Ele cresceu fascinado por passarinhos. Deve ter sido o único moleque da sua geração naquele bairro cheio de árvores que nunca usou um estilingue a não ser para quebrar vidraças das casas dos vizinhos chatos e que gostavam de furar bola do futebol da molecada nas ruas. O primeiro presente que deu para a sua primeira namoradinha foi uma pena de passarinho, amarelinha, maior apenas que a metade do dedo mindinho, ele nunca mais esqueceu a expressão de alegria da presenteada e passou a gostar ainda mais de passarinhos.
Um dia conheceu o desamor e um passarinho foi a única testemunha de um choro torturado, em que procurava deixar escorrer a imensa dor da perda. O passarinho ficou perto dele, no fio de energia de um poste, olhando para ele com a carinha que apenas um passarinho tem e só foi embora depois que cessou o choro e ambos entenderam que era chegada a hora de um procurar outro para consolar e o outro um novo amor para renascer e reaprender a voar na turbulência das paixões.
Casou-se com uma passarinha, segundo ele. Só podia ser uma passarinha aquela moça de tanta graça e leveza, com voz que até na hora de dizer uns impropérios era música pura. Passarinha que voou com ele por muitos anos, em céus azuis como o manto da Madona, alternando com outros meios carrancudos e até por aqueles que mais serviam para ser locações de filmes de tempestades em que navios e marujos eram sugados para o ventre de sereias furiosas. Com a passarinha, ele teve dois filhos, menino e menina, ele um espevitado pica-pau de papo amarelo e ela uma saltitante cambaxirra que parecia andar com salto 15: assim via os seus filhos, com os mesmos olhos de quando via passarinhos voejando pelos céus.
Você também pode gostar:
- Amizade verdadeira a gente reconhece
- Proteja-se de pessoas com comportamentos tóxicos
- Maturidade: Muito mais do que evolução
A vida inteira, contudo, uma angustiosa dúvida amargava um pouco a sua contemplação dos passarinhos: para onde iam, como morriam? Nunca lhe foi possível ver um passarinho deixando a vida, a não ser quando um deles trombou com a vidraça de uma janela e outro foi visto na boca de um gato, desses que habitam os telhados das casas. Até um ornitólogo chegou a consultar sobre esse mistério e o que dele ouviu nada foi além de umas explicações científicas, meio sem graça.
Um dia ele virou passarinho: findou o ciclo que se chama “vida”, bem fraquinho e sentindo a leveza de passarinho para poder voar, ele sorriu pela última vez para a sua passarinha de vida inteira e um monte de outros passarinhos filhos, netos e até um bisneto e voou para o outro lado. Quando lá chegou, cantou um canto de imensa beleza e vibrante alegria. Finalmente sabia para onde iam os passarinhos e seus olhos luziram em cores que faziam par às notas musicais jamais ouvidas por humanos, que eram a sinfonia reinante de onde estava. Que bom ser, finalmente, passarinho, ele pensou e se rejubilou. Sentindo que podia voar, fez apenas um gesto e se viu voando para onde chegam apenas os que viram passarinho, lá no útero de toda a Criação.
Você, leitor(a) dessas linhas, já pensou em virar passarinho? Gostaria de ver de perto onde a Vida é criada e aperfeiçoada há zilhões de séculos? Então, vire passarinho! Voe com os seus sonhos, cante o júbilo de viver, reconstrua-se em levezas, encontre um(a) passarinho(a) que tenha a outra asa e que, junto com a sua, permita o voo de ambos e saia por aí, em voos dos mais variados, levando e espalhando sementes de desejos para virar passarinho e tenha a certeza de que será passarinho quando for inevitável precisar voar rumo a um novo tempo, a uma magnífica dimensão!