Quando Jesus Yanomami desembarcou no Aeroporto de São Gabriel da Cachoeira, em junho de 2024, seu anseio era regressar à comunidade e abraçar seus pais. Ordenou ao rabeteiro que acelerasse o quanto pudesse.
— Vamos, preciso chegar ainda hoje!
— O senhor não é daqui, é? — perguntou o rabeteiro.
— Sou, sim! Mas por que pergunta?
— Se fosse, saberia que esse rio é traiçoeiro. Se eu acelerar, a morte é certa.
Foram três dias subindo o Rio Negro, cortando águas escuras que refletiam a noite como um espelho sem fim. O som ritmado dos remos fundia-se ao canto dos pássaros distantes. O aroma da mata preencheu-lhe as narinas, trazendo lembranças adormecidas.
Ao tocar a terra firme, uma figura emergiu entre as palhoças. Era José Yanomami, o velho cacique, seu pai. Seus olhos carregavam o peso dos anos e a sabedoria de quem vira muitos partirem — poucos voltarem. O silêncio durou apenas um instante, tempo suficiente para o vento dançar entre as árvores.
— Por que voltou, filho? — indagou José, com sua voz grave e serena.
Jesus respirou fundo. Seu coração pulsava como uma cachoeira vibrante.
— Para reencontrar minha história.
— Venha. Mas lembre-se: ninguém precisa regressar para se reencontrar. O ser humano carrega sua essência onde quer que esteja.
— Mas eu não era feliz na cidade grande! — respondeu Jesus, frustrado. — Lá, tudo é frio. As pessoas perderam o respeito. Filhos não pedem bênção aos pais. Se não for branco, se não falar inglês, não tem trabalho. E os policiais… — sua voz falhou. — Nos olham como criminosos antes mesmo de sabermos nossos próprios nomes.
José cruzou os braços. O vento balouçava as folhas, como se a floresta também esperasse sua resposta.
— E só agora percebeu isso? Por que não voltou antes?
Jesus abaixou a cabeça. Não havia resposta fácil, apenas o peso do tempo e das escolhas. Mas agora estava de volta.
O tempo passou. Ele fazia o possível para se readaptar, mas a comunidade murmurava. Os mais velhos balançavam a cabeça, os caçadores cochichavam e até as crianças, sem compreender, repetiam:
— Não sabe caçar… Nem pescar… Nem plantar… Virou um estranho… Deve partir.
José ouvia tudo em silêncio. Não sentia vergonha, mas preocupação. A aldeia não perdoava os que dela se afastavam.
Certa noite, sob a luz do fogo, chamou o filho. O silêncio se alongou, até que José perguntou:
— Pretende ficar para sempre?
Jesus olhou-o nos olhos. As chamas dançavam no olhar envelhecido do cacique.
— Sim. Quero ficar.
— Mas por quê?
José assentiu lentamente. Com a paciência de quem carrega o tempo nos ombros, disse:
— Os rios, as matas, os animais seguem o ritmo de nossos ancestrais. Não é a aldeia que deve mudar para você. Você deve lembrar-se de pertencer a ela.
O jovem abaixou a cabeça, refletindo.
— Se deseja mesmo ficar, precisa se tornar parte deste lugar, e não apenas estar nele. O vento soprou entre as árvores, carregando a fumaça do fogo.
— E lembre-se: você saiu daqui, mas este lugar jamais saiu de você.
Jesus respirou fundo. Fechou os olhos. Ouviu o farfalhar das folhas, o canto dos grilos, o rumor do rio. Pela primeira vez em anos, sentiu-se em casa.
— Isso mesmo, papai. Eu quero ficar aqui e ser feliz com todos vocês!
— Bem-vindo de volta — disse José, abraçando o filho.
Sentindo-se realizado, Jesus fechou os olhos e sentiu a firmeza, a força, a coragem e a liderança do pai. O cheiro de jenipapo e urucum despertou lembranças de infância: correndo entre árvores, ouvindo as histórias dos anciãos, aprendendo os cantos sagrados.
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Agora era um homem, e um homem que esteve distante por muito tempo. — Quero aprender tudo de novo, papai. Quero lembrar o que meus pés esqueceram, o que minhas mãos deixaram de tocar. José assentiu.
— Então venha — disse, conduzindo o filho pela aldeia.
O sol se punha, tingindo o céu de vermelho e laranja. Crianças paravam para observá-lo, algumas sorrindo, outras apenas curiosas. Mulheres preparavam a comida em grandes cuias, homens afiavam lanças.
— Você tem muito a reaprender, meu filho — disse o cacique. — Amanhã, ao amanhecer, começamos.
E assim, naquela noite, Jesus Yanomami dormiu sob o teto de palha, ouvindo os sussurros da floresta. E, enfim, pela primeira vez em anos, não se sentiu um estranho. Ali, no coração da Amazônia, voltaria a ser quem sempre fora.