Justiça concede liminar que permite tratar homossexualidade como doença.
– por Natália Cancian para a Folha de S.Paulo.
O psicólogo ajuda você a lidar com um sofrimento emocional que incomoda demais, quase a ponto de se tornar insuportável.
– Audrey Setton, psicoterapeuta, professora do Instituto de Psicologia da USP.
Meus olhos arregalaram como um emoji surpreso quando li a manchete com a qual inicio este texto. Em seguida, resgatei um que li há alguns dias, no qual a citação da professora Audrey Setton estava impressa.
Há nessa citação algumas palavras chaves sobre as quais gostaria de chamar sua atenção. São elas: “ajuda”, “sofrimento emocional”, “insuportável”. Agora vamos guardar por um momento essas informações, já volto a falar sobre elas.
Estamos vivendo em tempos estranhos. A moda do politicamente correto está, ao meu ver, nos fazendo perder um pouco a noção das coisas. É certo que as liberdades devem ser preservadas, outras sequer devem ser concedidas.
O descaso, o desrespeito e agressões em formas cada vez criativas e cruéis não deveriam ser tolerados, mas são. Eu entendo que isso se dá, por exemplo, quando compartilhamos informações que não nos pertencem, opiniões que não foram pedidas, isso somente para citar coisas, digamos, mais “superficiais”.
Achamo-nos no direito de expressar opiniões em nome da nossa liberdade, sem questionar por nenhum instante em que momento nosso direito de expressão ultrapassa nosso dever de respeitar o outro.
Estou falando daquela brincadeirinha que constrange e se constrange, não é brincadeirinha. Estou falando da reação que humilha. Da crítica que ofende. Do julgamento que condena. Estou falando disso para não entrar no âmbito físico, de fato.
E superestimando nossos poderes de mando e desmando, basta ter algum poder e uma caneta na mão para um juiz determinar uma patologia. Há alguma coisa estranha nessa frase, não acha? Patologias são condições determinadas pela medicina, e somente neste caso, quando existe patologia, podemos falar em cura.
Quando somos surpreendidos por uma liminar da justiça federal falando em “cura gay”, me pergunto se a humanidade já se cansou ou se entediou de ronronar para as suas questões pessoais, e por esse motivo buscam pretexto para lidar com questões alheias como um gato faz com uma bola de lã.
Ou, em uma melhor análise, transferem para as questões de terceiros que nem as tem como tal, suas próprias questões e as disfarçam de pseudo convicção social. Não desprezo pessoas que têm relações homoafetivas e se incomodam com isso. De fato, existe muita gente que quer ajuda nesse sentido.
Todos têm direito de buscar soluções nas suas vidas para serem felizes independentes da sua orientação sexual. A solução não é dada pelo psicólogo, mas o paciente a descobre durante o tratamento. Psicólogos não impõem nada e quem faz terapia sabe disso.
Como qualquer tratamento, o paciente pode concluir que seu problema não era o que o motivou a procurar ajuda, inclusive terminar o tratamento sem conflitos e continuar com sua orientação sexual.
Aprofunde-se no significado e nas pautas de cada “letra” da sigla LGBTQIA+
Voltando às palavras da citação de Audrey Setton:
Sobre “ajuda”
Ajuda é um termo usado para ir ao socorro, ao auxílio. Logo só é necessário quando quem precisa se encontra nessa condição. A definição dessa condição não pode ser dada por terceiros. A necessidade deve ser reconhecida pelo necessitado, caso contrário, como dizia minha avó: “muito ajuda quem pouco atrapalha”.
Sobre “sofrimento emocional”
Quem pode medir ou julgar o que nos causa sofrimento emocional somos nós mesmos. Terceiros, por mais empáticos ou bem-intencionados que sejam, jamais andarão com os nossos sapatos para conhecer onde apertam nossos calos.
Sobre “insuportável”
Esta palavra é autoexplicativa, e dói somente de ler. Mas a julgar pela sua morfologia, sabemos que revela um sentimento de dentro para fora, de interioridade, logo, não cabe a terceiros definir.
Assim, tenho que concluir que independente de nossas convicções pessoais, de nossa orientação religiosa ou qualquer outro possível e discreto incômodo ou preconceito, não há ninguém no mundo capaz de decidir o que convém para outro. Muito menos decidir sobre conflitos, quando existem, que não são nossos.
Permitir, como sugere a liminar proferida esta semana, que o atendimento a homossexuais seja realizado através de “terapias de reversão sexual”, posto dessa forma, equivale a permitir que lavagens cerebrais sejam realizadas para normatização social em detrimento das crenças de alguns.
Eu não tenho relação homoafetiva, não é minha orientação sexual, e sou sincera ao afirmar que não estou 100% segura de como reagiria se meu filho revelasse ter. Mas estou certa de que não o mandaria a um psicólogo para se tratar, exceto se isso o incomodasse ou o fizesse sofrer.
O mais provável seria que eu mesma fosse procurar a terapia para entender o motivo de não saber como reagir.
Eu acredito que precisamos falar de curas humanas mais urgentes, dessas que não definimos em outros, mas em nós mesmos. Precisamos curar essa mania de entender que só existe uma maneira de ser feliz, curar essa resistência ao que é diferente de nós, mas não por isso estranho ou errado como norma única e imutável.
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Acredito que temos necessidade e urgência em compreender que temos o direito de viver de acordo com nossos valores e aquilo que acreditamos serem nossas virtudes. Sem esquecer, no entanto, do nosso dever de respeitar a todos, já que pouco se recebe daquilo que não conseguimos oferecer.
É uma regra simples que poucos conseguem se lembrar, e talvez, justamente por isso, todos devam se curar.