Se eu pudesse escolher o que lembrar na minha velhice, uma das coisas seria a casa da biblioteca. Minha tia foi bibliotecária por quase toda a vida. Boa parte dela, viveu com meu tio e primos nas dependências do bonito prédio art déco de uma biblioteca paulistana no centro de uma praça com árvores frondosas e belos jardins. A construção de dois andares tinha uma divisão que separava a casa da bibliotecária dos salões onde ficavam os livros. Ainda me lembro da primeira vez que, contrariando as recomendações da tia, adentrei a grande nave.
Na sala de estar da casa, havia uma pequena porta, debaixo da escada, que dava para um cômodo, chamado por todos de “buraco da onça”. Lá, entre outras coisas, ficavam os brinquedos de minhas primas. Minicozinha equipada com fogão e panelinhas, pratinhos de plástico e garfinhos, bonecas, bichos de pelúcia, carrinhos de bebê e demais maravilhas que faziam as tardes das nossas brincadeiras de casinha. Abríamos a porta, montávamos a cozinhazinha e passávamos o dia indo e vindo na séria tarefa do brincar.
Mas, no buraco da onça, havia outra coisa, cercada de mistério: a segunda porta. Por ela, meninas brincando de boneca estavam proibidas de passar. Uma vez, inadvertidamente e com muita cautela, forcei a maçaneta – que, àquela época, ficava acima da minha cabeça – e, com a respiração suspensa, atravessei o portal proibido.
A importância do que estava por vir só anos mais tarde saberia. Atrás daquela porta havia, primeiramente, um cheiro que até hoje me vem às narinas; depois, um silêncio, profundo, que ainda me preenche a alma com intensidade e que jamais foi superado por nenhum outro. Finalmente, na atmosfera diáfana da câmara, apareceram os livros. Estantes escuras, sólidas e sóbrias, com seus volumes encadernados de vermelho, azul ou marrom, letras douradas em estranhos símbolos, indecifráveis para mim naquela época.
Andando pelo chão de tacos reluzentes, tramados em escama de peixe, por entre mesas escuras e lustrosas, com passos hesitantes, entrava eu, pela primeira vez, em um universo desconhecido que se tornaria o meu lugar fora de casa favorito no mundo por toda a vida: a biblioteca. Sentir a intensidade de esvaziar os pensamentos e serenar os movimentos, nas tranquilas salas de uma grande biblioteca é um exercício que me alimenta a alma. A sensação é parecida com a que temos ao adentrar uma floresta de majestosas árvores.
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Agora, longe das grandes bibliotecas, fico impressionada com essa diagonal, casinha de boneca-biblioteca, em minha vida. Olho ao redor e vejo, aqui, na minha pequena casa, a cozinha-sala repleta de livros. Penso que cozinhar e arrumar a casa, enquanto leio e escrevo, é uma rotina de que gosto desde muito. Terá sido o vivido na primeira infância, no espaço debaixo da escada, entre a casa e a biblioteca, um componente constituidor de modos de existir? Terá sido nessa brincadeira de casinha entre livros o meu “para-sempre” da infância?