Lembro-me bem da última vez que a vi, pairando em sua habitual petulância pelas ruas dessa cidade, estreita demais para conter a personalidade expansiva do seu jeito atrevido e instigante. Ela trajava um vestido leve de verão, daqueles que revelam a sensualidade da mulher de maneira inocente e, ao mesmo tempo, estimulante. Nos pés, sapatilhas comuns e bem surradas protegiam a sola, que tocava o chão sem pressa.
O ar ao seu redor se preenchia de uma bruma aromática que anunciava sua chegada a qualquer um que já a conhecesse, fosse na intimidade ou na distância dos cumprimentos cordiais e ensaiados. Porém, o que causava em todos um efeito centrífugo era sua face alongada, de traços arredondados, herdados de seus ancestrais pertencentes às variadas e antigas etnias que ajudaram a moldar o rosto do povo que ali preenchia as terras com sangue, suor e lágrimas.
Esse rosto carregava, por onde passava, um sorriso provocante, que causava no mais comum dos homens um temor que superava o usual desejo fugaz que, quando se detinha em seus olhos, desvanecia, sendo tomado de súbito pelo medo já mencionado. Pois, sim, na verdade, eram os olhos que causavam esse pavor.
O sorriso dizia um largo e sonoro “olá” ao mundo, saudava todos e todas ao redor, mas os olhos, não. Os olhos diziam algo mais. Não que o sorriso mentisse; não, ela saudava toda a vida com reverência e uma certa inocência que era notável no sorriso. Porém, nos olhos, um brilho estranho cintilava, e isso causava medo em todos nós. Claro, ninguém admitia esse medo, e nem sequer queria olhar para ele, mas a verdade é que estava lá.
Eu sabia disso porque me apavorava desde menino, quando ela, ainda menina, já causava o mesmo efeito em qualquer um que fosse. Na época, eu achava que era só comigo, e certamente qualquer um que percebesse o medo a lhe salpicar as veias ponderava se era só nele que aquele olhar causava tal desconforto. E, ao constatar que ninguém reagia àquele brilho indagante, se calava, fingindo que nada sentia.
Foi assim comigo, e tem sido assim desde então. Só que, há muito, aprendi a perceber, nos sorrisos afetados e nos cumprimentos polidos, que todos ao redor se esforçavam para disfarçar esse medo, e esse esforço era principalmente para que o disfarce não fosse notado, especialmente por eles mesmos. Assim, se criava a atmosfera em torno da bela “Dona da Rua” (como era chamada por seus admiradores), onde quer que ela estivesse.
Naquela última tarde que passei com ela, eu finalmente percebi. Percebi que medo era aquele, que desconforto era esse que me sacudia em espasmos contidos sob a pele tensa.
O brilho naqueles olhos era um simples e incontido brilho de vida, de gente viva, e era só isso. Foi duro quando notei isso. E o que tem a pessoa ter um brilho de gente viva nos olhos? O que assusta nisso? Deve ser o que você se pergunta, já que foi o que perguntei a mim mesmo, quando alcancei tal percepção. E é aí que vem a parte assustadora: o assustador é perceber alguém vivo na sua frente e, por comparação, perceber que seus próprios olhos não brilham nem um décimo daquilo. É perceber o que é um ser humano vivo e se dar conta de que você é um ser humano morto, ou ao menos parte morto. E era essa a percepção tácita que ninguém queria ver. Era se perceber morto diante de alguém tão vivo.
Sim, aquilo me marcou. Que difícil é lidar com alguém que tem tanto mais que você. Um miserável não consegue viver perto de um milionário sem se sentir um miserável, mas entre os seus ele não se vê como tal. E o que dizer de uma riqueza que você sempre achou que tinha, tanto quanto qualquer outro, até que uma milionária chega em suas vestes reais, limpas, brilhantes, e todos começam a se perceber miseráveis? Ninguém nem sabia que aquela riqueza toda existia, e ninguém sabia de onde vinha tudo aquilo. Uma moça comum, filha de gente comum, de tão pouco valor quanto qualquer um ali, com aquela riqueza nos olhos?
Ninguém sabia lidar com isso, e então todos, salvo alguns apreciadores daquela riqueza enigmática, fizeram o que sempre se faz com o que não se entende e lhe causa temor: criaram histórias mirabolantes e estúpidas sobre a dona de tanta riqueza. E tudo era válido, já que a verdade nunca foi algo que homens e mulheres realmente se preocupassem em carregar consigo.
Então, a mulher mais rica da vila, mais rica que qualquer rei ou rainha, se tornou, com o tempo, uma mera fofoca despropositada que corria pelas línguas dos cidadãos sem brilho nos olhos. Assim, era mais fácil lidar com o pavor sem precisar olhar para sua própria miséria.
E quem disse que a Dona da Rua se importava com tudo aquilo? Ela sabia de tudo, mas o que importava? Ela carregava a verdade sobre as coisas, com a vivacidade naqueles olhos cintilantes. Pouco lhe importava se a vila, em sua maioria, lhe virava a cara e retorcia os olhos. Ela tinha o amor real de verdadeiros amigos e amigas que a apreciavam de maneira quase devota e aprendiam com ela a saltitar pela vida com seu vestido leve e esvoaçante.
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Esvoaçante e leve, foi a imagem que ficou gravada em minhas retinas quando ela partiu naquela tarde branca de fim de inverno. Ela correu em direção ao trem, saltitando pelos paralelepípedos, rodopiou girando sua grande e vazia mala remendada, parou em frente ao vagão, nos endereçou um último olhar.
O brilho instantaneamente nos alcançou, penetrando nossas retinas, mergulhando em nossas pupilas e iluminando nossas mentes, já saudosas de sua presença.
Em seguida, ela se jogou no trem com sua malona, indo se espalhar pelo mundo lá fora, que comportava com mais folga a vida expansiva que naquele corpinho queimava.