Quando uma pessoa nasce, nasce também um nome. Seu “rosto” social surge, na verdade, antes mesmo de ela se apresentar formalmente à sociedade. Mas ela já carrega em si impositivos sociais, como a diferenciação de gênero.
O nome nunca foi uma escolha individual, que nasce e cresce com o rótulo cunhado por terceiros e segue com a obrigação de hastear a bandeira do gênero atribuído em seu nascimento no ambiente íntimo e na arena da cidadania.
Contudo, muito além de um registro documental, o nome de uma pessoa representa sua expressão no mundo, seu cartão de visitas e sua construção identitária. Pela importância para a apropriação da identidade de gênero de cada um, nada mais justo do que legar ao indivíduo a escolha do próprio nome. Por isso, surgiu o nome social.
Mas, o que é nome social? É o direito de todas as pessoas que não se identificam com o gênero de nascimento definirem o nome que preferem ser chamadas, conciliando assim o respeito à vontade individual à identificação cidadã, que assegura a plenitude no exercício dos direitos e deveres do indivíduo em sociedade.
Nome social na luta LGBTQIAPN+
O espaço alcançado pela luta LGBTQIAPN+ é uma realidade. Mais do que isso, é a sinalização de que a humanidade busca avançar um degrau importante no nível de consciência coletiva e na quebra gradual de suas correntes sectárias.
Por meio da conquista do nome social, toda pessoa que não reconhece o sexo biológico designado ao nascer e busca a redesignação sexual (transexuais) ou não (travestis) passou a ter a liberdade de viver e se expressar com o nome que lhe dá real sentido de existência.
Assegurar que toda pessoa possa se apresentar com a designação que a representa plenamente em sociedade é também um passo na importante jornada de reeducação social, que é, sem dúvida, o grande catalisador das mudanças necessárias em direção à igualdade.
Infelizmente, ainda estamos distantes deste objetivo, pois enquanto um ou dois passos são dados, muitos outros em sentido contrário avançam. É só ver que, há 14 anos, o Brasil ocupa o topo da lista dos países com mais mortes de pessoas transexuais e travestis no mundo.
Enquanto a discriminação e a violência se perpetuam, mais e mais pessoas vivem verdadeiras prisões em vida, experimentando grande sofrimento psíquico em meio ao medo e a inadequação. A seguir, entenda a importância da identidade de gênero para a saúde mental.
A balança entre identidade de gênero e saúde mental
Um dos grandes alicerces da saúde psíquica de um indivíduo é a identificação. Por meio dela, em suas diferentes manifestações, ele se aterra, se enraíza e se sente parte da sociedade. Algumas identificações são mais profundas que outras e a identidade de gênero é uma delas.
Desde que o mundo é mundo, a diferenciação social entre feminino e masculino ocupou lugar determinante e essa compreensão simplória de como o indivíduo opera, deseja, sente e se reconhece ultrapassou gerações e segue encrustada na cultura, nos costumes, nos preceitos e, claro, alcançou os mais densos andares da psique coletiva e individual.
Só que uma hora esta arquitetura social iria ruir. E ruiu, demonstrando que o ser humano é bem mais complexo, e diverso, do que a dualidade fez parecer. Quando isso aconteceu, um claro descompasso nasceu, com indivíduos dispostos a atingir a liberdade de suas psiques, ao mesmo tempo em que eram socialmente mutilados pela impositiva heteronormatividade.
Naturalmente, pessoas impedidas de se expressarem social, afetiva e sexualmente sofrem prejuízos psíquicos. “A pessoa já nasce com sua identidade de gênero, que não é definida pela sua genitália. O sofrimento de uma pessoa por não se identificar com seu gênero atribuído no nascimento, inclusive aquele proveniente do preconceito e da falta de aceitação social, muitas vezes gera transtornos mentais que precisam ser tratados, como depressão, ansiedade e outros” – psiquiatra Paula Dione.
É muito importante destacar que o desrespeito e/ou desqualificação do nome social para a pessoa trans representa uma profunda agressão psíquica, fazendo-a vivenciar o que ela, com nome social, buscou corrigir no que se refere à sua própria identidade.
A plena compreensão da identidade de gênero e do nome social deve ser algo conhecido e reconhecido não somente por quem vive esse processo de autoaceitação, mas deve ser algo abordado e assimilado pela sociedade em geral, para benefício de ambos.
Como surgiu o nome social?
O nome social ganhou seu primeiro capítulo, no Brasil, em 1996, quando Indianarae Siqueira apresentou, durante a IV Conferência Municipal de Saúde de Santos, em São Paulo, a proposta para que trans e travestis pudessem utilizar o nome social ou que suas identidades de gênero fossem respeitadas em processos de internações.
Apesar de o nome social seguir como pauta largamente discutida pela população trans, só em 2007 houve um avanço, com a inclusão na Carta dos Direitos dos Usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) de um campo de preenchimento do nome social nos documentos de identificação do sistema. Tópico incluído na Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009, que regulamentou os direitos e deveres dos usuários do SUS.
Com passar dos anos, outros passos foram dados, até que, em 2016, foi instituído o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, que legislou sobre o uso do nome social e sobre o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Com o decreto, o nome social passou a valer para documentos como RG, CPF, título de eleitor (Portaria do Tribunal Superior Eleitoral, de 2018), cartão do SUS, Carteira Nacional de Habilitação e outros. Este direito abrange todas as pessoas trans, sendo livre a sua solicitação por maiores de 18 anos e menores de 18 anos não emancipados, com autorização do responsável legal.
“O decreto é inovador, pois, pela primeira vez, traz o direito à identidade de gênero ligado ao nome social. Trata-se não apenas de garantir o tratamento de acordo com o nome pelo qual a pessoa se identifica, mas o direito de expressar livremente sua identidade e expressão de gênero”, ressalta trecho do documento Diagnóstico sobre Acesso à Retificação de Nome e Gênero de Travestis e demais Pessoas Trans no Brasil, de 2022, elaborado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
Adicionalmente a esse fato, em 2018, os serviços cartorários passaram a realizar a retificação de prenome e/ou gênero, uma conquista da comunidade trans, e que difere do nome social. Apesar de o nome social abranger diferentes instituições e documentos oficiais, ele não muda a certidão de nascimento, o que pode ser feito através da retificação, um procedimento realizado nos cartórios civis para maiores de 18 anos e que não muda sobrenomes, mas prenomes (primeiro nome) e agnomes (ex.: Filho, Júnior, Neto).
O nome social e a retificação foram vitórias para todos, abrindo portas para a consolidação de novos olhares e tratamentos a respeito de algo tão basilar: o direito de cada um ser quem quiser ser. Tal avanço foi celebrado pela comunidade de travestis e trans, a exemplo de Linn da Quebrada, que comemorou sua retificação nas redes sociais:
“Essa lua minguante está levando tudo embora, está levando o Júnior [antigo nome] e permitindo com que eu, Lina Pereira, apareça. Com que eu exista agora com um pouco mais de dignidade, de humanidade. É uma vitória tão grande para mim, para nós travestis, pessoas trans, que somos negadas em vida. Saber que vou viver e que, quando morrer, vou ser enterrada com o meu nome” – Linn da Quebrada, em suas redes sociais.
Tudo sobre identidade de gênero
Seu nome social no RG
O processo de inclusão do nome social varia de estado para estado. Em São Paulo, por exemplo, é preciso preencher o formulário de inclusão ou exclusão de nome social, disponível no portal do Poupatempo. Em outras regiões como o Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e Pará, foram criadas as Carteiras de Nome Social, emitidas em postos de identificação.
No Pará, é necessário apresentar a certidão de nascimento original, duas fotos 3×4 e comprovante de residência na Delegacia-Geral da Polícia Federal, sendo emitido no mesmo dia. Informe-se sobre como são os procedimentos em sua cidade.
Vale destacar que o documento é emitido com os dois nomes (social e civil), algo que não será uma regra por muito tempo, já que uma das mudanças anunciadas pelo governo federal é que a Carteira Nacional de Identidade (CIN), que já começou a ser emitida, passará a não ter mais a distinção entre esses nomes, além de ser impressa sem o campo referente a sexo.
Respeito é lei, e nome social também!
A consolidação do nome social como um dispositivo legal não serviu apenas para tornar a escolha da própria identidade um direito, mas também para a reeducação social, com margem para punição em caso de descumprimento.
O desrespeito ao nome que a pessoa definiu como sua identidade (que, por sinal, não é crime de falsidade ideológica, como alguns alegam) configura como transfobia e pode ser julgado como injúria racial, segundo determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023.
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Crime inafiançável e sem prescrição, a injúria racial se configura como ofensa à dignidade de uma pessoa, desrespeitando sua raça, cor, etnia, lugar de origem e, mais recentemente, identidade de gênero ou orientação sexual. A pena é de dois a cinco anos de prisão. Conheça algumas instâncias em que o nome social já vigora como um direito:
- Escolas, com autorização do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares pelo Ministério da Educação (MEC), desde 2018;
- Universidades Federais, sendo a Universidade Federal do Amapá a primeira a instituir o uso do nome social, em 2009, e estabelecido nacionalmente pelo Decreto de 2016;
- Sistema Único de Saúde (SUS), com o direito ao uso do nome social na carteirinha do SUS, cadastros, prontuários, fichas, laudos etc.;
- Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), podendo ser feito atualmente na Página do Participante, mediante cadastro do nome social no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), na Receita Federal;
- Serviço Público, instituído através da Portaria nº 233, de 18 de maio de 2010;
- Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em sua seccional paulista garantiu o direito de pessoas trans e travestis se cadastrarem na Ordem com seu nome social;
- Instituições financeiras, podendo ser exigido para uso em cartões de acesso à conta, canais de relacionamento, identificação do destinatário para correspondências e outros;
- Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), estabelecido pelo Decreto de 2016.
O nome social é um direito consolidado e, graças à luta de trans e travestis no país, ao longo dos anos, se estendeu para as mais diferentes instâncias sociais, perpetuando um novo e importante capítulo no que se refere ao respeito à dignidade humana e aos direitos de personalidade, garantidos pela Constituição Federal de 1988.