A morte e o morrer, ao mesmo tempo que nos assusta, nos atrai. Afinal, seus mistérios estão para sempre guardados e por mais que existam religiões que digam o que acontece no pós-morte, de fato nunca saberemos, pois as respostas são sempre referentes às crenças de cada um.
Ao buscar essas palavras no dicionário Houaiss (2004), encontramos para a MORTE os seguintes significados – 1 fim da vida, interrupção definitiva da vida humana, animal ou vegetal; 1.1 cessão completa e definitiva da vida; 1.2 separação entre alma e o corpo, que marca a passagem a outro estágio espiritual ou à vida eterna; etc. E para o MORRER – 1 perder a vida, a existência; 1.1 finar-se, falecer, expirar; 1.2 perder a vida sob determinada condição ou circunstância; 2 perder a força, o vigor, o brilho de modo lento e gradual; etc.
Mas o que é morrer para você? O que entende e/ou concebe por morte, por morrer? Caso nunca tenha pensado sobre isso, sugiro que antes de continuar a leitura pare e reflita, procure responder O que é morrer? Para você, sem nenhum compromisso com certo ou errado, com o fazer sentido ou não, apenas se permita pensar e sentir sobre isso.
Será o fim ou o começo? Será que é doloroso ou leve? Será que é rápido ou lento? Será que ela só acontece quando nosso corpo físico morre? Será a morte uma só durante a vida ou podemos morrer algumas vezes enquanto vivemos?
Mais vezes do que podemos contar
Assistindo à série The OA, logo no primeiro episódio me deparei com a frase “todos nós morremos mais vezes do que posso contar” e, poucos dias depois, participando de uma formação em Yoga Restaurativo, o primeiro asana (postura) que nos foi ensinado e que vivenciamos foi o Savasana – postura do morto, do cadáver. Percebi então que a morte e o morrer são coisas mais corriqueiras do que imaginava. E que ela não se limita ao evento que marca nossa morte física, aquela do qual nada sabemos e ou saberemos.
A morte e o morrer estão presentes no decorrer de nossa história e, sim, morremos mais vezes do que pensamos. Morremos como embrião para nascermos como bebê, morremos como crianças para nascermos como adolescentes, morremos como adultos para nascermos como velhos. Assistimos à morte de nossa vida de solteira(o) quando dizemos sim para outra pessoa, assinamos a morte de uma carreira quando descobrimos que somos melhores e mais felizes fazendo outra coisa. Somos seres cíclicos e vivenciamos a morte e o morrer centenas de vezes.
Por que então não os encaramos como algo natural? Por que essas duas palavras nos incomodam ou assustam tanto?
Talvez porque morte e morrer significam transformação e dificilmente desejamos passar por isso. Falamos, sim, diariamente que queremos que as coisas mudem, mas não queremos nos transformar para que as coisas mudem. Não gostamos de correr riscos, de nos sentir frágeis, inseguros e nem de termos trabalho, coisas que são inevitáveis em qualquer transformação. Assim, passamos grande parte dos dias apenas dizendo que queremos mudanças, mas apenas se elas não vierem acompanhadas de responsabilidades pelas nossas escolhas.
No primeiro texto que escrevi este ano aqui no Eu Sem Fronteiras, chamado 2019, sugeri que fizesse pequenas listas ao longo do ano com 3 desejos cada uma e que diariamente olhasse para elas. E fiz essa sugestão de poucos desejos em algumas listas no decorrer do ano porque sei o quanto é difícil mudar e para realizarmos esses desejos invariavelmente teremos que morrer em muitos aspectos.
Se você leu esse texto e fez sua lista, pegue-a e veja se já realizou algum deles e se para essa concretização não precisou mudar algo em sua forma de ver e sentir o mundo? Se não conhece esse meu texto, não se preocupe, basta pensar em um desejo e responder honestamente por que ainda não o conquistou? Somos nossos maiores amigos e inimigos e só morrendo algumas vezes podemos diminuir essa falésia que construímos entre nossa LUZ e nossa SOMBRA.
Mas afinal, que morrer é esse de que estou falando? É o deixar morrer e entregar para a morte o que nos limita e o que nos incomoda, para então renascer de outra forma e com um novo olhar ou porque não dizer em nossa verdadeira essência.
Como fazer isso?
Só você pode dizer! Posso citar coisas como o silêncio, processo de análise, autoinvestigação, rodas de mulheres, rituais, enfim são muitas as maneiras de olharmos para dentro e todas elas são boas ou ruins depende do que te faz sentido, do que te toca. É preciso disposição para deixar morrer nosso egoísmo, orgulho, nossos medos e acomodações.
Esse caminho pode ser trilhado sozinho ou com alguém que te acompanhe, mas essa pessoa não pode ocupar o lugar de Sábio dizendo o que fazer e o que deixar morrer. Esse SABER É SEU! Essa companhia te ajudará a questionar, a testar novos ângulos, servirá de testemunha das mudanças já ocorridas, será um alento nas curvas mais difíceis e um olhar de confiança, nada mais.
Esse caminho a ser trilhado na maioria das vezes é longo, pois envolve o enxergar e não ver, o ver mas não querer saber, o saber mas não fazer nada com isso até que algo acontece e nos convoca a tomar uma atitude. Mas ainda assim na maioria das vezes voltamos ao primeiro estágio do não ver.
O tempo passa, caminhamos e outro acontecimento (às vezes bem parecido com o anterior inclusive, pois vivemos repetindo, repetindo e repetindo), nos convoca novamente a uma ação e, então, às vezes seguimos e outras optamos pelo retorno de novo. E assim vamos vida afora, tentando não nos responsabilizar e culpando os outros por tudo o que nos acontece.
O problema é que quanto mais retornos pegarmos, maior será o encontro com a morte
Num dia qualquer, quando menos esperamos alguma coisa acontece, a gota d’água que faltava para transbordar o copo cai e aí a vida nos obrigará a mudar, a fazer morrer nossas ilusões e nessa hora o morrer será trágico, dolorido demais, pois será repentino e sem escolha. A vida é soberana e nos dá muitas chances, mas às vezes nos prega peças das quais não saímos ilesos!
No entanto, se permanecermos atentos ao caminho e, em vez de retornarmos a cada sinal fechado, estacionarmos nossos corpos, fecharmos nossos olhos e olharmos para dentro sem medo e sem apego ao nosso modelo atual, a morte nos será mais leve, pois saberemos e acessaremos aos poucos e a cada parada o que deve morrer ali, o que deve ficar naquele canto da estrada.
Às vezes será a teimosia, outras a ingratidão, a solidão, a avareza, a gula, a impaciência,… tantas são as coisas que precisam morrer em nós. E, quando acolhemos a morte de cada uma delas, o percurso será contínuo e sem grandes solavancos. A morte e o morrer então passarão a ser companheiros de viagem, companheiros confiáveis, já esperados e testemunhas de nossa evolução.
Fica o convite
Morra e morra muitas vezes porque em cada morte há mais vida, em cada morrer há o renascimento de quem tu és! “Terei que morrer de novo para de novo nascer?” Aceito.
Vou voltar para o desconhecido de mim mesma e quando nascer falarei em “ele” ou “ela”. Por enquanto o que me sustenta é o “aquilo” que é um “it”. Criar de si próprio um ser é muito grave. Estou me criando. E andar na escuridão completa à procura de nós mesmos é o que fazemos. Dói. Mas é dor de parto: nasce uma coisa que é. É-se…” Clarice Lispector em Água Viva, páginas 41 e 42.
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