Outro dia, enquanto esperava o sinal abrir e o trânsito fluir fiquei observando um cão que estava ávido para abocanhar algumas migalhas que sobravam do lixo esmagado no meio do asfalto.
Ele era magro e tinha os olhos tristes. Entre os carros que tentavam desviar, o cão ia e vinha na tentativa de lamber qualquer farelo que pudesse saciar seu desejo, sua necessidade, indiferente ao risco que se dispunha por aquela esmola.
Faminto, entre uma buzinada de alerta e outra, ia até o amontoado de comida esmagada e mal dando tempo de abocanhar um pedaço, corria para se safar da morte iminente, mas voltava, a fome era maior que o instinto de preservação, ou uma coisa se confundia com a outra, eu ainda não sei…
Contemplando essa cena me comovi com a emoção dos que se reconhecem, dos que se identificam.
Lembrei-me de quantas vezes estive assim à mercê do perigo, da destruição: presa a esta necessidade que nos leva à perda da razão, um passo antes da faixa amarela da insanidade.
Exposta indiferente às ameaças, para estender a mão, mendigar, também num instinto de preservação (era o que eu pensava), na corrida cega em busca de um pouco de paz. Desvirtuada e perdida em busca de uma quimera, uma fagulha, uma centelha.
Corri da rua para a calçada, desviei de uma morte iminente, rodeei aquele amontoado de comida esmagada para minha fome emocional, e eu tão magra e com olhos tristes como aquele cão. Foi por isso que ao olhá-lo, no balé frenético da desilusão – porque ali nem comia o resto, nem salvava a vida, me comovi, e então olhei para frente e o farol abriu…
Mas essa visita a sentimentos tão humanos que o cão me demonstrou não se afastou de mim. Passei dias pensando no quanto e em quantas vezes nos dispomos a viver na busca desesperada por migalhas.
Todos já passamos por isso, seja acomodados num trabalho que não nos traz satisfação, mas de alguma forma paga nossas contas, seja num relacionamento de dedicação unilateral ou numa situação em nosso seio familiar, daquelas nas quais é mais confortável nem tocar no assunto.
É difícil observar-se do lado de fora e analisar algumas atitudes de repetição ou inércia, por considerar que aquele padrão de comportamento é o melhor que podemos fazer diante de determinada situação.
É ainda mais difícil ter a medida correta de compaixão por nós mesmos, sem cair na vala sem fundo da autopiedade.
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O fato é que, em algum momento, a luz sobre os nossos próprios atos virá e essa será a hora de criar coragem para desviar de caminhos viciosos e repetidos que nos levam sempre ao mesmo lugar.
Quando essa luz vier, não desvie seu olhar, por mais que ela lhe fira os olhos, erga-se, enfrente com determinação as oportunidades de mudança que podem ser promovidas na sua vida, e desse passo em diante, será mais fácil seguir em frente.