Autoconhecimento

Delirium tremens

Silhueta de um casal de mulher e homem com os rostos próximos, em frente ao mar.
Ryan Jacobson / Unsplash

Pensa que só viciado em drogas ou bebida precisa passar por aquele conhecido período de desintoxicação? Pois está enganado, meu amigo! Se você realmente acredita nisso, é porque, com certeza, nunca se apaixonou. E lhe digo mais: paixão mal resolvida e droga não tem diferença alguma quando tomam conta do organismo: seu corpo reconhece como uma coisa só. Para ele, tudo é exatamente a mesma coisa, ou seja: uma droga!

Não sei se você já pulou de cabeça nos dois para comparar. Eu, na verdade, só conheço o vício da paixão. No outro tipo de droga, nem cheguei perto. Nunca tive curiosidade para saber que gosto tinha um “cheirinho do loló” ou qualquer ervinha até mais inocente. Mas de paixão, meu amigo, ah, isso eu entendo! E como entendo!… Mas conheci gente que se drogava – vários dos meus colegas de escola faziam isso – e posso lhe afirmar com toda a segurança dos meus longos anos de estrada: não tem diferença alguma entre o que eu percebia neles e o que percebo em mim a cada vez que me deixo dominar por essa sensação descontrolada chamada paixão!

Pare para pensar: o primeiro contato é sempre algo surpreendente, no qual você nunca sabe o que pode acontecer depois. A gente olha para o objeto do desejo e fica meio abobalhado, sentindo que estamos perto de viver uma experiência que, mesmo quando não dá para saber no que vai dar, não se consegue simplesmente fingir que não se está doido para saber. É um pau na moleira! Também dizer que se embarca nessa canoa por pura inocência não dá para convencer, a menos que estivéssemos no jardim da infância e alguém nos colasse no braço um desses “tattoos” cheios de pó para ser absorvido pelos poros. Mas, fora isso, nesse mundo de hoje, não dá para acreditar que um cara entre numa assim sem saber no que pode dar, venhamos e convenhamos.

Mas o negócio é que a gente entra, apesar de tudo, e quer mantê-la enquanto possa, e nem percebe quando aquilo vai se transformando em vício, vai consumindo tudo por dentro e nos subtraindo a capacidade de olhar para fora, de olhar para nós mesmos, de sabermos exatamente o que somos ou o que seremos sem ela, a partir da forma como se estabelece a dependência.

O fato é que, à vista do “bagulho”, a coisa fica socando lá na cuca como um bate-estaca e a gente se pergunta: “compro ou não compro?, compro ou não compro?… Comprei!”. E aí, meu amigo, se segura, porque vem chumbo grosso! A primeira “provadinha” também é aquilo de sempre: fica-se suando em bicas, o suor desce como se de uma nascente jorrando debaixo do braço, na cara aquele aspecto de “nerd” retardado, e até aquele articulado e rico vocabulário vira uma sequência de monossílabos do tipo “éhhh… bem… hã… tá, falou!” de botar inveja no mais idiota dos debiloides, é ou não é?

Depois começa a “viagem” que só nós não vemos que todo mundo percebe: o mundo se apresenta todo envolto em cores e perfumes, os olhos revelam o tempo inteiro aquele brilho panaca por conta das visões psicodélicas internas, e estampado na boca fica aquele sorriso indisfarçável que não some nem mesmo se ouvirmos do patrão que ele só não foi pai da gente por acaso!

Casal formado por uma mulher e um homem, com os olhos fechados e as testas recostadas uma à outra.
Cookie Studio / Shutterstock

Ah… Paixão! Que troço mais louco, mais idiota, mais fantástico! Tentar avaliar à luz de qualquer lógica é pura perda de tempo! A gente faz todas as besteiras de todos os bêbados, de todos os drogados, de todos os viciados cujo sangue lateja por mais uma dose, ainda que nenhuma seja suficiente para saciar a fome e a sede que sobrevêm. O objeto desejado se torna o único e inigualável prazer, e não há nada que possa superá-lo, por mais que cada indivíduo do planeta já tenha vivido a mesmíssima coisa e experimentado exatamente as mesmas sensações!

Até que um dia nos falta ou nos é tirado! Mon Dieu! Existirá dor mais lancinante que essa ausência? Haverá vazio mais doloroso que o indescritível espaço vago deixado? Haverá espaço vazio que tenha peso e volume maior que todos os corpos que ocupem o universo inteiro?

É nessa hora — no terrível momento da abstinência — que as pessoas enlouquecem! É quando elas se dão conta do quanto o seu desejo estava maior do que elas mesmas, e de como se sentem mortas sem a sua principal fonte de energia! É quando descobrem que o seu “anima” não mais lhes pertencia desde há muito… Que o objeto de seu desejo ocupava um espaço enorme, tão imenso dentro delas, que não restou nem um pedacinho para suas próprias vontades, para sua própria individualidade, pois que se tornaram o outro que habitava dentro delas, em vez delas mesmas. É quando descobrem que essa ausência é sentida no peito como vísceras arrancadas. Por dentro estão ocas, suas almas jazem dentro dos próprios corpos vazios e desprovidos do elemento vital.

É hora da escolha entre deixar-se envolver pelo manto da morte ou lutar para escapar do submundo pútrido dos corpos cujas almas se evadiram com os últimos acenos de esperança…

Mas ainda é preciso que se passe por um longo — aparentemente infinito — momento de desintoxicação, quando todo o interior precisa ser lavado, todos os indícios do veneno cuidadosamente submetidos a uma profunda e meticulosa assepsia de forma que não reste qualquer vestígio dos destrutivos resíduos deixados pelo caminho. E então, tal qual a Phoenix da lenda, ressurgir das cinzas e resgatar a última brasa quase convertida em carvão, entregando ao vento a missão de reacender a chama e disseminar-lhe o calor, alimentado desta vez pelo chamado da vida!

E como é difícil tal momento! Cada célula reage como se fosse queimada pelo sangue, que reinicia lentamente seu caminho após longo período de dormência — onde sua passagem pelas artérias da alma se faz como uma brasa que produz ardências atrozes em cada milímetro da trajetória —, obrigando o corpo inteiro a reunir toda a força de que seja capaz para suportar tamanho sofrimento!

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Assim, minuto a minuto, hora a hora, a cada dia a carne vai se desentorpecendo, a elasticidade reduzindo a rigidez… O sangue volta a fluir pelos caminhos antes ocupados pelo autoesquecimento, pelos espaços até então preenchidos pelo veneno alienígena, e pouco a pouco vai devolvendo a energia vital às moléculas daquele quase não-ser que se revitaliza.

É hora do ressurgimento. É hora de agradecer pelo delirium tremis que sacudiu a carne magoada, injetou-lhe a dor salvadora nos espaços semi-mortos da presença ilusória e lembrou-lhe que estava na hora de assumir o retorno à vida!

Sobre o autor

Luiz Roberto Bodstein

Formado pela Universidade Federal Fluminense e pós-graduado em docência do ensino superior pela Universidade Cândido Mendes. Ocupou vários cargos executivos em empresas como Trimens Consultores, Boehringer do Brasil e Estaleiro Verolme. Consultor pelo Sebrae Nacional para planejamento estratégico e docente da Fundação Getúlio Vargas e do Instituto Brasileiro da Qualidade Nuclear (IBQN) para Sistemas de Gestão. Especializou-se em qualidade na educação (Penn State University, EUA) e desenvolvimento gerencial (London Human Resources Institute, Inglaterra). Atualmente é diretor da Ad Modum Soluções Corporativas, tendo publicado mais de 20 livros e desenvolvido inúmeros cursos organizacionais em suas diferentes áreas de atuação. Conferencista convidado por várias instituições de ensino superior, teve vários de seus artigos publicados em revistas especializadas e jornais de grande circulação, como “O Globo”, “Diário do Comércio” e “Jornal do Brasil”.

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