedo, vivendo nas ruas, apaixonado pelo futebol e pelas letras. O menino carente jogado sozinho no mundo que não aceitou tal destino e decidiu dedicar sua vida a ensinar futebol para meninos carentes.
O mistério que continuou foi sobre o requinte literário oriundo de um ensino elementar em um momento pífio da língua-mater, com toque de erudição dos grandes mestres, desses que já trazem a maestria de outras vidas, como a imaculada vitória-régia brotada do lodo. E ele insistia em me chamar de “mestre”. Mestre, eu? Muito mal em sala de aula!… Mestres não se fazem. Nascem! Como ele próprio. As reverências se mostravam invertidas. Percebida minha irritação com o imerecido título, adotou a inversão das letras para me apelidar, e virei “ertsem”.
Você também pode gostar:
Do meu cronista preferido, tudo brota sem palavras, espontâneo e anônimo, sem fotos nem dados, sem palavras efusivas, nem as mínimas para que se diga tudo o que se faz preciso. E esse pouco é mais do que suficiente para entendê-lo grande na sua simplicidade e no seu gosto de se mostrar pequeno. Não há mais dúvidas de que obra e criador se fundem num só, pois que ainda que o criador não fale, a obra o revela inteiro. Ainda que o autor se faça tímido, os textos gritam o que ele insiste em calar, num ato de rebeldia contra o anonimato destinado apenas a pessoas comuns. Meu cronista anônimo recém-descoberto e recém-tornado escritor tem meu respeito no seu direito de ser tímido, mas o anonimato já não é uma certeza. Serve tão somente para emprestar mais legitimidade ao artista, pois que ele não nos fascina pelo escutado de sua boca ou por uma imagem divulgada, mas pelo talento que coloca à frente do próprio rosto.
Até agora não o conheço nem por foto, e a cidade onde mora é só um ponto no mapa, distante da minha. A propósito, até a letra de Sinatra postada à guisa de perfil – “My Way” – fala de caminhos trilhados do seu jeito… que só o poeta ainda sabe. Mas o que deixei como registro na contracapa de seu livro expressa tudo o que veremos dentro em breve, à revelia de suas reservas, próprias de quem valoriza mais o que tem por dentro do que o que exibe ao mundo: é um daqueles talentos para os quais a gente se sente apenas oferecendo a pista para sua primeira decolagem, pois que após lançar-se no espaço, com certeza ele nunca mais deixará de voar. Como fundo musical para sua história, só mesmo os acordes de “My Way” na voz de Sinatra calando fundo no coração de todos os esperançosos anônimos do planeta.