“Torna-te o que tu és: Nietzsche e um modo de vida filosófico ”.
Amigo leitor, aqui eu preparei um conteúdo que ficará registrado no portal Eu Sem Fronteiras e espero que gostem. Leiam depois outros artigos meus lá no Google ao pesquisarem: “Artigos filósofo Nilo Deyson Monteiro”.
Torna-te o que tu és. Essa sentença de Píndaro, poeta grego nascido no século V antes de nossa era, foi assimilada por Nietzsche como um princípio filosófico. Mais ainda, foi assimilada como um preceito de conduta. O filósofo alemão transformou o enunciado numa verdade prescritiva; num saber prático que serve à vida, pois se trata de um conhecimento transformado em regra de conduta, em preceito para o agir.
Nos termos de Michel Foucault (2004), o “torna-te o que tu és” foi recebido por Nietzsche como um saber ethopoiético, que significa algo como um saber que produz, modifica, transforma o êthos, a maneira de ser de um indivíduo. Nietzsche não só aprendeu, meditou e colocou à prova da vida a sentença de Píndaro, como também, a partir dela, questionou a sua própria conduta, a fim de levar a vida em conformidade com a regra que ele, voluntariamente, adotou para si.
Neste artigo, a ideia é acompanhar esse processo de assimilação da máxima de Píndaro. Como é que Nietzsche incorporou, transformou em corpo, o “torna-te o que tu és”? Como é que ele encarnou, transformou em carne, a verdade simples, mas difícil de levar à risca, cantada pelo poeta lírico?
Acompanho Nietzsche nessa jornada buscando a mesma coisa que ele procurava na companhia dos velhos mestres gregos que tanto admirava: o caráter pessoal do filósofo, as marcas visíveis de seu estilo de viver e de pensar. Essa era a proposta feita no ensaio “A filosofia na idade trágica dos gregos”, em que foram escolhidas, como ele adverte no prefácio, “doutrinas em que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo, pois, como é de costume dos manuais, a enumeração completa de todas as teses que nos foram transmitidas só leva a uma coisa: ao total emudecimento do que é pessoal” (Nietzsche, 2009).
Aqui me ocupo, portanto, do caráter pessoal da filosofia de Nietzsche. Mais precisamente, do seu exercício de assimilação de um discurso recebido como verdadeiro, que afeta diretamente o seu modo de vida e o encaminha em direção a si mesmo.
Uma vida sem exame, sem reflexão, não é digna de ser vivida. Decerto, o jovem Fritz não conhecia ainda essa máxima de Sócrates, mas era um adepto do exame de si. De férias da escola no verão de 1858, o garoto, no alto dos seus 14 anos, escreveu a sua primeira autobiografia, intitulada “Da minha vida”. Esse gesto adolescente se repetiu inúmeras vezes em momentos decisivos da vida do filósofo, que buscou, por meio da escrita e da observação distanciada de suas emoções, uma clareza sobre si mesmo e sobre as suas relações com o mundo. Um gesto que se repetiu até que ele chegasse à conclusão de que toda grande filosofia foi, e ainda é, “a confissão pessoal de seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas” (Nietzsche, 1992).
Nietzsche cita pela primeira vez a sentença de Píndaro, num trabalho entregue aos mestres da Escola de Pforta, conhecida por sua disciplina austera e pela ênfase que dava ao espírito da Antiguidade grega e romana. Nietzsche foi interno da escola dos 14 aos 20 anos de idade. E, no final desse curso preparatório, acatou a sugestão de um de seus professores e escreveu uma monografia sobre a poesia de Teógnis, interessado não exatamente pelo tema, mas pela possibilidade de mostrar aos seus mestres que havia dominado a técnica filológica tão estimada em Pforta.
Nessa monografia de conclusão de curso, Nietzsche cita a máxima extraída das Odes Pítias, talvez em sua forma completa, que diz: “Tendo aprendido o que você é, torne-se como você é” (Nietzsche, citado por Dias, 2011).
Fritz foi ensinado a ser pastor, como o pai que faleceu quanto tinha cinco anos, como o avô paterno e materno, como alguns dos tios. Que o menino seguisse os passos do pai era o sonho da mãe, Franziska, além da expectativa da avó e das tias que o criaram. Após o término do curso preparatório, ele partiu para Bonn, para a Faculdade de Teologia. E lá viveu a vida de estudante. O jovem fechou os livros e atacou o piano em improvisos que surpreendiam e arrebatavam os colegas da confraria estudantil.
Em poucos meses, Nietzsche se cansa da vida boêmia, cervejeira e noturna; se cansa também de fingir estudar Teologia, de fingir ter a fé que não tinha. No feriado da Páscoa de 1865, ele volta para a casa da mãe e anuncia para a família que vai mudar de faculdade. O mundo de Franziska desaba. Os familiares são chamados para aconselhar o jovem de 21 anos que se rebelou contra o destino. Em junho, escreve à irmã que procurava entender a revolução em curso:
“É mais difícil simplesmente aceitar tudo aquilo que aprendemos quando crianças, que é visto como verdade pelos círculos de parentes e que realmente conforta e eleva a alma; ou é realmente mais difícil traçar novos caminhos na luta contra o costume, na incerteza do passo independente, mas sempre com o propósito eterno da verdade, da beleza e do bem? Será que o que realmente importa é encontrar uma concepção de Deus, do mundo e da reconciliação com a qual se possa conviver com o maior conforto, ou será que o pesquisador verdadeiro pouco se importa com o resultado de sua pesquisa? Será que o objetivo da nossa procura é a tranquilidade, a paz, a felicidade? Não, apenas a verdade, por mais feia e assustadora que seja.
Toda fé verdadeira é inerrante, ela fornece aquilo que a pessoa religiosa espera encontrar nela; no entanto não oferece qualquer argumento para demonstrar uma verdade objetiva. Nisso se dividem os caminhos das pessoas; se você quiser paz de espírito e felicidade, creia; se você pretende ser um discípulo da verdade, pesquise. Entre estes dois caminhos existem muitos meios-termos. O que importa é o objetivo principal […]” (Nietzsche citado por Janz, 2016).
Nietzsche avança na vivência do “torna-te o que tu és” ao tomar distância do destino programado pela família. Sabe agora do caminho da pesquisa, se reconhece como discípulo da verdade. No fundo, sabe que o que importa não é nem mesmo a verdade, mas a procura por ela; o que importa é o caminho ― como já diziam os mestres antigos.
E Nietzsche se põe a caminho, primeiro pesquisando a si mesmo para entender o que aconteceu em Bonn. No final desse ano letivo, ele se sente envergonhado pela vida de dissipação que levou. Seu corpo trava, dores reumáticas o condenam à cama e ao repouso. Ele luta para fazer as pazes com esse ano perdido em bebedeiras, concertos, colegas barulhentos e vazios. Numa carta enviada a um amigo diz: “Espero que algum dia, possa compreender também este ano do ponto de vista da memória, como elo necessário do meu desenvolvimento” (Nietzsche citado por Janz, 2016). E ele vai se esforçar para isso; para transformar esse “assim foi” em “assim eu quis”. Mais tarde, chamaria de “amor fati” esse movimento de afirmação da vida; de toda a vida, inclusive dos seus aspectos mais sombrios e dolorosos.
No início do ano letivo seguinte, tudo muda. Nietzsche foge de Bonn e escolhe a Universidade de Leipzig para dar continuidade à sua formação, agora na Faculdade de Filologia. No dia de sua matrícula havia uma celebração dos 100 anos da entrada de Goethe na mesma Universidade. Nietzsche considera esse acaso um sinal de boa ventura. E se dedica aos estudos filológicos, rigorosamente, tal como aprendeu em Pforta. Mas sem abandonar por completo as composições musicais, nem mesmo a danada da filosofia, que reapareceu por acaso, numa ida ao sebo, onde puxou da estante um livro desconhecido, de um tal Arthur Schopenhauer. Ao rememorar esse acontecimento, ele anota:
“Fui violentamente tomado pela necessidade de autoconhecimento, até a autodestruição. Durante 14 dias seguidos, forcei-me a deitar apenas às duas horas da madrugada e a levantar exatamente às seis da manhã. Fui tomado por uma excitação nervosa, e ninguém sabe até que grau de tolice eu teria avançado se as tentações da vida, da vaidade e as obrigações impostas pelos estudos regulares não tivessem exercido um efeito oposto […]” (Nietzsche citado por Janz, 2016).
Além da alteração no regime do sono, o jovem de 21 anos se impõe também um severo regime alimentar. Transforma o seu quarto numa cela, e nela vive como um asceta, no sentido de um tipo que pratica um exercício filosófico ou espiritual. Podemos zombar ou ironizar essa reação radical perante uma simples leitura. Mas o jovem discípulo da verdade, sem mestre ou orientação, faz o que pode para experimentar uma verdade em seu próprio corpo. Ele não lê apenas com o cérebro e os olhos, tal como fomos ensinados. Nietzsche lê com o corpo, pois se deixa afetar por um enunciado verdadeiro que precisa ser transformado em um preceito, em uma regra de conduta. O saber deve estimular a ação de si sobre si mesmo. E, na experiência da leitura de Schopenhauer, Nietzsche quer avaliar o quanto pode suportar o sofrimento sem perder o prazer de viver.
Um ano após o acontecimento Schopenhauer, a fórmula de Píndaro será evocada pela segunda vez, num artigo sobre as fontes de Diógenes Laércio, publicado e premiado no ano de 1867. Nessa segunda aparição, o “torna-te o que tu és” já está mais impregnado em Nietzsche, que agora vive e sente a tormenta da escrita, da lapidação de um estilo. “A venda foi retirada dos meus olhos: durante tempo demais tenho vivido numa ingenuidade estilística. O imperativo categórico: ‘Tu deves e precisas escrever’ me tirou o sono” (Nietzsche citado por Janz, 2016).
Noutra carta, enviada ao amigo Carl von Gersdorff, nesse mesmo período de redação do trabalho sobre as fontes de Diógenes Laércio, Nietzsche esclarece a si mesmo que tipo de escrita procurava: “Preciso aprender a tocar nele como em um piano, não, porém, peças estudadas, mas improvisações livres, tão livres quanto possível, mas sempre lógicas e belas” (Nietzsche citado por Janz, 2016).
Os improvisos de Nietzsche ao piano eram encantadores e, segundo o biógrafo Curt Paul Janz, causavam forte impressão nos ouvintes iniciados ou não na música. Gersdorff testemunhou inúmeras vezes essa conversa melódica de Nietzsche ao piano e, quatro décadas depois, ainda tinha gravado na memória esse pequeno acontecimento: “Nós nos reuníamos todas as noites entre as sete e sete e meia na sala de música. Creio que Beethoven não era capaz de improvisar de forma mais cativante do que Nietzsche quando, por exemplo, uma tempestade se aproximava” (Gersdorff citado por Janz, 2016). O improviso de Nietzsche envolvia o tempo da música e o instante, captado num estado de atenção plena. Podemos imaginá-lo ao piano, no fim do dia — o cheiro da chuva, os clarões repentinos, o uivo do vento, o troar dos trovões — e Nietzsche ali, saltando para o próximo acorde, sem hesitação, perante a liberdade do instante e da criação.
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Além de despertar o cuidado estilístico e a vontade de se tornar escritor, a pesquisa sobre o livro de Diógenes Laércio revelou a Nietzsche aquilo que Pierre Hadot e Michel Foucault afirmaram nos anos 1970-80: que a filosofia, em sua origem, era um modo de vida, uma escolha de vida. Nietzsche percebeu que o filósofo grego ensinava por meio de sua fisionomia, de sua atitude e de seu comportamento com os outros tanto quanto pela sua fala. Toda a doutrina era visível; se expressava nos gestos cotidianos, no corpo do filósofo. O jovem percebeu que a grande unidade de estilo — que tanto o fascinava no esplendor da Antiguidade grega — vinha justamente dessa conformidade corajosa entre o modo de viver e o pensamento.
Na leitura de Diógenes Laércio, Nietzsche teve acesso aos acontecimentos miúdos da vida de seus heróis filosóficos: Heráclito brincando com as crianças, dizendo aos que zombavam disso que era melhor brincar com elas do que se juntar à canalha que governava a cidade; as vestes solenes de Anaximandro, a sua postura altiva, que correspondia exatamente ao que dizia sobre o caráter trágico da vida. A vida de cão sem dono, de Diógenes, o cínico… Nietzsche percebeu com absoluta clareza que a filosofia era um modo de vida. E se perguntou: se assumisse o chamado da filosofia, seria capaz de viver a vida de um filósofo? Teria coragem de viver uma filosofia, tal como fizeram os seus heróis da Antiguidade?
Nietzsche teve que sufocar esses experimentos, essas ideias estranhas, pois o seu mestre acadêmico e grande incentivador, professor Friedrich Ritschl, não aprovava o flerte entre a ciência filológica e a aventura filosófica. Aos olhos do professor, Nietzsche se tornaria em pouco tempo o maior filólogo alemão de sua época, um autêntico erudito. E o aluno, por questões de sobrevivência, pensando numa futura profissão, aceitou esse destino programado por seu mestre, que anos mais tarde será lembrado como “o único erudito genial que até hoje me foi dado encontrar” (Nietzsche, 1995).
Por indicação de Ritschl, Nietzsche foi nomeado professor de filologia clássica da Universidade da Basileia logo após o término de seu curso. Foi dispensado de fazer o exame de doutorado, obrigatório na época para assumir uma cátedra universitária, por causa de sua brilhante trajetória acadêmica. A mãe e os familiares, antes temerosos com os descaminhos do “pequeno pastor”, ficaram entusiasmados com a boa nova. Sucesso, estabilidade financeira, a promessa de conforto e dignidade burguesa. No seio familiar, em Naumburg, nesse começo de ano de 1869, Nietzsche se sentia como um “poodle glorificado” e lutava para se defender do entusiasmo exagerado daqueles que o cercavam e mal o compreendiam.
Na noite anterior ao embarque, Nietzsche se recolheu e, por meio da escrita de uma carta destinada a Gersdorff, procurou esclarecer para si esse momento de hesitação e de esperança também. Mais uma vez veio à tona a máxima de Píndaro, agora em sua forma negativa: não se tornar o que não se é. Nietzsche (2004), prestes a enfrentar o mundo do trabalho — que “detém as rédeas de cada um e sabe impedir o desenvolvimento da razão, dos anseios, do gosto pela independência” —, avalia o perigo que corre e avalia também sua própria armadura, o seu próprio equipamento de resistência que será colocado à prova nessa nova etapa da vida:
“O último prazo expirou; chegou a última noite que passo na minha pátria. Amanhã de manhã partirei. […] Sim, sim, chegou a minha vez de ser um filisteu. Um dia ou outro, aqui ou além, o ditado realiza-se sempre. As funções e as dignidades são coisas que nunca se aceitam impunemente. Todo problema reside em saber se as cadeias são de ferro ou de linha. Tenho ainda suficiente coragem para romper, se necessário, qualquer elo e recomeçar de uma outra maneira ou em outro lugar, uma nova vida. Não adquiri ainda a postura curvada tão característica do professor. Zeus e todas as musas me preservem de ser filisteu, homem abandonado pelas musas, homem de rebanho! Não vejo como me poderei tornar no que não sou. […] Mas imagino que posso aceitar o perigo mais tranquilamente do que a maior parte dos filólogos: a seriedade filosófica está em mim enraizada muito profundamente. Os verdadeiros e essenciais problemas foram-me sempre mostrados pelo grande mistagogo Schopenhauer, de modo que não corro o risco de desviar-me de forma desonrosa da “Ideia”. Injetar esse novo sangue à minha ciência, comunicar aos meus ouvintes essa seriedade schopenhaueriana, que brilha na fronte do homem sublime, esse é o meu voto, a minha esperança audaciosa […]” (Nietzsche apud Dias, 1991).
No dia 19 de abril de 1869, aos 24 anos, Nietzsche desembarca na cidade suíça, que vai testemunhar, no decorrer de uma década, o sofrido parto de um filósofo.
Amigo leitor, você deve ter percebido que este artigo eu preparei com referências exatamente para você poder pesquisar essas referências e saber direito, portanto atenção no desenvolvimento. Venham com Nilo Deyson.
O início das atividades pedagógicas do jovem professor coincide com a consolidação da amizade com o músico Richard Wagner, que morava nessa época em um recanto próximo à Basileia, à beira do Lago dos Quatro Cantões. Tribschen se tornou a pátria espiritual de Nietzsche durante três anos. Em uma carta para o amigo Erwin Rohde, ele manda notícias da época:
“Nesses últimos tempos (setembro de 1869) estive em Tribschen quatro vezes seguidas em um pequeno espaço de tempo e, além disso, uma carta faz o mesmo caminho quase que semanalmente. Caro amigo, o que ali aprendo e vejo, o que ouço, é impossível ser descrito. Schopenhauer e Goethe, Píndaro e Ésquilo não morreram […]” (Nietzsche citado por Dias, 1991).
Se, de um lado, “O nascimento da tragédia”, o livro de estreia de Nietzsche publicado em 1872, registra as experiências filosóficas e estéticas partilhadas com Wagner e sua esposa Cosima, amada por Nietzsche em segredo, de outro, nas palestras e nos escritos sobre a educação, Nietzsche reflete sobre seu próprio ofício, o que inclui um olhar crítico sobre as instituições de ensino e sobre a “cultura de massa” da época, encarnada na figura do filisteu da cultura.
A terceira citação do “torna-te o que tu és” — a primeira publicada em livro —, surge nesse campo de reflexão ligado à função do educador, à crítica da cultura utilitária, crítica aos filisteus que submeteram a cultura às leis que regem as relações comerciais. E, dessa vez, o verso de Píndaro foi incorporado ao texto em sua forma imperativa. É dessa forma que aparece logo no primeiro parágrafo de Schopenhauer educador, a terceira das “Considerações extemporâneas”:
“Ao ser perguntado que natureza encontrou nos homens em todos os lugares, o viajante que viu muitos países e povos e vários continentes respondeu: eles têm uma propensão à preguiça. Alguns acharão que ele teria respondido com mais justeza e razão: todos são timoratos. Eles se escondem atrás dos costumes e opiniões. No fundo, todo homem sabe muito bem que não se vive no mundo senão uma vez, na condição de único, e que nenhum acaso, por mais estranho que seja, combinará pela segunda vez uma multiplicidade tão diversa neste todo único que se é: ele o sabe, mas esconde isso como se tivesse um remorso na consciência ― por quê? Por medo do próximo que exige esta convenção e nela se oculta. Mas o que obriga o indivíduo a temer o seu vizinho, a pensar e agir como animal de rebanho e não se alegrar consigo próprio? Em alguns muito raros, talvez o pudor. Mas na maioria dos indivíduos é a indolência, o comodismo, em suma, esta propensão à preguiça da qual falava o viajante. Ele tem razão: os homens são ainda mais preguiçosos do que timoratos e temem antes de mais os aborrecimentos que lhes seriam impostos por uma honestidade e uma nudez absolutas. Somente os artistas detestam este andar negligente, com passos contados, com modos emprestados e opiniões postiças, e revelam o segredo, a má consciência de cada um, o princípio segundo o qual todo homem é um milagre irrepetível. Quando o grande pensador despreza os homens, é a preguiça destes que ele despreza, pois é ela que dá a eles o comportamento indiferente das mercadorias fabricadas em série, indignas de contato e de ensino. O homem que não quer pertencer à massa só precisa deixar de ser indulgente para consigo mesmo; que ele siga a sua consciência que lhe grita: ‘Sê tu mesmo! Tu não és isto que agora fazes, pensas e desejas’ […]” (Nietzsche, 2003).
Compreendo quem considere banal, convencional, um discurso como esse; algo que qualquer coach alfabetizado, palestrante motivacional ou personal trainer do autoconhecimento poderia fazer uso a fim de vender, mais uma vez, a conhecida fórmula: “Seja você mesmo!”. Mas esse sentido atual é diferente daquele que orientava o pensamento de Nietzsche. O “seja você mesmo” do tipo empresarial e produtivo parte do princípio de que existe um eu verdadeiro, interior, essencial, que por uma razão ou outra não se arrisca no comércio da vida. O senso comum diz que, para encontrar esse eu verdadeiro, é preciso conhecer a si mesmo, no sentido de mergulhar numa interioridade a fim de estabelecer uma relação positiva consigo mesmo e obediente às leis sagradas de um dogma religioso qualquer, ou com as leis do mercado, como hoje em dia. Nietzsche não era adepto desse tipo de prática de si. Cito uma outra passagem de Schopenhauer educador:
“Mas como nos encontrar a nós mesmos? Como o homem pode se conhecer? Trata-se de algo obscuro e velado; e se a lebre tem sete peles, o homem pode bem se despojar setenta vezes das sete peles. Mas nem assim poderia dizer: ‘Ah! Por fim, eis o que tu és verdadeiramente, não há mais o invólucro’. É também uma empresa penosa e perigosa cavar assim em si mesmo e descer à força, pelo caminho mais curto, aos fundos do próprio ser. Com que facilidade, então, ele se arrisca a se ferir tão gravemente que nenhum médico poderia curá-lo. E, além disso, por que seria isto necessário, se tudo carrega consigo o testemunho daquilo que somos? As nossas amizades e os nossos ódios, o nosso olhar e o estreitar de nossa mão, a nossa memória e o nosso esquecimento, os nossos livros e os traços de nossa pena? […]” (Nietzsche, 2003).
Apesar de ser íntimo da solidão e do silêncio, o filósofo sabia da função do outro no processo de constituição de si. A sua volumosa correspondência, a prática de formar pequenos grupos de amigos dedicados à pesquisa, ao saber que serve à vida, evidenciam que o exame de si praticado por Nietzsche nada tinha a ver com uma viagem narcísica, ou, mesmo, com uma confissão de si para si mesmo, visando uma melhor adaptação às leis do comércio da vida. Ele estava atento nesse “tudo” que atravessa o sujeito e que carregava o testemunho daquilo que ele era.
O verdadeiro eu, nessa época em que escreve Schopenhauer educador, estaria fora do sujeito, além dele, acima dele. Por essa razão, no exercício filosófico que Nietzsche propõe às jovens individualidades, é fundamental a alteridade do mestre nessa jornada rumo a si mesmo:
Que a jovem alma se volte retrospectivamente para sua vida e faça a seguinte pergunta: ‘O que tu verdadeiramente amaste até agora, que coisas te atraíram, pelo que tu te sentiste dominado? Faz passar novamente sob teus olhos a série inteira destes objetos venerados, e talvez eles te revelem, por sua natureza e por sua sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu. Compare estes objetos, observe como eles se completam, crescem, se superam se transfiguram mutuamente, como formam uma escada graduada através da qual até agora te elevaste até o teu eu. Pois tua essência verdadeira não está oculta no fundo de ti, mas colocada infinitamente acima de ti, ou pelo menos daquilo que tomas comumente como sendo teu eu.’ […]” (Nietzsche, 2003).
Podemos chamar esse tipo de exame que visa à constituição de um eu de “exercício de admiração”, para usar aqui a bela expressão lapidada por Cioran. Trata-se de meditar, contemplar sem pressa as figuras que admiramos por terem realizado coisas que jamais faríamos por indolência, ausência de força, medo ou por outro motivo qualquer. Essas figuras admiráveis, com as quais temos afinidade, formariam uma espécie de “constelação” que nos guiaria rumo a nós mesmos, pela via da imitação. Como esclarece Charles Andler:
“Nossa imitação será sempre original. Os modelos sucessivos e cada vez mais elevados que nos proporemos para venerá-los nos ensinarão somente a lei da nossa individualidade. A série de nossas admirações sucessivas é uma indicação do nosso temperamento. É uma luz que nos antecede no caminho que abrimos para nós mesmos […]” (Andler, 2016).
Como alguém se torna o que é? Nessa época em que escreve as “Considerações extemporâneas” (1873-1876), Nietzsche aposta entusiasticamente na “metafísica do artista”, na figura do gênio, nos sujeitos raros que dão temperamento a uma época; uma ideia que ele aprendeu com Schopenhauer e que projetou na figura de Wagner. Num mundo sem Deus, o homem se eleva mirando os artistas, os poetas, especialmente os poetas da música. A quarta das “Extemporâneas” é um texto em homenagem a Wagner, de tributo ao teatro construído por ele, Bayreuth, que Nietzsche via como o início do Renascimento do espírito grego na Alemanha; o ponto de partida para a criação de um novo tipo de homem, o homem do futuro, aprimorado pela arte do Mestre.
O jovem Nietzsche via no drama musical wagneriano a possibilidade de uma revolução; não uma revolução social, de tomada de poder do Estado ou dos meios de produção, mas uma revolução na alma de cada indivíduo. Ele imaginava que a figura do grande artista poderia afetar o público, arrebatá-lo com questões novas, aquém ou além daquelas em circulação nas instituições culturais e de ensino de sua época.
Nietzsche projetava uma revolução cultural, uma transformação de toda a cultura, de toda a forma de ser e pensar na modernidade, que, em resumo, tinha como meta a constituição de “homens correntes” e, como princípio, a “união da inteligência com a propriedade”. Algo que em nossa época neoliberal se tornou mais evidente e efetiva.
“A verdadeira tarefa da cultura seria então criar homens tão ‘correntes’ quanto possível, um pouco no sentido em que se fala de uma ‘moeda corrente’. Quanto mais houvesse homens correntes, mais um povo seria feliz; e o propósito das instituições de ensino contemporâneas só poderia ser justamente o de fazer progredir cada um até onde sua natureza o conclama a se tornar ‘corrente’, formar indivíduos de tal modo que, do seu nível de conhecimento e de saber, ele possa extrair a maior quantidade de felicidade e de lucro. Cada um deveria avaliar-se a si próprio com precisão, cada um deveria saber o quanto poderia pretender da vida. ‘A união da inteligência e da propriedade’, que se coloca como princípio nesta concepção de mundo, toma o valor de uma exigência moral. Segundo esta perspectiva, se chega mesmo a odiar toda cultura que torne solitário, que proponha fins para além do dinheiro e do ganho, ou que demande muito tempo; aqui, se tem o costume de descartar as tendências divergentes, que apelam para um ‘egoísmo superior’ ou para um ‘epicurismo moral da cultura’. A moral que está aqui em vigor exige seguramente algo de inverso, em dinheiro sonante, uma cultura rápida, para que alguém pudesse rapidamente se tornar um ser que ganha dinheiro, mas também uma cultura muito fundamentada, para que alguém pudesse se tornar um ser que ganha muito dinheiro […]” (Nietzsche, 2003).
Nesse período em que escreve e publica as “Considerações extemporâneas”, o professor Nietzsche, agora na casa dos 30 anos, elege o mercado e o Estado como os principais obstáculos para que uma jovem individualidade se torne o que se é. O “egoísmo dos negociantes” quer produzir apenas ansiosos consumidores de cultura, de moda, de entretenimento.
Nietzsche percebe que a felicidade do rebanho se transformaria em um grande negócio. O negócio da opinião pública que vai afetar profundamente o modo de ser das pessoas, algo que, mais tarde, a Escola de Frankfurt irá chamar de “indústria cultural”, hoje metamorfoseada em “redes sociais”.
Por outro lado, o professor desnuda o “egoísmo do Estado” que, por meio de suas instituições de ensino, pretende tão somente formar servidores obedientes, úteis e disciplinados. Um tipo de gente que não precisa ter fé no Estado, como se fosse a “marcha de Deus no mundo”, como pensava Hegel, mas que fosse obediente o suficiente para trabalhar por ele, mesmo a contragosto, mesmo entorpecido pelos medicamentos ou convicto da inutilidade de todo o esforço pessoal. Um tipo de gente que reclama, que tem acessos de indignação contra os governantes de plantão, mas sem a firme determinação de abandonar a carreira do Estado, porque ela garante o conforto e as possibilidades de consumo. E também ocupa o tempo, preenche o dia com obrigações, tagarelices e demandas que impossibilitam o silêncio e o vazio necessários para retornar a si mesmo e contemplar aquelas luzes que antecedem o caminho.
O mercado e o Estado moderno não precisam de homens amadurecidos que brincam, como Heráclito. A pressa é geral, diz Nietzsche (2003), “pois cada um foge rapidamente de si mesmo”. E nesta velocidade da fuga de si em benefício do bom emprego, do lucro, das dignidades do poder de consumo, não há tempo para que as jovens almas amadureçam, pois o ócio sem preguiça é considerado um crime lesa-mercado, um luxo inútil para a sociedade hiperativa. “Cegam-se alguns pássaros para que eles cantem melhor: não acredito que os homens de hoje cantem melhor do que seus avós, mas sei que eles são cegados muito cedo” (Nietzsche, 2003).
Nietzsche afirma que os homens modernos são cegados por uma luz demasiado clara, demasiado súbita, demasiado variável (Nietzsche, 2003). É irresistível pensar, hoje em dia, na luz dos smartphones como a agulha que nos cega e nos prepara para a renúncia de si e para a obediência às leis do mercado, da concorrência e da opinião pública. Um tipo de luz que atravessa nosso olhar diariamente, que nos ocupa, nos deixa ansiosos por novidades e notícias que não alteram o nosso modo de ser, pois informação não é sabedoria. Uma luz que torna mais veloz ainda a fuga de nós mesmos porque somos estimulados a comentar, julgar e controlar a vida dos outros; a vida de todos e de qualquer um que não esteja acima de nós, que não possua o poder de nos elevar. E, nessa distração, nessa vigilância que entretém e diverte, entre um like e outro, entre uma frase lacradora e outra, nos afastamos de nós mesmos, nos distanciamos do exame de si, da reflexão sobre aquilo que verdadeiramente amamos um dia e que pode conter o caminho para a nossa própria elevação:
“Ó, pobres-diabos nas grandes cidades da política mundial, homens jovens, dotados, martirizados pela ambição, que consideram seu dever, em todos os acontecimentos — e sempre acontece algo —, trazer seu comentário! Que, assim fazendo poeira e ruído, acreditam ser o carro da história! Que, por espreitar sempre, sempre atentar para o momento de inserir seu comentário, perdem toda produtividade autêntica! Ainda que anseiem muito por fazer grandes obras, nunca lhes vêm o profundo silêncio da prenhez! O acontecimento do dia os empurra como se fossem palha, enquanto eles acreditam empurrar o acontecimento – os pobres coitados! […]” (Nietzsche, 2004).
Nos dez anos de docência, o professor, ao seu modo e com os recursos que tinha, tentou apresentar aos jovens os grandes mestres da Antiguidade e da filosofia que poderiam libertá-los da corrente do mercado e do Estado, agenciadores de pobres coitados. Mais do que os planos de aula ou os relatórios acadêmicos apresentados à Universidade, é interessante aqui rememorar o depoimento de um ex-aluno de Nietzsche, Louis Kelterborn. Perceber, por meio do olhar dele, o modo de ensinar do professor. O seu comportamento, a sua postura, o seu modo de ser que inspirava as jovens individualidades.
“Sua maneira de se dirigir aos alunos nos era absolutamente nova e despertava em nós o sentimento de nossa própria personalidade. Soube, desde o início, estimular-nos para que tivéssemos um maior interesse pelo estudo, talvez mais ainda de maneira indireta, pelo seu saber e pelo seu exemplo, do que de maneira direta, ao nos declarar, por exemplo, que todo homem deveria pelo menos uma vez na vida se dar ao trabalho de consagrar ao estudo um ano inteiro, fazendo da noite o dia, e que esse ano tinha chegado para nós. Ele não nos considerava em bloco, como uma classe ou um rebanho, mas como jovens individualidades. Um de seus principais objetivos era de nos estimular para uma atividade pessoal […]” (Louis Kelterborn citado por Dias, 1991).
No fundo, esse depoimento revela como a sentença de Píndaro foi transformada em regra de conduta e de condução daquele que chega:
“Durante a conversa, o professor procurava ouvir mais do que falar; por meio de perguntas, estimulava seu interlocutor a exprimir livremente suas opiniões. Mas o que me uniu particularmente a ele foi seu temperamento essencialmente musical. A maior parte de nossas conversas girava em torno de questões musicais, no centro das quais brilhava a estrela de Richard Wagner. Desde a primeira visita, ele me confiara que tinha outrora hesitado, como eu mesmo, a se consagrar inteiramente à música, que havia aprofundado seus conhecimentos musicais com a maior seriedade e que havia buscado informação não nos manuais modernos, mas nas fontes antigas, de onde nossos mestres clássicos tinham tirado seu saber […]” (Louis Kelterborn citado por Dias, 1991).
A tensão entre a vida de professor e a vida filosófica, entre a profissão e a vocação, acirra-se a partir da escrita de Schopenhauer educador, texto de longa gestação, partejado em sua forma definitiva em agosto/setembro de 1874. Duas semanas após enviar os originais para a gráfica, Nietzsche escreve a um amigo:
“Foi um período difícil essa parte final de nosso semestre de verão. Além de todos os outros trabalhos, tive que reescrever uma longa passagem da minha terceira “Consideração”, e o inevitável abalo emocional provocado pelas reflexões e sondagens no íntimo muitas vezes quase me derrubou, e nem mesmo agora consegui sair completamente do puerpério […]” (Nietzsche apud Janz, 2016).
A recuperação do parto foi difícil e lenta porque, nesse escrito, Nietzsche (1995) esboça a sua história mais íntima, o seu vir-a-ser, como afirmará em “Ecce homo”. A partir de Schopenhauer, Nietzsche idealiza a figura do filósofo ou, mais precisamente, idealiza o heroísmo de uma vida filosófica. Enfatiza a coragem necessária para se afastar dos desejos da massa, da moral do rebanho e das tentações da fama. Trata-se de uma vida solitária e perigosa. Perigosa porque o verdadeiro filósofo luta contra o seu tempo, não da boca para fora, fazendo coro no teatro político, mas combatendo em si mesmo o “espírito” de sua época, uma “mistura impura e confusa de elementos incompatíveis para sempre irreconciliáveis” (Nietzsche, 2003). Uma mixórdia, uma confusão de princípios e enunciados que condena o indivíduo ao exercício cotidiano da hipocrisia no relacionamento com o outro e consigo mesmo, porque as meias-verdades produzem apenas relações pela metade. Não há como ser íntegro.
O pensamento de Nietzsche voava alto, frequentava as alturas do ideal, o ar rarefeito do gênio filosófico, mas, quando pousava o olhar em sua escrivaninha, tinha uma pilha de trabalhos escolares para corrigir, tinha aulas para preparar, tinha que lidar com as questões da ciência filológica, tinha obrigações sociais que exigiam o seu tempo e a sua atenção. Nietzsche não era um homem livre. Somente com uma forte dose de hipocrisia poderia responder “sim” àquela pergunta bárbara que formulou: “No mais profundo do teu coração, dizes ‘sim’ à tua existência?” (Nietzsche, 2003).
Essa tensão entre a vida acadêmica e a vida filosófica cresce e transborda, atingindo em cheio o corpo de Nietzsche. O regimento da doença se instaura no final do ano de 1874. As crises de dor de cabeça, acompanhadas por crises de vômito, vão se tornar mais frequentes. Nietzsche noticia em cartas o estado de sua saúde, que se deteriora com o passar do tempo e com as tentativas fracassadas de tratamento, pois os médicos consultados não conseguem chegar a um diagnóstico.
Além da tensão entre a vida acadêmica e a vida filosófica, algo muda na constelação de Nietzsche. Ele sente que a paixão por Wagner se apagara. Toda aquela ardorosa militância pela Revolução do homem por meio do drama musical wagneriano agora lhe parecia um erro, talvez uma tolice. “Eu havia visto o sublime, o ideal — foi com isto que vim a Bayreuth, daí a minha decepção” (Nietzsche citado por Janz, 2016).
No caminho do tornar-se o que se é, Nietzsche sente que alcançou um ponto de vista mais elevado sobre a arte e sobre a vida. A sua pesquisa o levou além dos limites do romantismo e do idealismo que animavam o projeto cultural e estético de Wagner e a filosofia de Schopenhauer. Era preciso explorar esse desvio, esse descaminho que se abria ao pensamento, apesar das limitações impostas pela doença e pela tristeza nascida de uma grande decepção. O corpo e a alma padeciam, e Nietzsche precisava escrever para se curar.
Incapacitado de ler e de tomar notas por causa das dores nos olhos e das crises de enxaqueca, o filósofo ditou o livro “Humano, demasiado humano”, obra entendida como sua declaração de independência intelectual. “Nele delimitei pela primeira vez os contornos de meu próprio pensamento” (Nietzsche, 2005). Nesse livro, ele encontrou também uma forma adequada para os seus improvisos: o estilo aforismático, muito livre. Algumas sentenças ocupavam duas ou três linhas, outras cobriam páginas inteiras. Temas pensados e repisados, em longas caminhadas (quando a saúde permitia), ganhavam forma na voz e viravam textos por obra e diligência do amigo e ex-aluno Heinrich Köselitz. “Eu ditava, a cabeça enfaixada e dolorida, ele escrevia, e corrigia também — ele foi, no fundo, o verdadeiro escritor; eu fui apenas o autor” (Nietzsche, 1995). Em “Ecce homo”, o filósofo recordará daqueles meses dolorosos e vai expressar a sua gratidão à doença que o obrigou a retornar a si mesmo:
Naquela época, meu instinto decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir, confundir-se com outros. Qualquer espécie de vida, as condições mais desfavoráveis, doença, pobreza — tudo me pareceu preferível àquela indigna “falta de si”, na qual havia caído por ignorância, por juventude, e na qual havia depois permanecido por letargia, pelo chamado “sentimento do dever”. […] A doença me libertou lentamente: poupou-me qualquer ruptura, qualquer passo violento e chocante. A doença deu-me o direito a uma completa inversão de meus hábitos; ela permitiu, ela me ordenou esquecer; ela me presenteou com a obrigação à quietude, ao ócio, ao esperar e ser paciente…
“Mas isso significa pensar!… Apenas meus olhos puseram fim à bibliofagia, leia-se “filologia”: estava salvo dos livros. Aquele Eu mais ao fundo, quase enterrado, quase emudecido sob a constante imposição de ouvir outros Eus (― isto significa ler!), despertou lentamente, tímida e hesitantemente ― mas enfim voltou a falar. Nunca fui tão feliz comigo mesmo como nas épocas mais doentias e dolorosas de minha vida: basta olhar Aurora, ou o “Andarilho e sua sombra”, para compreender o que foi esse “retorno a mim”: uma suprema espécie de cura! […]” (Nietzsche, 1995).
A doença vai finalmente libertar Nietzsche da vida acadêmica. Ela irá obrigá-lo a pedir demissão. No dia 30 de junho de 1879, registrou-se na Universidade da Basileia a demissão do professor Friedrich Nietzsche. Movidos pelo sentimento de gratidão e de afeto, os conselheiros da Universidade concederam ao professor uma pensão que equivalia a dois terços de seu salário. Com esse dinheiro, Nietzsche viveu modestamente a vida errante, sempre em busca de um céu propício a seus pensamentos: os verões nas alturas, geralmente na região de Sils-Maria; os invernos no sul, na riviera francesa ou italiana. Além das despesas ordinárias, o único luxo de Nietzsche: seus livros. Ele bancou a impressão de todos os seus livros, que vendiam pouco, alguns deles de baixíssima tiragem, praticamente destinada a um círculo pequeno de amigos.
Nietzsche exercitou a perseverança nesses 10 anos em que viveu a vida de filósofo andante e solitário. De 1878 a 1889, ano do colapso espiritual em Turim, ele escreveu dez livros. A sentença de Píndaro será lembrada nesse percurso. Em “Humano, demasiado humano”, publicado originalmente em 1878, ela aparece no aforismo 263. Em “A gaia ciência” (1882), nos aforismos 270 e 335. Em “Zaratustra”, obra criada entre os anos de 1883 a 1885, a frase de Píndaro volta em duas passagens: “O convalescente” e “A oferenda do mel”. Em “Ecce homo”, autobiografia escrita três meses antes da loucura se manifestar em Turim, a máxima retornará como o subtítulo da obra. Uma espécie de coroamento de um caminho.
Nesse texto, o filósofo fará a sua derradeira reflexão sobre o enunciado transformado em princípio filosófico e experiência de vida. Assim falou Nietzsche:
“Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo ― do amor de si… […] Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as “modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além da tarefa. […] Entretanto segue crescendo na profundeza a “ideia” organizadora, destinada a dominar ― ela começa a dar ordens, lentamente conduz de volta dos desvios e vias secundárias, prepara qualidades e capacidades isoladas que um dia se mostrarão indispensáveis ao todo. ― Constrói uma após outra as faculdades auxiliares, antes de revelar algo sobre a tarefa dominante, sobre “fim”, “meta”, “sentido”. ― Encarada por este lado minha vida é simplesmente miraculosa. Para a tarefa de uma transvaloração dos valores eram necessárias talvez mais faculdades do que as que jamais coexistiram em um só indivíduo. Hierarquia das faculdades; distância; a arte de separar sem incompatibilizar; nada misturar, nada “conciliar”; uma imensa multiplicidade, que, no entanto, é o contrário do caos ― esta foi a precondição, a longa e secreta lavra e arte de meu instinto […]” (Nietzsche, 1995).
“Torna-te o que tu és ― sem que se saiba sequer remotamente o que se é”. Nietzsche viveu tão intensamente a sentença que acabou por renovar o sentido da velha verdade a partir de sua própria experiência. O que seria tornar-se o que se é sem saber o que se é? Experimentar, tentar, ensaiar, naquele sentido tão bem lapidado por Foucault (1984) na introdução de “O uso dos prazeres”: “O ensaio como experiência modificadora de si no jogo da verdade é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ascese, um exercício de si, no pensamento” (p.13).
Trata-se do entendimento da vida filosófica como uma vida experimental. “Queremos examinar nossas vivências de modo rigoroso como se faz uma experiência científica, hora a hora e dia a dia! Queremos ser nossos experimentos e nossas cobaias” (Nietzsche, 2001). Aqui já não se olha tanto para o alto, para os astros que iluminam um caminho. O olhar é sobre o caos que o filósofo carrega dentro de si. Uma multiplicidade de forças em permanente estado de tensão e de expansão. E desse caos é que salta uma estrela bailarina. Um modo de vida, uma possibilidade outra de levar a vida fiel à terra e fiel a si mesmo.
Nesse momento em que somos seduzidos pelas políticas identitárias como forma de resistência à onda populista, talvez seja interessante rememorar a lição nietzschiana do tornar-se o que se é sem que se saiba o que se é. Não se trata de assumir e lutar e até mesmo morrer por uma identidade, por uma forma de ser cristalizada, que exige os seus direitos e seu reconhecimento pelo Estado ou pela sociedade. Talvez seja possível ir além nessa luta contra a política populista que, como pensa Peter Sloterdijk (2004), só se realiza quando há condições concretas de aviltar o estranho, o outro, o diferente.
A questão fundamental que Nietzsche encena me parece estar ligada àquela pergunta malvada um dia formulada por Foucault (2000): “Como não ser governado? Como não ser governado desse modo, em nome desses princípios, em vista de tais objetivos e por meio de tais procedimentos; não desse modo, não para isto, não por essas pessoas?”.
A experimentação de Nietzsche, em última análise, é um tornar-se outro, um exercício de outramento; de transposição, de transformação do que se é por meio da reflexão, do estudo, da contemplação e da invenção de modos de vida, de novas possibilidades de vida, a partir de outros valores e princípios. Poderíamos caracterizar Nietzsche como o descobridor do heteronarcisismo, como define Peter Sloterdijk (2004), pois o que o filósofo experimentador “afirma em si mesmo são os outros, as alteridades que entram nele formando uma composição que o atravessa, o encanta, o tortura e o surpreende. Sem surpresas, a vida seria um erro.” Um erro, porque, como alvos identificados, localizados, manipulados pela política populista, apenas alimentaríamos o monstro que pensamos combater. Enfim, caso queiram ler outros artigos de Nilo Deyson, basta ir ao Google e pesquisar: “Artigos Nilo Deyson”.
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