O que um antigo mito irlandês pode nos ensinar sobre os perigos da objetificação de uma mulher nos dias atuais? A resposta é: muito.
A seguir, vamos conhecer a história da mulher mais bonita da Irlanda, Deirdre, e como ela se relaciona com os padrões estéticos femininos.
A história de Deirdre
O conto de Deirdre das Dores envolve beleza, luxúria e morte. A história se dá na antiga Irlanda, durante o reinado do Rei Conchobar Mac Nessa de Ulster.
Tudo começou quando uma menina, filha de um chefe e bardo dos Ulaidh, nasceu. Era Deirdre. A bebê era belíssima, e Cathbad, o druida (espécie de sacerdote celta), fez uma profecia. Ele disse que, a cada ano de vida da menina, a sua beleza aumentaria, até que ela se tornasse a mulher mais bonita de toda a Irlanda. Mas também por sua beleza, ela traria guerra e tristeza ao país.
Quando a notícia chega à capital de Conchobar, os guardas e cavaleiros decidiram matar Deirdre para salvar a Irlanda. O rei Conchobar, porém, quis que ela ficasse sob os cuidados de uma poetisa para se casar com ela assim que atingisse a idade de consentimento.
Deirdre cresceu, cada vez mais bonita, e certo dia se deparou com corvos se alimentando do cadáver de um cordeiro. Horrorizada, ela jurou que o amor só poderia entrar em seu coração se fosse por um homem cujos cabelos fossem pretos como a asa de um corvo e cujos lábios fossem vermelhos como o sangue de um cordeiro.
Não tardou para que ela conhecesse este homem: era Naoise, neto do druida que lançou a profecia. Com a ajuda da poetisa, os dois se conheceram e se apaixonaram perdidamente. No entanto, eles sabiam que o rei Conchobar não podia descobrir esse amor.
Juntos dos irmãos mais novos de Naoise – Ainlé e Ardán –, o casal fugiu para Glen Etive, onde viveram felizes por um tempo. Mas o rei, inconformado com a fuga, conseguiu descobrir onde a família estava. Por ser território da Caledônia, ele teve que bolar um plano.
O plano era enviar um de seus cavaleiros mais honestos, Fergus Mac Roth, dizendo que o rei perdoava o casal e desejava que voltassem para casa. Empolgados com a possibilidade de matar a saudade da terra natal e acreditando na reputação honesta de Fergus, eles resolveram voltar, ainda que Deirdre tivesse suas desconfianças.
Na volta, Naoise e seus irmãos, bem como os filhos de Fergus Mac Roth, acalmavam as suspeitas de Deirdre, já que, se o rei voltasse em sua palavra, seria uma desonra. O próprio Fergus não estava presente na celebração de boas-vindas, pois estava em uma missão real.
No entanto, no momento em que iam se reencontrar com o rei, ele ordenou que todos os seus cavaleiros capturassem Deirdre e matassem o resto. Naoise, os irmãos e os filhos de Fergus lutaram até a morte para defender Deirdre, mas nenhum sobreviveu, nem mesmo o seu amor.
O druida Cathbad, revoltado com a traição do rei, rogou uma maldição sobre o homem. Fergus, voltando da missão real, jurou vingança por seus filhos e foi servir a inimiga de Conchobar, a rainha Meabh.
Enquanto isso, Conchobar levou Deirdre para seus aposentos, mas ela se recusou a trocar qualquer palavra com ele durante um ano. Cansado, o rei a entregou para o guerreiro Eoghan Mac Durthact, que havia matado o amado Naoise. No caminho, Deirdre se jogou da carruagem e esmagou os próprios miolos.
Os restos de seu corpo foram enterrados junto ao de Naoise, de onde nasceram duas árvores entrelaçadas.
Amor x paixão x deslumbramento
Para entendermos as lições que esse mito nos traz, precisamos, primeiro, analisar a relação de Deirdre com os dois homens: Naoise e o rei Conchobar.
Vamos trabalhar aqui com três conceitos: paixão, amor e deslumbramento. De acordo com as definições do dicionário Oxford, paixão é o “sentimento intenso a ponto de ofuscar a razão”, amor é a “forte afeição por outra pessoa”, e deslumbramento é o “estado de espírito de quem é tomado por viva admiração”.
É possível dizer que tanto Naoise quanto o rei Conchobar sentiram paixão por Deirdre. Por mais que pareça estranho, precisamos entender que ambos deixaram a razão de lado por conta de seu fascínio pela mulher mais bonita da Irlanda. Naoise, por se colocar contra a vontade do rei ao fugir de Conchobar; e o rei, por ir contra a própria palavra e promover uma carnificina no próprio reino.
A diferença, talvez, é que a paixão de Naoise se transformou em amor. Juntos, eles construíram um relacionamento e nutriram entre si uma afeição muito forte. Coisa que não aconteceu com o rei Conchobar, que só buscava o status de se casar com a mulher mais bonita da Irlanda.
Mas o ponto-chave é: independentemente do sentimento que cultivavam em relação a Deirdre, nenhum dos homens jamais se importou com a personalidade da menina. A sua beleza estonteante era a única coisa com a qual se preocupavam, pois jamais perguntaram quais eram seus talentos, seus valores, suas ideias ou suas opiniões. Faltou, portanto, o deslumbramento típico de quem admira o outro pelo todo, e não apenas por sua aparência.
E é justamente aí que entra a discussão sobre a objetificação do corpo feminino.
As Deirdres contemporâneas
Quando falamos em objetificação, estamos nos referindo à supervalorização da imagem da mulher para além de todas as outras características que a definem como indivíduo. Peso, altura, tipo de cabelo e formato do corpo importam mais do que o que ela sabe fazer, os assuntos que estuda e os talentos que tem.
É o que vemos nas propagandas de cerveja, em que as garçonetes aparecem hipersexualizadas.
É o que vemos nos programas de auditório, em que mulheres aparecem dançando ao fundo apenas para mostrarem o próprio corpo.
É o que vemos no cinema, em milhares de estereótipos diferentes que limitam as mulheres apenas ao que aparentam.
É o que vemos nas redes sociais, com a exposição de corpos “photoshopados”, que jamais existirão na vida real.
Com base nessa e em tantas outras referências, as mulheres continuam sendo resumidas apenas ao corpo e à sua capacidade de satisfazer o prazer sexual masculino. Mesmo sem perceberem, elas se sentem impelidas a realizar procedimentos estéticos agressivos e se encaixar na moda do momento para serem aceitas por homens e também por outras mulheres. Muitas vezes, a cobrança por um suposto “autocuidado” vem de dentro da própria família.
Quem está fora do padrão é invisibilizada e sofre com a autocobrança. Como consequência, uma pesquisa publicada em 2013 na Psychological Science, mostra que as mulheres que mais se objetificam se tornam menos ativas socialmente.
Ou podem ainda ser vítimas da cultura do estupro, por serem vistas meramente como um objeto de prazer.
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Infelizmente, um mito tão antigo quanto o de Deirdre das Dores ainda é capaz de representar muito bem a sociedade em que vivemos. A objetificação feminina vem desde a antiga Irlanda até o atual Brasil.