Tudo começou com uma depressão, e antes da depressão, uma bagagem de vida me levou a isso: a anorexia.
Sempre fui uma pessoa muito feliz, daquelas que sabe aproveitar as coisas simples da vida como poucos. Passei por algumas dificuldades na adolescência como bullying, autocobrança por nota na escola, mas nada que eu não tenha conseguido me livrar. Ainda na adolescência, quando eu tinha 14 anos, comecei a namorar um cara uns 6 anos mais velho do que eu, já ouviu falar sobre relacionamentos abusivos? Foi por isso que passei, foi um ano sendo xingada, humilhada, culpada por tudo, sem poder ter uma vida social fora ele, não podendo dizer “não” para algumas coisas que eu não queria fazer. Este um ano foi o suficiente para eu achar que tudo que eu fazia era errado, e principalmente que tudo que acontecia de errado no mundo era culpa minha.
Choros, noites sem dormir, e longos dias me olhando no espelho e apenas vendo a imagem do sofrimento e não de uma pessoa. Não me via gorda, eu me enxergava pesada: pesada de culpa. Cheguei a um nível insuportável de achar que até o aquecimento global era culpa minha, gastei aulas perguntando ao meu professor de sociologia o que eu podia fazer para mudar o mundo porque eu realmente queria fazer algo pelo mundo, mas também queria aliviar o peso das minhas costas. O peso em meus ombros só aumentava e os números da balança diminuíam. Já estava com 45kg quando decidi terminar aquele relacionamento, me sentia menos pior, mas já era tarde, a depressão tinha me dominado.
Meses fazendo dietas loucas de 500 calorias por dia ou menos, comendo metade de um quarto de chuchu, uma semana à base praticamente só de água, voltando da escola a pé, subindo as escadas todos os dias, fazendo mais exercícios do que meu corpo podia aguentar, passando o intervalo com as colegas da escola e olhando para aquele alimento na mão delas como se fosse o pior veneno do mundo, chegando em casa depois de um dia movida, às vezes, a 300 calorias, e fazendo o controle do que consumi e do que gastei, sempre anotando o “bônus” que tinha de 1500 calorias ou mais. Meus pais me viam definhar cada dia mais, eu não sentia muitas coisas, meus professores às vezes gastavam aulas tentando dizer para mim o quão lindo é viver. Minhas aventuras em médicos eram insuportáveis, meus pais me inscreveram para um hospital que tratava da doença, mas estavam sem vagas, uma semana internada em casa, passei por inúmeros médicos até encontrar alguém que sabia que minha alma precisava ser resgatada do abismo que eu havia me metido.
Não sei ao certo o que meus pais pensavam, sinceramente não me lembro de muitas coisas, exceto de uma vez no hospital que minha mãe chorava de soluçar (coisa que nunca vi ela fazer) ou de uma vez em que comi duas fatias de pão de 42 calorias no café da manhã e meus pais olharam para mim com uma cara de surpresa e felicidade que não consigo me esquecer. Sei que eles sofreram e foi uma grande provação para eles. Encontrei uma psiquiatra que só hoje gosto dela, na época, na primeira sessão me levantei e sai da sala dela batendo a porta. Aguentava ir numa psicóloga porque estava sendo obrigada. E comecei a ir numa nutricionista. Médicos separados, mas que agiam em equipe. A dor invisível na minha alma, mas visível no meu corpo não dava sinais de melhora. Eu queria morrer, aliviar aquela coisa que sentia no meu peito, minhas costelas, meus ossos, meu olhar já sem vida refletiam isso sem eu nem precisar dizer.
O tratamento começou para valer no momento certo, a nutricionista disse que se eu emagrecesse mais um kilo eu morreria, dessa vez já estava pesando 39kg. Fui medicada com um antidepressivo que me dava muita compulsão por comida, eu tentava me controlar, mas sempre acabava comendo dois pacotes de bolacha maisena no café da tarde, o remédio era mais forte que eu. A raiva de não poder controlar o próprio corpo é algo que poucos conhecem. Em dois ou três meses, de 39kg eu passei a 72kg. E talvez seja um pouco anticlímax, mas nesse tempo minha cabeça melhorou um pouco, eu voltei a respirar um pouco a vida. Não sei ao certo como aconteceu, como eu disse, eu não me lembro de muitas coisas. Mas algo posso dizer, não foi de um dia para o outro, a grande diferença foi voltar a sentir sentimentos de verdade sem ser aquela “dor” que vivia no meu peito.
Decidi fazer um intercâmbio para a Argentina, já estudava espanhol há algum tempo, a psiquiatra até apoiou a ideia porque eu não estava mais com risco de vida, achou que faria bem para mim. E fez. Me senti livre, e independente. E gorda também, comia um pote de doce de leite todo dia. Na volta, ela mudou o meu remédio, um que já não me dava tanta compulsão, fui melhorando psicologicamente — tinha parado de ir na psicóloga há um tempo porque estava me estressando mais do que fazendo bem — e aos poucos fui voltando ao meu peso normal.
Desde então, 7 anos se passaram, ano passado eu tive “alta” dessa doença. Continuo o tratamento quanto ao quesito ansiedade, porém de nada tem a ver com anorexia ou depressão.
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O que eu aprendi dessa história?
Hoje vou numa psicanalista e confesso que essa história sempre me rende mais aprendizados, mas talvez de forma resumida eu possa dizer que aprendi a não ser um objeto de ninguém, me relembrei do quão é bom viver, percebi o quão meus pais são pessoas fortes, o quão eu fui forte, e principalmente: aprendi a nunca achar que entendo a dor de alguém. Talvez eu encontre alguém que tenha passado por depressão ou anorexia no meu caminho, mas espero que você entenda como eu entendi que todos nós somos seres humanos diferentes, almas diferentes, mentes diferentes, portanto, uma doença pode ser a mesma, mas a dor é sempre individual.