Ontem, após o trabalho, cheguei em casa, física e psicologicamente esgotado (esgotado é diferente de cansado, o esgotamento está ligado com o desânimo e desejo de isolamento), sentia o meu corpo pesado e lento, em processo de petrificação, enrijecido, a minha cabeça queria entrar dentro de um buraco escuro e ficar lá por horas, a noite estava chuvosa, como tem sido nas últimas semanas. Todos os fatores me indicavam e quase ordenavam que eu ficasse onde estava, sentado no sofá, sentindo toda aquela angústia e falta de ânimo, olhando a chuva escorrer pela janela, aguardando mais um dia acabar, fazendo exatamente o que seria “lógico” fazer. Pragmático e chato.
Desço as escadas do quinto andar ao térreo, a minha luta física já está bem encaminhada, mas a cada passo que avanço, a minha mente inicia o seu trabalho, me chantageia, me flagela e me questiona: “Por que está fazendo isso? O tempo está péssimo, você já trabalhou o dia todo, você merece ficar no sofá! A rua é super perigosa, você pode ser assaltado, ser atropelado ou, pior ainda, vai voltar a chover e você levará um raio na cabeça, o Brasil é o país que mais morrem pessoas vítimas de raios, sabia?”.
Finalmente chego ao portão, inicio o aquecimento, que é bem simples, respiro e me concentro, é como se avisasse a todo o meu corpo: “Prepare-se, vamos correr em 3, 2, 1.. Go!”. As primeiras passadas são como um relógio que inicia o seu mecanismo, cada engrenagem tem um papel fundamental para que tudo funcione da maneira mais fluida possível, “TIC-TAC” constante, nesse momento, a minha mente já mostra a primeira franqueza, mas continua a jogar CONTRA, ela diz: “Está ok, já que saiu de casa, vai só até aquela esquina e volta, já está bom! Cara, você está bem, não precisa fazer isso, volte, vai! Quer provar o quê? Xiii, começou a chover mesmo, hein, vamos voltar!”. Na medida em que vou ignorando esses impulsos e as súplicas dela, o meu corpo embala, a liberação de endorfina se inicia e o jogo começa a virar: “Uau, isso é demais! Vamos correr um pouco mais rápido!? Pisa naquela poça de água ali, vai ser legal! Erga os braços, alinhe esse tronco, você é bom! Mais rápido, mais rápido!”.
Corro até a pista mais próxima, já me sinto leve, as passadas são naturais e a partir desse momento tenho controle sobre corpo e mente, a partir daí passo a apreciar a atividade que, após um tempo de prática, passa a ser tão prazerosa quanto jogar videogame ou comer pizza. Aprecio a paisagem e observo tudo o que acontece na rua e ao meu redor, nesse momento de apreciação, eu sou ultrapassado por outro corredor, dentro de mim se inicia uma outra batalha: “O que foi isso? Esse cara passou a gente? Vamos deixar?” X “Ok, pessoal, está tudo bem, estamos voltando agora, deixa quieto! O pé ainda não está 100%, isso não é para nós! O cara é ‘canela fina’, não temos chance!”. Tudo isso em fração de segundos, opto por aceitar o desafio e colo no cara, a perseguição dura por 2km, ao término do “racha”, cumprimento o sujeito, agradeço por ter sido o meu paceiro e tomo rumo de casa. O sujeito fazia 4:30 para 1km, quase morri, mas valeu a pena, foi uma boa disputa!
Durante toda a nossa vida, nós somos submetidos a essa dualidade, que nos joga de um lado para o outro, tentando nos manipular a fazer o que nem sempre é o melhor para você, em alguns momentos, quase que uma sabotagem, é como duas crianças disputando o mesmo brinquedo. Não sou detentor de nenhuma verdade, mas digo, por experiência profunda e sentida na pele, que o que podemos fazer é educar e disciplinar essa dualidade para que ela trabalhe para você, não contra você, energias direcionadas para a mesma direção.
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