Sobre o que te falo, ouvis, mas não te atei às palavras, apenas escutai com o lado de si que não pensa, mas que sente. Pois, o que digo em nada tem a ver com as palavras. A fonética sonora e ruidosa de suas interjeições vocais não será de valia nessa hora tão esperada. Do contrário, fazei assim: se curvai ao sentido das coisas. Se curvai humilde apenas, se curvai para na altura da criança voltar para perto da terra, seio que nutre toda a vida. E escutai quietinho, pequena criança. Escutai o que vos digo. Escutai com os ouvidos surdos da entrega. Sem drama, sem romance. Deixai que a verdade te preencha, como o ar em teus pulmões. Inspirai a verdade e expirai a mentira, pois não há espaço para as duas. É preciso escolher; enquanto se mantiver apegado às mentiras convenientes e cômodas, não poderás abraçar a verdade.
Escolhe, então!
Para escolher, no entanto, é preciso ter poder de escolha. E hoje, do modo que andas, nada escolhes. As decisões que acreditas serem suas, são escolhas cegas, folhas ao vento. Quem escolhe por ti são teus medos, teus anseios. A aversão que te repele e o desejo que atrai. E de onde vêm tais desejos? De onde surgem tais medos? Se fores capaz de recordar, lembrarás que cada impulso que lhe move hoje surgiu em sua tenra infância, das conclusões infantis e precipitadas que formavas a partir de tudo que percebias em volta. Cada palavra de seus pais, cada ameaça, cada carícia. Aprendeste logo cedo a manipular em troca do que querias, aprendeste a mentir para evitar o que não querias. E o contrário também funcionava, é claro. Criaste o personagem, camada por camada, na tarefa diária de se adaptar às exigências do mundo e o mantiveste com zelo e orgulho até esse momento.
A partir do fingimento te tornaste essa figura afetada, que cambaleia pela vida, desequilibrado, caindo com cada sopro repentino. Dramatizando e romantizando. Chorando quando devias se erguer, se erguendo quando deverias chorar.
O pouso da borboleta é suave sobre a flor, assim como o odor leve viaja com os ventos trazendo os insetos em busca do néctar. A vida acontece na delicadeza dessa relação, tanto dos fracos quanto na força dos brutos. Um bisão pisoteia o campo compactando a terra onde nem a relva é capaz de crescer. Sua brutalidade é bela a seu modo. Mas, tu, se homem fores, aprendentes a ser bruto, se mulher, deveis ser suave. Porém, diferente do bisão que só pode ser bruto e da borboleta que só pode ser bela, tu tens o dom de escolher. Sei bruto quando precisar do bruto, mas não esfregues sua brutalidade na vida ao seu redor, ninguém deseja ser pisoteado pelo bisão. E entregas tua beleza como o voo de uma borboleta.
Encontrais o equilíbrio entre força e suavidade, como uma rosa brotando na rocha, como um rio que hora corre feroz e hora encontra a calmaria. Seis o que sois por completo. Sei íntegro consigo. O homem superou os animais, mas é subjugado por si mesmo. O forte tem medo de baixar a guarda e o fraco de levantar a voz. Que o forte defenda o fraco e que o fraco embeleze o bruto.
A vida é esse giro entre a beleza e a força. Cada margarida delicada e sensível garante a vida que passa do mais fraco ao mais forte. Na base, os fracos sustentam a vida. Os fracos podem cair fácil pela mão do forte, porém no campo geral da vida são os últimos a cair, pois a tempestade violenta arranca pelas raízes a mais alta das árvores, enquanto a relva, ela apenas acaricia. E se o fraco morre o forte logo perece, pois, se as flores se forem, logo toda a vida que lhe acompanha seguirá com ela. A simbiose da vida não permite desunião, mesmo no conflito. Os animais disputam pela vida, porém só o homem em sua disfunção disputa pelo que não precisa. O adulto ri da briga infantil de crianças disputando por um mesmo brinquedo, porém não é capaz de rir da mesma infantilidade encontrada em suas disputas de adulto. Há nessas terras o suficiente para todos desde que vivam em harmonia, desde que se comprometam com o todo.
É permitido a um animal matar por disputa, tudo que lhe move é o instinto de sobrevivência, não há mais nem uma faculdade da qual ele possa se valer para garantir sua vida. Porém, o homem é crescido, não lhe cabe mais ato tão infantil, a sobrevivência há muito tempo não é mais um obstáculo a ser vencido, embora ele ainda não tenha percebido. Ao homem é entregue a capacidade de escolher, mas só se pode escolher como um homem se este se ver como tal e não se confundir com impulsos que lhe movem pelos campos do medo e do desejo.
O homem deve então se descobrir como é, hoje vives como um homem mecânico ainda apegado a impulsos primitivos. E não me entendas mal, não há nada de errado com isso, com o primitivo, assim como não há nada de errado com a ingenuidade infantil, porém é chegada uma hora que a criança deve crescer e superar essa ingenuidade. Assim se faz contigo. Até este momento cresceste apenas em corpo e, porque desta faculdade não tens poder de escolha, o corpo cresce a despeito de sua vontade, do contrário sabemos que muitos nem nesse quesito cresceriam.
A mente humana é capaz de abarcar o mundo, porém é incapaz de ir além. Ela é um barco, e um barco só pode atravessar a superfície, para ir mais fundo é necessário outro veículo.
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Esse veículo não tem casco, nem motor. Para explorar as profundezas é necessário se entregar, deixar as profundezas te abraçarem. Teus olhos não valerão de nada nas profundezas escuras, seus ouvidos serão inúteis na quietude abissal, a água gélida amortecerá seus sentidos. Cairás em um nada, um oceano vazio. Não encontrarás um fundo, porém verás sua Verdade. Sua Verdade plena, e voltarás completo. Um ser humano.