Por causa da passagem de ano, muitas mensagens circularam na internet. Recebi pelo WhatsApp uma mensagem de alguém por quem tenho muito apreço. O conteúdo já era de meu conhecimento: um belo poema de Carlos Drummond de Andrade, cujo título é Receita de Ano Novo. Destaco aqui a última estrofe:
“Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”
Você deve conhecê-lo, não é, meu caro leitor? Ao relê-lo, num momento tão especial e, ao mesmo tempo, tão difícil para toda a humanidade, eu me dei conta da sabedoria contida em tão preciosa receita. Com simplicidade, o nosso poeta nos convida a olharmos para dentro de nós mesmos de uma forma essencialmente verdadeira, sincera e honesta, como forma de ressignificação do Ano Novo.
É interessante refletirmos sobre essa receita que Drummond nos prescreve. Ele nos incita a uma renovação de nossas vidas a partir de uma autocrítica. Como ele próprio afirma “não é fácil”. Por que não? Simplesmente porque aprendemos a olhar só para fora de nós mesmos, quando queremos justificar quaisquer omissões, fracassos ou desencontros em nossas vidas. Nossas explicações são mais ou menos assim: “Eu não estudei para tal concurso porque a concorrência é muito grande, eu não participo de um trabalho solidário porque sou muito ocupado, eu não sou promovido na empresa na qual trabalho porque meu chefe é muito exigente, eu me desentendi com meu amigo porque ele acha que somente suas opiniões são válidas…”, “sabe, eu tento, experimento, mas não consigo!”.
Então, caro leitor, eu lhe pergunto: você tenta, experimenta consciente? Você já tentou alguma vez olhar de forma mais profunda para você mesmo? Ou você teme enfrentar esse desafio que, na verdade, não é nada fácil?
Para começo de conversa, quero lhe assegurar que tal desafio não se nos apresenta somente nos dias de hoje. Na Grécia Antiga, Sócrates convocava seus discípulos a praticarem um importante preceito: “Conhece-te a ti mesmo.” Para esse filósofo da antiguidade clássica, ele representava uma referência fundamental não só pra o autoconhecimento, mas também para o conhecimento do mundo e da verdade. Para o pensador grego, o conhecimento de si mesmo, a autoconsciência despertada e mantida em permanente vigília era considerada o ponto de partida para uma vida equilibrada, autêntica e feliz, por possibilitar ao homem agir de acordo com as exigências de sua alma, sede da própria consciência e do caráter.
Assim sendo, o processo de conhecer a si mesmo exige que cada indivíduo mergulhe profundamente em sua essência, o que requer disposição e vontade de enfrentar seus hábitos e atitudes cotidianas, com a finalidade de identificar aspectos característicos de seu comportamento. Essa autoanálise requer uma permanente dedicação e uma criteriosa racionalidade que elimine a possibilidade de interferência de aspectos afetivos ou emocionais que possam justificar determinadas atitudes comportamentais.
O autoconhecimento se torna a cada dia mais indispensável. Mesmo que seja doloroso, que dê trabalho e que demande tempo razoável é a partir deste processo que poderemos conhecer melhor nossas idiossincrasias, nossas limitações, nossas visões equivocadas sobre as pessoas e o mundo e constatar a nossa própria ignorância, seguindo o exemplo de Sócrates cuja sabedoria ele próprio resumiu na expressão: “Só sei que nada sei.”
Portanto, ao conhecermos melhor a nós mesmos, seremos capazes de fazer uma autocrítica de nossas posturas e melhorarmos nossos relacionamentos pessoais e profissionais, além de tomar consciência daquilo que realmente nos move, nos mobiliza para uma tomada de decisão, nos retira da comodidade, nos convida a agir de forma inovadora e criativa, daquilo que favorece a nossa autoestima e amor-próprio, nossa estabilidade emocional. Enfim, daquilo que nos torna verdadeiramente humanos.
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Quero destacar, ainda, a importância do autoconhecimento e da autocrítica para a conquista da autonomia individual e para o exercício da empatia. Uma pessoa que tem um profundo conhecimento de si mesma sabe o que quer e sabe como agir para conseguir o que quer. Age por sua própria cabeça e de acordo com suas próprias convicções. Porque conhece bem a si mesma é capaz de compreender melhor a forma de agir de uma outra pessoa e se colocar em seu lugar, superando estigmas e preconceitos sociais.
Então, meu caro leitor, que tal aceitarmos a provocação de Drummond? Vamos merecer o novo ano, começando por nós mesmos? Nada de promessas ou propósitos. Vamos retirar nossas máscaras e mostrar o nosso verdadeiro rosto? Que a nossa consciência seja o espelho onde possamos nos mirar a cada dia do ano que acaba de nascer.