Devo confessar que considero extremamente difícil manter a lucidez em tempos tão conturbados como os de hoje. Atualmente, as pessoas emitem opiniões e fazem julgamentos de valor como se fossem donos da verdade absoluta. Assim, por exemplo, um padre é considerado um santo por algumas pessoas quando ajuda os pobres, mas esse mesmo padre é chamado de comunista por outras quando aponta as causas da pobreza. Um professor é considerado um bom professor por alguns pais, porque tem sensibilidade pedagógica, mas é chamado de agitador por alguns gestores quando luta por melhores condições de trabalho. Um gestor escolar é considerado um bom administrador quando toma as decisões ouvindo o coletivo da escola, mas é considerado um ditador se aplica medidas disciplinares previstas no regimento escolar. Trata-se de uma visão separatista que tem um fundamento maniqueísta ao justificar posições extremas ou dogmáticas: de um lado estão os do bem e de outro lado, os do mal.
Muitas vezes, as pessoas usam aleatoriamente palavras como esquerda e direita, conservador e progressista, capitalista e comunista porque desconhecem não apenas o contexto histórico em que elas surgiram, mas também o seu sentido essencial. Essas palavras são muito usadas, hoje em dia, para estigmatizar pessoas, gerar ódio e dividir a sociedade. É interessante notar que a visão dogmática está presente seja de um lado, seja do outro, o que é terrível para a convivência humana porque torna impossível o diálogo.
Li, há algum tempo, alguns livros de Roger Scruton, filósofo e escritor britânico da contemporaneidade, entre eles, “O Rosto de Deus”. Reconheci meu lado conservador em algumas passagens do livro. Assisti a alguns vídeos de Terry Eagleton, filósofo, professor, crítico literário contemporâneo de Scruton e um dos seus mais importantes opositores. Roger é considerado um conservador pela comunidade acadêmica e Terry é visto como um intelectual de esquerda. Ouvi palestras proferidas por ambos e também entrevistas muito interessantes que concederam nos meios de comunicação. Tive o prazer de assistir pela internet um debate que os dois desenvolveram sobre o tema “A Guerra das Culturas”, promovido pela organização Intelligence Squared, empresa de mídia que organiza debates ao vivo e outros eventos culturais. Nessa ocasião, apesar de defenderem teses diametralmente opostas em relação ao significado social da cultura e ao papel da Universidade na sua transmissão, Scruton e Terry debateram sobre o assunto de forma substancial e esclarecedora, embora cada um tenha defendido e reafirmado, nessa oportunidade, suas convicções. A plateia que os assistiu foi contemplada com uma aula de civilidade por meio da qual ficou demonstrado ser possível debater ideias de uma forma bem fundamentada, coerente, criteriosa e, sobretudo, respeitosa. Não houve, por parte de nenhum deles, atitude alguma de arrogância ou menosprezo pelo outro. Com seus talentos e sabedoria, provaram que somente o esclarecimento pode salvar o homem da insensatez que é própria daqueles que não cultivam o senso crítico.
Quando Scruton morreu, em janeiro de 2022, Terry chorou porque perdeu um amigo e um interlocutor sem igual, a quem muito respeitava. Lembro-me que, numa de suas entrevistas, Terry afirmou que, sem o uso da razão, a humanidade sucumbe, no entanto, ela não pode ser vista como um Deus. Necessita basear-se em algo muito mais fundamental e profundo. O amor é, nas suas próprias palavras, mais poderoso do que a razão. Acredito que, nesse aspecto, Roger Scruton, seu opositor, concordasse plenamente com ele. Afinal, trata-se de dois amantes do belo, do bem e da verdade.
Então, você me pergunta: afinal, o que você está querendo me dizer? Que onde há dogmatismo não há lucidez? Sim, isso mesmo. Não há, se entendermos o dogmatismo como uma espécie de cegueira e a lucidez como a capacidade de elaborar uma visão de mundo autêntica, autônoma, coerente, crítica e amorosa.
Kant, em texto de sua autoria — O que é o Esclarecimento — afirma que “o esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado”, entendendo a menoridade como a “incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo”. Kant atribui a causa de tal incapacidade à falta de decisão e coragem para agir de forma autônoma. O filósofo afirma que a preguiça e a covardia fazem com que alguns homens escolham permanecer menores, tutelados por outros homens e suas ideias. Uma espécie de comodismo os impede de pensar e agir por si próprios, fazendo-os declinar da sua liberdade de pensar por si mesmos.
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Acredito que você, meu caro leitor, reconhece pessoas com esse perfil à sua volta. Aquelas que pagam para receber seus diplomas de curso superior, para fazer seus trabalhos escolares, para escrever suas teses de mestrado ou doutorado, ou que delegam a outrem responsabilidades e atribuições que são suas. Ou, ainda, aquelas que, pela falta do exercício do ato de aprender e refletir, não têm condições de analisar criticamente os fatos que ocorrem na sociedade ou as concepções que aí circulam e conduzem ações políticas nas várias esferas sociais. Essas pessoas erigem mitos e defendem suas ideologias. Ficam completamente cegas para outras visões e discriminam o pensamento e a postura divergente. Não agem com esclarecimento, não têm lucidez. Olham, mas não enxergam. Ouvem, mas não escutam. Falam, mas não pensam antes de falar. Não se percebem como sujeitos ativos que constroem e reconstroem a história.
O que podemos concluir sobre isso? Que o dogmatismo presente em muitas das diferentes visões que, atualmente, são defendidas por vários setores da sociedade contemporânea, inviabiliza o processo de desenvolvimento cultural e social da humanidade, desviando o ser humano do caminho da sua humanização, caminho esse que deve ser construído coletivamente pelo diálogo entre os sujeitos e trilhado com total responsabilidade por cada pessoa, durante toda sua existência.
O homem é por natureza um ser que só sobrevive em comunidade. Finalizo, então, com uma pergunta que meu peito não quer calar: quando iremos recuperar a lucidez de nossa razão e assumirmos a nossa corresponsabilidade?