Quando ouço a palavra luto, a primeira imagem que me vem à cabeça são as fotos de minhas antepassadas vestidas de negro. Me disseram que elas passaram anos e anos assim: O marido morria, depois um irmão, depois outro… E essas mulheres iam deixando cada vez mais escuros seus guarda-roupas e seus dias. Havia um silêncio pesado.
Felizmente creio que hoje começamos a falar mais sobre esse período tão delicado e me atrevo a dizer, de rara beleza: o luto.
Neste artigo não trago informações sobre esse processo, nem sugestões e muito menos conselhos… mas gostaria de compartilhar, a partir de minha própria experiência nestes nove meses de luto pela morte de minha mãe, algumas reflexões, sentimentos e dúvidas que têm me atravessado.
Talvez faça algum sentido para você.
Talvez acorde alguma pergunta.
Talvez falando da morte, chacoalhemos nossas vidas; para que elas se tornem mais vibrantes e coloridas, para serem plenas, autênticas; Verdadeiras potências.
Para que vivamos, como diz Simone de Beauvoir, sem tempos mortos.
O luto acordou todas as sombras e fantasmas que eu acreditava estarem escondidos em sótãos e porões, muito bem trancados: medos, dúvidas, incertezas agora brotam como erva daninha nos momentos mais inesperados.
Como se o chão de dentro já não existisse.
E ao invés disso um abismo escuro.
Mas tomo coragem e olho o abismo, me aproximo dele.
E vejo que é só um buraco grande.
E penso que é bom conhecer o inimigo, encará-lo de frente, olho no olho, dente por dente.
Olhar o buraco me faz sentir terra debaixo do pé.
Ainda que muito fundo lá em baixo, me dá chão.
E respiro mais calma a umidade encharcada desse solo.
E sei com a certeza do osso que esse solo, no tempo certo das coisas, se revelará fértil.
Vivo um período de altos e baixos.
Como se a tristeza tocasse, sem intervalo, uma música de fundo.
E eu flutuasse.
Outro dia, lavando a louça, sou tomada pelo choro, invadida por algo que nem sei o que é.
E sinto que o melhor a fazer é deixar-me chorar.
Sentar comigo mesma e deixar-me chorar.
Escutar a água que nasce em mim sem que eu mesma saiba de onde vem. Mas deixá-la vir.
E quando cessa o choro e eu vou em busca da fonte, me descubro grande, gigante, maior do que a Terra, mais vasta que o Ar, tão forte quanto o oceano.
É preciso aprender a pedir ajuda.
Os amigos são fundamentais. Os telefonemas, as mensagens, o carinho, a presença, as memórias, o riso e o afeto são de uma ajuda tremenda, peso de ouro, a amizade realmente é a coisa mais preciosa da vida. É verdade quando dizem que quem tem amigo tem tudo.
Ainda que alguns amigos desapareçam. Completamente.
E que suas ausências gritem.
Ao final todos têm suas vidas.
As rotinas imparáveis das cidades.
As velocidades que não acompanho, que não entendo, que me recuso a entender.
Ficamos sós e é preciso aprender a pedir ajuda.
Talvez nossa dor acorde a dor do outro.
Como se elas se comunicassem sem nossa consciência.
Como se ficassem unidas sem nossa permissão.
Dialogando em nosso silêncio.
Se estamos atentos, podemos testemunhar certo alívio.
Respirar mais calmos.
Pausar.
Talvez sorrir. Gargalhar.
Me dei conta de minha ausência na vida de amigos que atravessaram o luto. Talvez minha ausência também gritasse.
Na minha ignorância do que se passava, eu não estive presente.
Não telefonei, não visitei, não mandei mensagem, como eu gostaria que fizessem comigo, como eu gosto quando fazem comigo.
A eles eu peço perdão.
Minha amiga me diz que com a morte se abre uma janela.
E desde então essa imagem me acompanha.
Sinto a luz que entra discreta, mas constante.
Infinito cintilando no tapete gasto da sala.
Tive medo de não poder realizar o meu trabalho.
Faço um trabalho de toque profundo e meditativo, uma escuta do outro a partir do corpo, do silêncio, do que não se diz com palavras.
Tive receio de não ter espaço para a escuta.
Tive receio de estar demasiado ocupada com o que me passava dentro.
Mas me surpreendi.
Me descobri com espaço. Um espaço largo, onde não havia esforço, ainda que a dor estivesse lá.
E algo nascera dentro de mim, deste processo complexo do luto, algo que eu não esperava, nem compreendia na dimensão que sinto hoje: a compaixão.
Um estranho e maravilhoso entendimento, a ausência total de julgamento do outro, algo que misteriosamente me conecta a todos e a cada um, algo que me diz do Ser, Humano.
A compaixão surgia no centro das minhas mãos, brotada diretamente do coração, fazendo-me sentir as raízes fundas que brotam das plantas dos meus pés.
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Compaixão.
Uma das coisas mais belas que tenho sentido.
E a meditação adquire novos sentidos, a consciência da impermanência ganha brilho.
E sinto minha mãe em mim, em minhas mãos e coração, minha mãe em toda parte, em parte alguma, pura vibração, pura luz e meu coração compreende algo que eu simplesmente aceito sentir, me deixo sentir, agradeço sentir.