Comportamento

A Boa Fé

Dois homens se cumprimentando.
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“O homem livre jamais age com dolo, mas sempre de boa-fé” (Spinoza, Ética IV, prop 72)

Um dia desses, uma colega de trabalho me confidenciou que não confiava em pessoa alguma e que, para ela, ninguém era bem-intencionado até que demonstrasse o contrário.

Confesso que fiquei surpresa, pois, no meu caso, acontece justamente o contrário. Sempre dei crédito às pessoas com as quais me relacionei e ainda me relaciono de alguma forma.

No entanto, há poucos dias, fui vítima de um golpe. Puxa vida, eu confiei plenamente na pessoa a quem me dirigi e acreditei realmente que ela poderia me ajudar a resolver determinado problema. Ela me enganou. Caí numa armadilha como um bichinho qualquer. Como pude ser tão tola num momento em que somos bombardeados por fake news e por tramoias de toda natureza?

Foto de uma mulher com nariz distorcido, imitando ao pinóquio.
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As palavras de minha colega vieram-me à minha cabeça. Para falar a verdade, eu já me decepcionei com algumas pessoas, mas nunca fui vítima de uma pessoa criminosa. Deverei, então, desconfiar de todo mundo, de agora em diante? Fico imaginando que será muito difícil viver dessa forma. Sabe por que, meu caro leitor? Sou uma pessoa de boa-fé.

Você sabe o que é a boa-fé? Segundo André Comte Sponville, um dos mais importantes filósofos contemporâneos, a boa-fé é uma virtude moral. Ser de boa-fé é tomar a verdade como princípio orientador da vida, é ser sincero consigo mesmo e com os outros e ser o mais autêntico possível. Ao contrário, ser de má-fé é adotar a prática da mentira, da hipocrisia, da dissimulação e da duplicidade.

Mas será possível ao ser humano ser verdadeiro, ser sincero sempre? Nós sabemos que não. Algumas vezes, mentir é um ato de compaixão, outras vezes é um ato de solidariedade ou, ainda, uma forma de evitar conflitos danosos aos nossos relacionamentos. É o que nos diz o bom senso: diga sempre a verdade, mas não diga a verdade sempre. Mas a boa-fé não se restringe apenas à sinceridade, pois exige de nós muito mais que isso.

André Sponville considera que “não há sinceridade absoluta, mas tampouco há amor ou justiça absolutos: isso não nos impede de tender a elas, de nos esforçarmos para alcançá-las… A boa-fé é esse esforço, e esse esforço já é uma virtude… A boa-fé é o amor à verdade, na medida em que esse amor comanda nossos atos, nossas palavras, até mesmo nossos pensamentos.” (in: Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Martins Fontes, 1999).

O referido filósofo afirma que a boa-fé deveria ser a virtude por excelência dos intelectuais e, principalmente, dos filósofos. Ou seja, se tais sujeitos buscam o esclarecimento e a verdade por meio da razão, eles devem fazê-lo pelo uso de uma intenção correta, se desejarem ser dignos de respeito e confiança. Assim sendo, devem agir como homens livres de qualquer forma de preconceito ou ideologia, sob pena de estarem agindo de má-fé.

Um homem utilizando uma lupa num ambiente brumoso.
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Quanto ao cidadão comum, não poderia ser diferente. O ser humano, na vivência de sua humanidade, deve respeito ao seu semelhante, sob a condição de negar sua humanidade, caso aja de má-fé. A boa-fé é, portanto, uma exigência humana e a virtude suprema da nossa espécie. Isso é tão verdadeiro que nos sentimos indignados quando somos ludibriados por alguém.

Você poderá argumentar, caro leitor: mas os homens mentem! É verdade, encontramos no cotidiano de nossas vidas aqueles que agem de forma dissimulada, são hipócritas, corruptos e, muitas vezes, acreditamos neles! São pessoas que agem de má-fé, quando, por exemplo, vendem algum objeto com defeito, quando oferecem algum benefício a alguém em troca de um favor, de um voto.

Há também aqueles que, agindo assim, acreditam estar agindo de boa-fé, seja porque perderam sua lucidez pelo fanatismo ou pela vulgaridade de suas concepções. Infelizmente, essa realidade dificulta uma convivência humana fundamentada na justiça, no amor, na generosidade.

Então vamos concordar que, desde que o mundo existe, há pessoas de boa-fé e de má-fé. Temos que conviver com essa realidade. O ser humano é essencialmente livre, pode escolher entre as alternativas que as circunstâncias lhe oferecem, de acordo com uma intenção ou um propósito. Mesmo em circunstâncias adversas, ele não pode prescindir de sua liberdade de escolha, seja para o bem, seja para o mal.

Você poderá argumentar, ainda, meu caro leitor, que muitas pessoas não têm chance de escolha, vivem à margem da sociedade, o mundo é muito cruel com elas, são produtos do meio em que vivem. Rousseau, filósofo suíço do século XIX, também pensava como você. Ele acreditava que o homem é naturalmente bom e livre, mas a sociedade o corrompe.

Um retrato em preto e branco do filósofo genebrino Jean-Jacques Rousseau.
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Em sentido contrário, seu antecessor, Hobbes, filósofo inglês do século XVII, acreditava que os homens, em estado de natureza, são egoístas e maus e, por isso, somente uma sociedade controlada pelas leis pode assegurar a convivência segura e pacífica entre eles. Esse antagonismo nos sugere uma outra discussão: há pessoas de má índole e pessoas de boa índole?

Na verdade, essa discussão é muito mais complexa do que podemos imaginar, porém somos forçados a reconhecer que existem, sim, pessoas de boa índole e de má índole, de boa-fé e de má-fé e que tanto umas como as outras traçam a sua conduta moral pela escolha livre dos seus atos. Ninguém é obrigatoriamente bom ou mau, mas aquele que age com dolo está certamente negando a sua humanidade.

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Quanto a mim, meu caro leitor, não vou andar por aí desconfiando de Deus e do mundo. Prefiro continuar acreditando na boa-fé das pessoas, porém com a perspicácia e a sabedoria daqueles que buscam a verdade

Sobre o autor

Conceição Castelo Branco

Sou formada em filosofia e pedagogia. Na verdade, sou uma eterna aprendiz que, aprendendo, também ensina. Sou uma educadora em construção. Nesse processo, descobri meus talentos. Ensinar e aprender foi um deles. Trabalhei com crianças como professora alfabetizadora. Tarefa difícil e desafiadora, mas também apaixonante. Trabalhei com adolescentes e jovens de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio, realidades completamente diferentes, com desafios complexos. Nesse contexto, atuei como arte-educadora, vivência que me enriqueceu extraordinariamente. Trabalhei, enfim, com jovens e adultos na universidade pública, onde pratiquei o exercício da reflexão e da crítica com maior profundidade.

Durante algum tempo, prestei serviços na Secretaria Estadual de Educação, na área de currículo, planejamento educacional e formação de profissionais de educação. Constatei que, sem a experiência do magistério, o meu trabalho jamais teria repercussão no chão da escola. Fui consultora do Ministério de Educação em alguns trabalhos, entre eles na elaboração dos Planos Municipais de Educação do Piauí. Atuei também como conselheira estadual de educação, função que exige muito estudo e conhecimento da realidade.

Em dado momento de minha carreira, resolvi escrever um livro, no qual abordei os problemas e desafios de quem assume o magistério com compromisso e responsabilidade. Seu título: "Professor, sai da caverna". Foi publicado pela editora da UFPI. Paralelamente a essas atividades, fiz o curso de instrutora de Yoga, cuja prática mantenho até o momento em que vivo. Tenho outros projetos: escrever um outro livro (dessa vez com a participação de alunos) e trabalhar Yoga com crianças de uma escola municipal da periferia de Teresina, cidade onde moro. Talvez eu continue a sonhar até o fim da vida, porque, no fundo, sei quem sou e para que estou nesse mundo.

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