Existe nexo em se buscar um vencedor entre duas partes tão díspares em que nenhum dos lados está disposto a abrir mão de suas premissas? Essa é a pergunta que aflora de pronto quando tentamos encontrar a “área de trânsito comum” entre os defensores de uma e de outra, tentativa essa tão inútil quanto buscar o ponto de interseção entre duas retas que correm paralelas.
Eu daria início à nossa discussão tomando o pensamento de Ayn Rand por referência, esta que foi uma das maiores pensadoras do século XX ao se posicionar de forma nada convencional sobre uma das questões mais polêmicas já levantadas por qualquer filósofo, desde que o homem aprendeu o suficiente para questionar sua própria existência. De forma independente e corajosa, como poucos o fizeram, Rand desafiou crenças tidas como “intocáveis” pela espécie humana, ao formular a frase que a marcou como sua afirmativa mais contundente:
“Amar a Deus é odiar a si mesmo.”
E justamente pelo aparente extremismo da afirmação é que a escolhi para iniciar nossa discussão sobre o que leva uma pessoa a tomar posição num desses lados tão antagônicos que dão título ao nosso debate. Será mesmo que, num mergulho mais profundo no pensamento da pensadora, manteríamos essa pecha de “extremismo” emprestada à sua forma peculiar de apreciar a questão?
Com sua frase, Rand questiona a ideia de que o amor a uma divindade superior precisa estar vinculado à negação do próprio eu. Para ela, a verdadeira moralidade – e mesmo o amor na sua forma mais profunda – deveriam focar na afirmação do ser humano, e não em sua subordinação a uma força externa que sequer conhece, e cuja existência se baseia apenas em subjetividades.
Não há dúvida de que tal pensamento entra em conflito direto com muitas tradições religiosas, onde a maioria sugere uma forma integral e inquestionável de entrega a Deus através da renúncia ao próprio desejo e autonomia, e lança a questão sobre se devemos negar a nós mesmos em nome de uma devoção superior, ou se o amor a Deus, caso ele exista, não deva ir além de um reflexo de nossa autossuficiência e realização.
Não se pode afirmar que as posições de Rand se mostrem revolucionárias ou até inéditas enquanto filosofia: eu mesmo concordo com ela na quase totalidade de sua exposição de motivos, e outros tantos filósofos favoráveis ao objetivismo também já o fizeram antes. A revolução que ela representa, porém, está na coragem de expô-lo de forma contundente e inequívoca a quantos queiram conhecer-lhe as ideias, já que vários dos que o fizeram anteriormente pagaram preços altos por sua ousadia de contrariar o “status quo”, como Copérnico, Galileu e Giordano Bruno, para citar apenas os mais célebres.
Estatisticamente, o número dos que seguem por esse caminho não passa de 1% da população mundial, segundo dados mais recentes. E não é para menos: colocar-se contrário ao senso comum em temas tão sensíveis decididamente não se coaduna com o perfil daquelas pessoas mornas e amorfas que Luther King descreveu como “almas tímidas e frias que não conhecem vitórias nem derrotas”.
Mas Ayn Rand sempre foi uma exceção. Reconhecida por sua defesa apaixonada do individualismo radical e do objetivismo, ela pregou a razão, o egoísmo racional e o capitalismo laissez-faire como principais pilares para uma vida plena e satisfatória. Apresentou-se assim como crítica feroz das tradições religiosas e das ideologias coletivistas, acreditando que o homem, enquanto ser racional, deveria priorizar seus próprios interesses, seus valores e a busca pela felicidade individual, em vez de se submeter a dogmas ou sacrifícios pelo bem dos outros.
Buscando entender melhor o que tais conceitos significam, o egoísmo racional não se confunde com o comportamento egoísta de pessoas que não se importam com as outras, mas sim a percepção daquelas que buscam o próprio bem-estar de forma racional, ou seja, respeitando o direito alheio e focadas no seu próprio direito à prosperidade individual. Ela defende que a submissão ao divino se mostra incompatível com essa forma de enxergar os outros e a si mesmo, por significar antes uma renúncia à razão e aos próprios valores. Pessoas que não priorizam seus próprios valores tornam-se vulneráveis à manipulação alheia, e se reservam um papel secundário em relação ao protagonismo que deveriam exercer sobre suas vidas.
Assim, o altruísmo e a submissão ao divino, impostos pelas religiões como “forma de salvação”, não vão além de uma receita de autossacrifício que não apenas limita, mas criminaliza a liberdade e a realização pessoal, como se não fôssemos merecedores de exercê-las.
Em contrapartida, Rand defende que a razão é o único meio para se alcançar o conhecimento e a liberdade genuínos, sustentando que a felicidade humana é o objetivo moral supremo, e somente pela razão podemos atingi-la exatamente por preservar os valores legítimos que cultivamos, em lugar dos que nos são impostos de fora para dentro, inclusive usando o medo como recurso para não os questionarmos.
Para Rand, então, a submissão ao divino é incompatível com a liberdade por representar renúncia à própria razão e à autonomia intelectual. Ela descreve a crença numa moralidade transcendental como uma forma de autoaversão, um processo de negar o próprio eu em nome de um ideal superior, numa espécie de “inseminação artificial” propositalmente direcionada para substituir o exercício natural da consciência humana.
Para Rand, qualquer forma de submissão a algo além da razão, ou ao interesse que deve nortear toda ação individual, representa um retrocesso na evolução do homem enquanto espécie. Sua filosofia rejeita as ideias tradicionais de sacrifício e serviço ao divino, reposicionando a autonomia do indivíduo como o centro de sua percepção moral e ética.
Ao contrário do que seus críticos quiseram sugerir, Ayn Rand não retira o valor da fé, já que as crenças são inerentes à natureza humana, e acreditar num poder maior pode oferecer reforço a situações em que nos sentimos vulneráveis para enfrentá-las. O que ela rejeita é a anulação da racionalidade para questionar as próprias crenças, de modo que percebamos onde termina a necessidade e começa o mero exercício de poder e manipulação por parte de terceiros.
A ideia de que uma moralidade religiosa cobrando que alguém sacrifique a própria felicidade em prol de um ideal transcendente é vista como uma forma de autorrenúncia, de abandono do próprio ser em nome de algo externo e, sobretudo, etéreo. Ela refuta o senso comum de religiões ensinando que a salvação vem através da renúncia aos prazeres mundanos e pelo sofrimento em nome de Deus.
Em oposição à tal ideia, Rand vê nisso uma forma de destruição do indivíduo, pois coloca as necessidades de um ente externo acima do bem-estar e da autodeterminação humana. Ao priorizar a vida e os desejos pessoais, ela afirma que o verdadeiro sentido da virtude reside na plenitude do autodesenvolvimento, pelo reconhecimento do valor da própria existência.
Rand descreve a religião sendo usada não apenas como crença espiritual, mas como uma poderosa ferramenta de controle social e emocional, com instituições religiosas montando um sistema baseado na culpa, no sofrimento e no sacrifício para moldar os indivíduos em nome de um poder maior, mas quase sempre exercido por seus próprios dirigentes.
Ao promover uma moralidade centrada na subordinação a um deus e na renúncia dos desejos pessoais, elas funcionam como um mecanismo de dominação, inibindo o potencial humano com uma visão de mundo que menospreza a busca pela felicidade individual e pela racionalidade.
A ideia de várias doutrinas religiosas de que é necessário sofrer para alcançar a salvação reforça a dependência emocional do indivíduo em relação à autoridade religiosa, construindo um ambiente em que as pessoas se sintam culpadas por suas paixões e desejos, e garantindo assim sua obediência, ao invés de incentivá-las a buscar seu próprio crescimento espiritual e intelectual.
A religião, com sua ênfase no sacrifício e no altruísmo que anula o ser, representaria bem esse obstáculo ao desenvolvimento, pois prega o valor de renunciar a si mesmo em favor de outrem ou de uma divindade. Elas propagam que só existe grandeza na humildade, renúncia e submissão, o que impede o indivíduo de explorar todo o seu potencial. A fé, ao exigir aceitação sem questionamento ou evidência, é vista por Rand como uma forma de abdicação à razão e à liberdade intelectual.
Enquanto a razão promove o uso da lógica e da observação para entender a realidade, a fé impõe uma submissão cega a dogmas e crenças que não podem ser comprovadas ou questionadas, tornando-se assim um caminho aberto para a servidão mental.
Ao longo da história, muitas instituições religiosas defenderam que a crença em Deus não deve ser questionada, mesmo contrariando evidências lógicas ou científicas. Para Rand, essa postura não só impede o progresso humano como nega a capacidade e a opção do indivíduo de tomar decisões sobre sua própria vida e destino. O objetivismo de Rand rejeita a ideia de que o sacrifício próprio seja uma virtude, em especial quando feito em nome de uma causa externa, seja Deus, o Estado ou a sociedade. Para ela, cada ser humano é responsável pela própria vida e felicidade, e não deve submeter seus desejos ou valores a nenhum poder superior, seja ele material ou transcendental.
A ética do objetivismo defende que o indivíduo deve priorizar suas próprias necessidades e objetivos de maneira ética e não nociva, opondo-se frontalmente à ideia da renúncia religiosa como caminho para a salvação, argumentando que a vida humana deve focar na realização pessoal e no aprimoramento contínuo. Ao abrir mão de sua autonomia, o crente coloca sua vida sob estado de vigilância permanente por seus companheiros de fé, por seus dirigentes e até por si mesmo perante as pessoas de fora, para que não o vejam como hipócrita diante da crença que professa. Não é por acaso que a própria nomenclatura usada nesses ambientes religiosos os designa como “ovelhas” e “pastores”.
Traduzido para uma linguagem mais clara, as igrejas costumam identificar seus espaços como um lugar em que alguns mandam e outros obedecem, o que, por si só, já revela a renúncia da maioria à sua prerrogativa de decidir sobre seus destinos.
Para Rand, se trataria de uma moralidade desvirtuada e limitante que impediria o homem de experimentar a existência de forma autêntica. O amor a Deus, em sua visão, deveria ser uma expressão do amor ao ser humano, ao indivíduo, à razão e à capacidade de encontrar realização em sua própria vida, de amar a si mesmo, de reconhecer sua própria dignidade e o direito de viver plenamente.
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Após este mergulho na filosofia de Ayn Rand, cabe-nos questionar:
Seria o amor a Deus, como pregado pelas religiões, incompatível com o amor-próprio?Seria correto admitir a ideia do sacrifício pessoal – tão valorizado pela fé – limitando o potencial humano? Haveria incompatibilidade entre a busca por transcendência e a valorização da razão e da autonomia inerentes ao indivíduo? A fé em Deus e a prática filosófica da liberdade e do individualismo proposta por Rand seriam inconciliáveis? Se não o tivessem assustado com a ideia de não acabar “entre os escolhidos”, você continuaria fazendo tudo do mesmo jeito, ou os mudaria para sua própria forma de pensar?
Essas são algumas questões com que Ayn Rand nos provoca, em formato de um instigante desafio à inteligência humana, e cabe a cada um refletir sobre aquela linha em que, do lado de cá, mantemos controle sobre nós mesmos, e a partir dali o entregamos a outrem. O conhecimento é direito de todos, mas a escolha é de cada um. E quanto ao “vão combate” a que me referi no título, ele fala do reconhecimento de que sempre existirão os dois tipos de pessoas: as que se detêm diante da linha, e as que optam por ultrapassá-la. São opções, e não nos cabe julgá-las, já que a Dualidade nos lembra que o branco só faz sentido porque existe o preto a contrapô-lo. É assim que é.