Aos amigos leitores do Portal EuSemFronteiras, trago este importante assunto para ser lido com atenção!!!
Nos Esboços de Sistema III, de 1805-06, os primeiros cursos que Hegel dá, em Jena, visando apresentar um “sistema de mundo”, um detalhe que soa estranho ao leitor familiarizado com a maturidade hegeliana é o modo como ele tematiza o “belo”. Essa noção aparecerá, lá, ligada à “deficiência” da forma artística em expor o conteúdo espiritual, atrelada à ilusão (Täuschung). Ele dirá:
A arte pode, portanto, dar às suas formas apenas um espírito limitado — a beleza é a forma, ela é a ilusão da vivacidade absoluta que se basta a si mesma, e que é em si fechada e completa. […] A beleza é muito mais o cobertor que encobre a verdade do que a exposição (Darstellung) dela.
Hegel está, com isso, bastante distante de como, anos depois, em sua maturidade, as preleções de filosofia da arte ou as duas últimas edições da Enciclopédia das Ciências Filosóficas já darão uma posição central para o belo. Por exemplo, no §556 da Enciclopédia de 1830, o primeiro parágrafo sobre a arte no capítulo do espírito absoluto, Hegel dirá:
A figura desse saber [“esse saber” é aquele por meio do qual Hegel havia começado o capítulo do espírito absoluto – o saber da ideia absoluta; N.S.], enquanto imediata, […] é a intuição e representação concretas do espírito em si absoluto enquanto do ideal — da figura concreta nascida do espírito subjetivo, na qual a imediatidade natural, que é apenas um signo da ideia, é transfigurada em expressão [Ausdruck] desta por meio do espírito imaginativo [einbildenden Geist], de modo que a figura, nela, não mostre, aliás, nada de outro; — é a figura da beleza.
A beleza, aqui, já não está mais ligada à ilusão da forma artística, mas, ao contrário, ela será “signo da ideia”, prenúncio da mais profunda e elevada vida do espírito.
Na letra hegeliana não se encontrará um porquê para essa “correção”. Entre cartas, cursos transcritos e publicações, nesses anos que separam os Esboços de Sistema III e a Enciclopédia, há sobre esse assunto simplesmente uma lacuna. Contudo, um ligeiro deslocamento da perspectiva de análise desse problema poderá, talvez, nos iluminar certas regiões adjacentes a essa discussão que podem ser academicamente produtivas. Penso, nesse sentido, no fato de que nos Esboços de Sistema de 1805-06 a passagem para o âmbito da arte se dê de maneira algo estranha; ela surge ao fim do capítulo relativo à “Constituição”. Essa “Constituição”, segundo Hegel, seria “sua [do espírito absolutamente livre] geração do conteúdo fora de si, ele constitui a si mesmo, mas na forma do objeto”, e a arte seria o momento imediato do conhecimento de si do espírito absolutamente livre que tem a si mesmo como conteúdo. Isso quer dizer, por conseguinte, que essa primeira noção de arte não advém da emergência de nenhum conceito de beleza, e sim, do encadeamento sistemático pensado na chave do desenvolvimento do saber de si do espírito. Porém, isso faz, também, com que a arte pareça ser quase como que uma figura ligada ao direito. Anos depois, em sua maturidade, no entanto, o sistema hegeliano terá separado muito claramente as esferas do direito (espírito objetivo) e da arte (no espírito absoluto), ao mesmo tempo que terá aprofundado sua noção de belo.
O que podemos tirar dessa conexão estreita entre arte e direito que surge na juventude hegeliana e se dissolve em sua maturidade? Acredito que essa situação “estranha” pode nos dar a oportunidade de passar por alguns tópicos relativos à relação entre beleza e mundo prático, de modo a organizar a questão. O primeiro deles será relativo à relação entre Estado e beleza, que surgem em congruência na Grécia, mas se desenvolvem em oposição na modernidade. Em segundo lugar, será reposta tal oposição moderna entre Estado e beleza por meio de uma discussão do heroísmo feita por Hegel nos Cursos de Estética. Por fim, em terceiro lugar, a questão do heroísmo irá se estender para uma recapitulação da questão da ação, sobretudo no que se refere às diferenças que emergem entre seu tratamento nas Linhas fundamentais da Filosofia do Direito e na Estética. Isso será feito para que, na conclusão, possamos voltar a essa tal “correção” hegeliana do conceito de belo e avaliar em que medida ela poderá guardar relação com uma apuração hegeliana madura da diferenciação entre direito e arte, mundo prático e mundo artístico, espírito objetivo e espírito absoluto.
Hegel, em sua maturidade, tinha certa clareza que não aparecia nos Esboços de Sistema de 1805-06 — a de que o Estado não pertencia à esfera da beleza. Há uma afirmação paradigmática nesse sentido, aquela famosa passagem dos Linhas Fundamentais da Filosofia do Direito, ao fim do parágrafo §258, no qual ele afirma: “O Estado não é obra de arte alguma.” É curioso, porém, notar que, mais ou menos nessa mesma época, em seus cursos de filosofia de história, Hegel apresentava a tese de que a vida do povo grego se fundava no princípio da beleza, incluindo-se, nisso, seu Estado democrático, que, inclusive, recebera de Hegel o título de uma “obra de arte política”. Como concatenar esses dois momentos do pensamento hegeliano?
Essencialmente, porque Hegel não está pensando no Estado enquanto conceito abstrato, e sim, enquanto produto de momentos históricos bastante distintos um do outro. Na Filosofia da História, encontra-se a seguinte descrição da democracia grega:
O momento principal da democracia é a disposição ética. “A virtude é o fundamento da democracia”, diz Montesquieu; esse ditado é tão importante quanto verdadeiro no que se refere à representação que se faz, usualmente, da democracia. O essencial para o indivíduo, nela, é o substancial do direito, das questões de Estado, do interesse geral; mas isso é assim enquanto costume, no modo da vontade objetiva, e isso de maneira que a moralidade (em sentido próprio), a interioridade da convicção e da intenção ainda não estejam dados. A lei está lá, de acordo com seu conteúdo, enquanto lei da liberdade e da razão, e, sendo lei, tem validade por conta de sua imediatidade. Assim como na beleza ainda está dado o elemento natural, em si mesmo sensível, da mesma maneira, nessa eticidade, as leis estão no modo da necessidade natural. Os gregos se situam no termo-médio da beleza e ainda não alcançaram o ponto mais elevado da verdade. À medida que os costumes e os hábitos são a forma segundo a qual o direito é desejado e feito, então ela é o que há de mais firme e não tem ainda em si os inimigos da imediatidade, que são a reflexão e a subjetividade da vontade. O interesse da comunidade pode, por conseguinte, se manter posto na vontade e na deliberação do cidadão — e esse deve ser o fundamento da constituição grega —, pois ainda não está dado nenhum princípio que contraponha a eticidade da vontade e que possa impedi-la em sua efetivação. A constituição democrática é, aqui, a única possível: os cidadãos ainda não são conscientes do particular, isto é, do mal; a vontade objetiva está neles conservada.
A democracia grega é pensada como fundamentalmente ligada a certo tipo de individualidade, seja no plano de sua formação institucional, seja no plano da representação política. Trata-se de uma forma de Estado em que “a vontade individual é livre em sua completa vivacidade e, de acordo com sua particularidade, ratifica o substancial”. Seu elemento central está dado em uma “disposição ética” imediatamente exercida e válida e que ainda não passou pelo processo de reflexão, de tomada de consciência de si, que caracteriza “a moralidade (…), a interioridade da convicção e da intenção”. É por esse motivo que Hegel verá o Estado grego como ligado “ao modo da necessidade natural”, isto é, ligado a processos de efetivação levados à cabo por individualidades ainda não reflexivas. Esse agir imediato, pré-reflexivo, corporal, intuitivo, sensível, em suma, ligado ao elemento “natural”, se produz, justamente, da virtude.
Na História da Filosofia, há um exemplo que ilumina o que Hegel está visando com essa definição. Lá, ele lembra que a vida civil ateniense era ulteriormente regulada por leis e costumes que haviam sido postas não, em primeira instância, por instituições legais, assembleias legislativas etc., mas, em essência, por alguém como Sólon. Por um lado, segundo Hegel, Sólon teria apenas “trazido à consciência (em uma outra forma) […] o espírito jônico que ele tinha diante de si e que estava em si dado”; por outro lado, isso não quer dizer que Sólon teria codificado práticas e costumes já correntes entre o povo ateniense, mas, ao contrário, teria justamente implantado uma série de leis que, com certos descaminhos, acabaram por ser difundidas e naturalizadas como costumes atenienses. A constituição ateniense, nesse sentido, seria produto de um legislador, de suas ideias para o povo, de seu bom senso para os costumes, em suma: seria produto de uma individualidade eticamente virtuosa.
Um segundo aspecto que nos interessa na passagem acima está na comparação do Estado grego com a beleza. Na Filosofia da História, a beleza, delimitada enquanto princípio histórico, tem, fundamentalmente, a determinação de ser uma relação-mundo segundo a forma natural, imediata e sensível. O Estado grego partilharia desse princípio, determinando-se ao “modo da necessidade natural”, a partir da imediatidade da deliberação individual. Essa discussão sobre a relação do Estado com a beleza estará no cerne do motivo pelo qual Hegel chamará, lá, a democracia grega de “obra de arte política”. Segundo ele, a vida grega teria sido organizada em três “vias particulares”, que ele chamará, por estarem sempre fundadas a partir de “belas individualidades”, de “obras de arte”: subjetiva (a relação com os corpos — os esportes, a dança e o canto), objetiva (a religião grega e sua mitologia) e política (o Estado democrático). Estas não são, propriamente, obras de arte no sentido específico da Estética, mas, em sentido mais amplo, obras de arte enquanto produtos espirituais de uma vida fundamentada no elemento da “beleza”. O Estado grego, fundado a partir da efetivação de belas individualidades políticas, assim se vincula ao modo como Hegel pensa a beleza no âmbito do espírito objetivo.
Já o Estado moderno se configura de tal maneira que se encontra afastado dessa sua relação primeira com a beleza e, por conseguinte, não se define mais como “obra de arte política”. Pois a possibilidade de um Estado fundamentado na individualidade, situação encarnada na figura clássica do legislador, seria inconcebível para uma sociedade moderna:
Hoje em dia não pode mais haver legisladores; as instituições legais, as relações jurídicas estão, nos tempos modernos, sempre já dadas. Há muito pouco a se fazer; ao legislador, à assembleia legislativa, cabe apenas uma determinação ulterior de detalhes, deliberações complementares pouco significativas.
Trata-se, portanto, de registrar esse movimento, que vai do Estado antigo ao moderno como que substituindo, assim, o elemento da beleza (presente na “vontade objetiva” citada por Hegel) pelo elemento da reflexão (presente na “vontade subjetiva” moderna), e tornando-o (o Estado) essencialmente uma figura da razão. Como se o processo de modernidade política fosse, entre outras coisas, também um processo de “desbelezificação”, isto é, de imersão do Estado em uma modalidade constitucional que desvincula seu fundamento do exercício imediato de individualidades “naturais” — isto é, belas.
O ponto acima poderia ser desenvolvido a partir de um segundo campo temático, haja vista que outro elemento que marca a distinção entre as esferas da arte e do direito está nas descrições relativas ao heroísmo e mundo prosaico (mundo do direito), que aparecem em alguns momentos da Estética: “Primeira Parte”, subseção referente ao “Estado de mundo”; “Segunda Parte”, início do capítulo sobre a “Forma de arte romântica”).
Na “Primeira Parte” da Estética, Hegel assim escreve:
Os heróis[…] são indivíduos que, a partir da autonomia de seu caráter e de seu arbítrio, assumem a responsabilidade pelo todo de uma ação e a realizam; e é nesta [ação], portanto, quando é levada a cabo, que o justo e o ético aparecem como uma disposição individual. Essa unidade imediata, pois, entre o substancial e a individualidade da inclinação, dos impulsos e da vontade, se encontra na virtude grega, e isso, de tal modo que a individualidade é, ela mesma, a lei, sem estar submetida a uma lei, a um juízo e a um tribunal por si subsistentes.
É curioso notar como, nessa descrição, retorna o elemento, citado acima, utilizado por Hegel para fundamentar conceitualmente a democracia grega, a saber, a virtude — aqui compreendida enquanto relação imediata entre a individualidade e a substancialidade ética. Não surpreenderá, por conseguinte, que a passagem hegeliana imediatamente em seguida (“Assim, por exemplo, os heróis gregos surgem em uma época anterior à legalidade ou se tornam eles mesmos fundadores de Estados, de modo que direito e ordem, lei e costumes, partam deles e se efetivem enquanto sua obra individual, que permanece a eles associada.”) ecoe, justamente, a passagem da História da Filosofia supracitada, relativa a Sólon e ao modo como o Estado grego se fundou a partir de sua individualidade. É verdade que, na Estética, Hegel tem em vista não personagens históricas, como Sólon, e sim, personagens “ideais”, heróis da arte grega, como Hércules ou Aquiles. Porém, de qualquer modo, é possível perceber que, ao quadro que Hegel está pintando da situação histórica grega seria possível adicionar o elemento do “heroísmo” como uma espécie de correlato da bela individualidade. Na Grécia, a esfera do direito, do mundo prático, ainda se encontra submetida a essas individualidades, isto é, ainda é “porosa” a essa liberdade das inclinações do herói.
Esse heroísmo tout court seria impossível na época moderna, por excelência a época do primado da sociedade civil e do Estado, do “verdadeiro Estado”, em que não é mais possível a identidade entre a virtude individual e a lei que vale para tal indivíduo; a lei, no âmbito da sociedade constitucional, é estabelecida e válida universalmente (racionalmente) e realizada sob a figura do Estado moderno. Hegel dirá, sobre a relação da individualidade na modernidade:
[…] os indivíduos singulares mantêm, no Estado, a posição de deverem aderir e se subordinar a esta ordem e à sua firmeza existente, já que não são mais, com seu caráter e ânimo, a única existência das potências éticas, e sim, pelo contrário, segundo o que acontece no verdadeiro Estado, devem deixar regular sua inteira particularidade do modo de pensar, a opinião subjetiva e o sentimento, por esta normatividade, e conduzi-los em uma sintonia com ela.É justamente nesse sentido que Hegel irá lembrar de frustradas tentativas de heroísmos modernos como, por exemplo, aqueles que aparecem nas obras de juventude de Goethe e Schiller. No capítulo referente à “Forma de arte romântica”, ele irá mesmo se perguntar o que significaria ser um “herói moderno” — e sua resposta, interessantemente, é que este seria alguém que age a partir do reconhecimento de uma estrutura objetiva dada, atualizando na singularidade, na realidade, “no temporal”, como diz Hegel, “aquilo que é mais elevado, em-e para-si válido”, ou seja, uma ação realizada em vista da moralidade.
A discussão sobre o heroísmo, a meu ver, acaba por remarcar uma ruptura, para não dizer uma contradição, entre o mundo da arte e o mundo do direito; o pleno desenvolvimento da figura artística, representado pela figura do herói, só pode se dar em uma época em que sociedade civil e Estado não estão plenamente desenvolvidos e em que fica permitido ao indivíduo fornecer a si mesmo suas leis, instituições e Estados — em suma, em que lhe fica possibilitado “ser belo”. De um ponto de vista sistemático, a impossibilidade de um heroísmo tout court, experimentado na arte romântica, é reveladora do curioso movimento de uma espécie de “re-emergência”, no sistema hegeliano, da esfera do direito — pois se, no sistema do espírito, a arte é um primeiro momento da superação do espírito objetivo, por outro lado, o mundo prático ressurgirá como que implacavelmente, travando um pleno desenvolvimento da arte na modernidade e impedindo a plena efetivação do belo — isto é, impedindo a plena efetivação do ideal, que encontra solo para acontecer livremente somente no mundo antigo:
Não se trata, aqui, de esclarecer qual dos dois estados é, pois, o melhor, se o da vida desenvolvida do Estado ou o da idade heroica. Aqui temos de nos ocupar apenas com o ideal da arte, e para a arte, a separação entre a universalidade e a individualidade ainda não deve surgir no modo indicado, por mais que esta diferença também seja necessária para a efetividade restante da existência espiritual. Pois a arte e seu ideal são justamente o universal, à medida que é configurado para a intuição, por isso, ainda está em unidade imediata com a particularidade e sua vitalidade.
Na base da questão da individualidade e do heroísmo está, ainda, uma relação que importaria retomar, a saber, aquela entre a ação prática da Filosofia do Direito (§§105-125) e a ação ideal da Estética (“Primeira Parte”, subcapítulo relativo à “Determinidade do belo”). A ação prática, na Filosofia do Direito, é abordada no contexto do capítulo sobre a “Moralidade”.
Lá, a ação será pensada enquanto “exteriorização da vontade como subjetiva ou moral”. Klaus Vieweg, em uma pormenorizada revisão do conceito de ação, lembrará que “o conceito de ação é desenvolvido em três estágios ligados à respectiva determinação do sujeito que age”. Essas três determinações da ação são: “a) ser sabida por mim como sendo minha em sua exterioridade, b) ter a relação essencial com o conceito como um dever ser e c) estar referida à vontade de outros”. A ação não consiste apenas em um fazer comum, mas ela é um fazer adicionado da “intenção” e da consciência de sua relação para com uma vontade geral. Nesse sentido, porém, é necessário notar que essa ação é pensada, na Filosofia do Direito, sobretudo no contexto do sujeito que age enquanto portador de consciência moral.
Na Estética, por sua vez, por mais que o conceito de ação resguarde um arcabouço comum com sua definição da Filosofia do Direito, acredito que ela acabará por surgir descrita e fundamentada de modo distinto. Na “Primeira Parte”, em que Hegel trata do ideal, ele via a necessidade não apenas de estabelecer seu conceito, mas também de determinar sua maneira própria de efetivação. E o ideal se efetiva, sobretudo, enquanto ação — mas não uma ação do artista, como se Hegel estivesse a pensar uma teoria da produção artística, e sim a ação enquanto categoria que descreve o desdobramento do conteúdo artístico de uma obra. Lá, a ação receberá um tratamento mais amplo, que envolverá uma consideração não apenas da dimensão subjetiva, que é a ênfase encontrada na Filosofia do Direito, mas também tanto de uma localização da ação em um contexto mais amplo da vida espiritual, que se dará por meio das categorias do “estado de mundo” e da “situação”, como da apresentação de disposições motivacionais que fundamentam a ação propriamente dita (“pathos”, “caráter”). Nesse sentido, como bem observa Marco Aurélio Werle em uma produtiva consideração sobre o conceito de ação na Estética:
Chamo a atenção para o fato de que, em Hegel, embora a ação, primeiramente, seja pensada num sentido ético e moral, ela, na verdade, acontece em sentido pleno como ideal no plano da arte e da poesia. […] Dito de outra forma, a ação mais ampla e consequente é a ação ideal. Essa idealidade da ação se revela no fato de que a categoria da ação somente aparece em sentido pleno, nas Linhas fundamentais da filosofia do direito, quando ingressamos no terreno da categoria do espírito, a qual é entendida por Hegel como instância ideal da eticidade. Ora, o movimento espiritual precisará da ação que, como movimento negativo, irá “perturbar a calma organização do mundo ético e seu tranquilo movimento”. Isso tem muitas consequências, inclusive para o terreno ético, pois nos apresenta toda a complexidade e amplitude que envolve o ato de agir, que não é uma atividade simplesmente real, passível de ser resolvida no terreno da moralidade somente, sendo que envolve um conjunto de fatores.
A breve comparação desta seção serve para nos levar a duas observações finais. Em primeiro lugar, que talvez fosse possível pensar como a ação prática está muito mais vinculada ao sujeito prático descrito pela Filosofia do Direito, inserido em uma sociedade civil, envolvido pelo Estado e observante da vontade geral, enquanto a ação ideal carrega sempre consigo esse germe do heroico, de uma liberdade pré-legal da individualidade. No fundo, há diferença da ação prática, a ação ideal está vinculada à beleza e só pode se efetivar plenamente no âmbito da arte. Isso pode se dar, e isso eu gostaria de apontar em segundo lugar, em vista de uma diferença de matriz teórica. Pois, desse modo, passar-se-ia de uma discussão advinda do problema da ação moral kantiana, como é o caso na Filosofia do Direito, para uma retomada, na Estética, da questão da πρᾶξῐς da Poética de Aristóteles. Esse é um fator importante, porque dele se poderia pensar Hegel, então, reconhecendo que ação prática e ação estética são noções que, por emergirem de diferentes tradições (e faz sentido que uma filosofia da arte seja posta a partir de uma tradição distinta daquela de uma filosofia política), se comunicam somente com certas mediações, e não diretamente. Isso teria que implicar a existência de algum elemento que, presente no âmbito do belo, afaste-a de suas determinações puramente reais e a “eleve” (a bem entender, em sentido hegeliano) a esse seu momento ideal. Esse elemento, segundo minha compreensão, é a “fantasia”.
No artigo supracitado do professor Vieweg, encontram-se, na conclusão, as seguintes observações finais:
Seria o caso de investigar mais de perto de que maneira é pensada, dentro da arquitetônica do sistema de Hegel, a transição do espírito objetivo para o espírito absoluto, a transferência da filosofia do direito para a filosofia da arte, em especial na filosofia da história enquanto contexto da ação em sentido amplo, do acontecimento histórico ao acontecimento fantasioso, da história à narração poética de uma história.
Vieweg, de certo modo, tangencia o problema com que iniciei este texto. Lá, comecei por questionar um conceito estranho de beleza surgido na juventude hegeliana pré-Fenomenologia, estranheza que se dá sobretudo por conta de uma relação “mal resolvida” (claro, aos olhos de um Hegel posterior) entre espírito objetivo e espírito absoluto. Na maturidade hegeliana, essa relação estará reformulada, assim como uma série de outros aspectos, como o conceito de belo, terão sido profundamente desenvolvidos. No decorrer do artigo, apresentei elementos que indicam uma relação de separação, e que, em alguns momentos, assume até mesmo a forma de uma oposição, entre as esferas do direito e da beleza na maturidade hegeliana. Agora, permito-me indicar brevemente algumas considerações relevantes que poderíamos tomar como conclusão para um futuro avanço da questão.
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Por um lado, talvez seja o caso de pensar que a beleza funciona não apenas como ponto pivotal para a estruturação do sistema estético, mas também, que a tentativa de compreender Hegel como um teórico da modernidade talvez deva se deparar com o fato de que a plena instituição das estruturas públicas modernas, que funcionariam em direção à liberdade, acontece, em certo sentido, em detrimento da beleza. Por outro lado, no sistema hegeliano, a aparição do espírito absoluto se dá quando este adentra — depois de certa maturação ocorrida na história mundial (inclusive da beleza no seio do povo grego) — o âmbito da arte. Na arte sobrevém o acontecimento fantasioso, a construção ideal. Curiosamente, porém, um dos aspectos do “fim da arte”, um dos entraves enfrentados pela arte romântica, é justamente a emergência como que implacável de uma “prosa do mundo” que consiste, segundo um certo aspecto, em uma generalização da vida ordenada pelo direito e pelo Estado, que entra em contradição com certa “poesia da vida”.
O que essa investigação nos indica, portanto, é que um ponto central para o aprofundamento dessa passagem da arquitetônica do sistema de Hegel seria o de tentar compreender mais profundamente como se dá e qual o sentido do advento do belo nesse momento de transição para o espírito absoluto, o que significa perceber a determinação não apenas estética, mas também histórica e política, da noção de beleza na maturidade hegeliana.
Nilo Deyson Monteiro Pessanha