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Ateísmo e contradições semânticas

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Amigo leitor, gostaria que lesse com atenção e imparcialidade. Assim como eu comecei a escrever a partir de pesquisas, com imparcialidade, faço registrar aqui para eternidade na Terra este artigo com um espírito independente e filosofal, portanto leia com paz interior sem impedimentos. Boa leitura e espero que goste.

Na atual sociedade multifacetada e midiática, múltiplas são as processualidades no modus de crer e de (des)crer. Variadas exegeses foram oferecidas para explicar o mundo. Muitas são, portanto, as epistemologias filosóficas e científicas, os saberes, as experiências e as religiosidades. Nesse contexto de pluralidades, o ateísmo — tema polêmico, delicado e tão antigo como novo — destaca-se como uma doutrina e uma prática sociocultural “não religiosa”, desinstitucionalizada e agnóstica, e desponta como um campo de investigação no qual se apresentam as mais diversas discussões, opiniões e concepções teóricas.

Desde a tradição clássica, quiçá de tempos subtraídos pela memória dos ancestrais, às contemporâneas experiências globalizadas, o ser humano vem recebendo diferentes formas de investimentos para justificar a sua vida terrena e além dela, a exemplo de dogmas religiosos e científicos e da própria proposta do mercado de relações fluidas. Assim, o ideário explicativo da dupla realidade (a vida e o que há depois da morte) compõe-se de racionalização, imaginário, crenças, metafísica, desejos, sonhos (pesadelos), religião sem o religioso, mercado religioso, filosofia, arte, poética, estética, racionalidade virtual, descoberta científica da física quântica etc.

Com isso, tanto a metafísica divina quanto a metafísica filosófica se (re)inventam em significativas interpretações e denunciam ressignificações semânticas sobre o sagrado e o profano, antes possuidores de fronteiras nitidamente delimitadas, e que passam, na atualidade, a ter relações justificadoras materiais-espirituais e espirituais-materiais para satisfazer de imediato subjetividades do religioso, do crente sem religião, do descrente e do ateu. O vir a existir talvez seja uma condição humana, não uma finalidade em si mesma.

Nas interfaces da razão, fé, crença e desejo de criatividade humanos, é de se perguntar que traços há no ateísmo que possam implicar significados comuns com as religiões reveladas e o que essas religiões guardam de aspectos característicos do ateísmo, pressupondo-se que a crença em algo tanto fundamenta as religiões reveladas quanto o ateísmo. As religiões reveladas baseiam-se em verdades absolutas que constituem e determinam o conteúdo do modus de crer, delimitando a tessitura das religiosidades tradicionais e contemporâneas; enquanto o ateísmo, contrastando com a religiosidade institucionalizada de Deus único — vivificado como ser supremo na metafísica divina –, resulta da indiferença do indivíduo em relação à religião. O ateísmo, de regra, traz a ideologia de que a matéria, para existir, independe de um princípio superior e eterno. Por outro viés, o transcendente, para o teísta, muitas vezes não religioso, é de outra ordem, a da metafísica filosófica, qual a do ateu, que possui um modus de crer em algo (ou descrer), em doutrinas e dogmas constitutivos de instituições religiosas.

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Considerando a possibilidade de um movimento dialético crítico-desconstrutivo (e não destrutivo) acerca das estruturas duais, polarizadas e dicotômicas da realidade social observada, extensiva às religiões e ao ateísmo (crer, não-crer, descrer), busca-se com este estudo fazer uma análise teórica de algumas noções e características fundamentais do fenômeno religioso e do ateísmo, objetivando a identificação de que “crer em algo” consiste em formas de crença ou (des)crença que entrecruzam esses dois processos socioculturais (religiosidade e ateísmo).

Pela concepção estruturalista, as polaridades conceituais (natureza-cultura, alma-corpo, homem-mulher, céu-inferno, razão-fé, religião-ateísmo etc.) dividem e hierarquizam o pensamento, a ciência, a religião e a arte, seja para definir subjetividades de um jeito de ser e conviver, seja para classificar o mundo cientificamente, seja para estabelecer uma distribuição de poder. Entretanto a dinâmica das relações sociais promove outras realidades, desafiando estudos criativos por outros moldes paradigmáticos, a exemplo da teoria da desconstrução de Derrida, da teoria da modernidade líquida de Bauman, da religião invisível de Luckmann, da sociedade transparente e do religioso sem religião de Vattimo, da invenção do cotidiano de Certeau ou da religião em movimento de Daniéle Hervieu-Léger.

A partir de conceitos do ideário da sociologia e do fenômeno religioso, a primeira parte deste estudo aborda as religiões reveladas: crenças e modus de crer, destacando algumas formas religiosas institucionalizadas que tradicionalmente definem um sujeito crente por força da sua concepção ideológica, a fim de entender, por outro lado, a deslegitimização da fé religiosa no ateísmo, que, apesar da negação de Deus ou de qualquer ente transcendente, aporta traços característicos de múltiplas expressões de crenças. Por fim, vem o item contradições semânticas entre religiões reveladas e ateísmo, que não significa negação e/ou oposição de postulados, mas tem por objetivo apresentar outra forma de abertura, que amplia a concepção de crenças e modus de crer para compreender a existência.

As origens, crenças e desenvolvimento das grandes religiões do mundo passaram por diferentes etapas de concepções para compreender o Universo e a natureza dos seres humanos como pessoas capazes de se elevar espiritualmente (religiões de diferentes dogmas e crenças), em pensamento (filosofias diversas) e no exercício da razão imanente e experiencial (as ciências e seus desdobramentos técnicos), rompendo primitividades instintivas e barbáries, em nome da construção da sociedade/ comunidade, e criando, por eleições culturais arbitrárias consensuadas, conceitos acerca da verdade da vida e das múltiplas existências que nela se compõem de forma plural. Assim, contraditoriamente, a realidade do Universo e dos seres humanos passou a ser fragmentada, dividida e estruturada, devido a uma busca profunda de unidade de sentidos, mesmo que em polaridades: bem-mal, sagrado-profano, razão-fé etc.

Em qualquer das fases do desenvolvimento humano e religioso e do progresso científico, os indivíduos, possuidores de subjetividades e de culturalidades, ainda que invisibilizados em muitos momentos da história no jogo de poder, manejaram ideias e pensamentos para decifrar o limite da razão, no seu sentido filosófico e na acepção mais científica. A religião, antes tida como um conhecimento acerca de tudo, desliga-se da filosofia, que estava a seu serviço, e também passa a ser algo separado em relação à ciência. A comunidade científica define a sua epistemologia de exigência de método, observação e comprovação de objetos. Ao passo que a religião continua com a sua metafísica e dogmas absolutos da verdade, ditada por um Criador (Deus) supremo e definidor (julgador) das ações humanas.

Nas sociedades ditas cristãs, impõe-se a veneração ao ancestral primeiro: Deus. Abre-se assim o mecanismo para compreender a dimensão espiritual dos seres humanos. Isso depois de ultrapassadas as crenças no panteão de adorações de ídolos e deuses. Surge então a institucionalização da religião, que se erige a partir das narrativas fundantes (mitos) como teologia que se motiva em dogmas e ritos; ritualiza-se a experiência religiosa.

De modo ilustrativo, a religião, desde as sociedades originárias em Israel, forma um corpus arbitrário na comunidade como meio de compromisso social e religioso. Nasce o judaísmo. Nele estão os dogmas assimilados nos pilares da fé em um Deus único, cuja narrativa se fundamenta na Torá (Deuteronômio 6,4- 5). Do seio do judaísmo, os cristianismos primitivos mantêm a experiência do Deus único como referência de unidade espiritual e salvação, a partir das narrativas oriundas da memória de Jesus, que encarnava o Deus vivo, morto e ressuscitado.

Sem olvidar a espiritualidade histórico-temporal de antigas civilizações, como a dos povos africanos e indígenas de diferentes continentes que cultuavam (ou ainda cultuam) ancestrais e mitos diversos; de alguns povos árabes e muçulmanos, que têm em Alá o Deus Sagrado, anunciado nas narrativas do profeta Maomé pelo islamismo; da Índia, com a diversidade de deidades que constituem um sistema social e religioso à luz do hinduísmo, formado por Brahma; do budismo, que indica um caminho prático de iluminação e libertação, com alcance meditático e resultado em busca do nirvana. Essa diversidade de concepções religiosas demonstra que os indivíduos constituem uma organicidade múltipla de índole cultural, cuja dimensão espiritual faz parte da cosmologia de sua existência. Albert Schweitzer, refletindo sobre o tema aprendendo sobre a fé de cada um, afirma que “as diversas formas através das quais a verdade foi revelada, praticada, e que foram aceitas, estabeleceram, sempre, as características da busca universal”.

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Em busca de compreender a natureza do Universo, a metafísica dos filósofos ocidentais, com as suas metanarrativas, deixou um legado dicotômico: a relação com o saber, um mundo sem Deus, em que o materialismo se propôs a dar respostas às inquietações e explicar a natureza humana; e, por outro lado, o indivíduo e sua crença religiosa, um mundo com Deus, no qual o indivíduo transfere a sua precariedade humana a outrem (um ser divino: Deus, deuses, ancestrais), tendo a religião como “um esplendor” ou como “o ópio do povo”. Contrastando com essa concepção, Herculano Pires, numa visão pedagógica, faz a seguinte reflexão:

É assim que o materialismo aparece na História, como uma flor de estufa, um produto artificial da razão, elaborado pelas elites intelectuais, sem jamais penetrar as camadas profundas da vida social. É por isso que nunca houve e jamais haverá um povo materialista e ateu.

A cosmovisão do mundo humano e da divindade apresenta-se sem fronteiras e sem divisões para os poetas, cuja linguagem é a beleza, o prazer e a felicidade — aspectos que integram o manancial das religiões ou o atual maná dos religiosos sem religião, inclusive dos ateus.

Dando sentido às vozes do poder sociocultural, a religião, no seu aspecto institucionalizado depreendido pelas ciências humanas, “só pode ser um fenômeno humano, ao mesmo tempo psicológico, histórico e social”. Criam-se igrejas. Definem-se fiéis. Estruturam-se conteúdos dogmáticos de fé. Escrituram-se ritos. O lugar e o significado disso eclodem nos mais complexos discursos de fundamentalismos religiosos. Em nome de Deus, sacralizam-se pessoas e ambientes e santificam-se pessoas mortas que realizaram obras milagrosas consoante cânones do catolicismo. Mas também se persegue e mata em nome de Deus, como nas denominadas guerras santas.

Com visão funcionalista, Émile Durkheim explica que “uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral, chamada igreja, todos os que a ela aderem”. De modo que o sagrado e o profano são duas realidades separadas no mundo ordinário e que auxiliam o indivíduo a superar a sua rotina por instantes extraordinários promovidos pelos rituais nas cerimônias religiosas, o que, dialeticamente, dá sentido de vida ao fiel, pois a religião cria coesão social, refazendo-se constantemente. Noutras palavras, afirma Durkheim, “se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade é porque a ideia de sociedade é a alma da religião”.

Com o avanço da formação do espírito científico na metade do século XX, com a teoria da relatividade de Albert Einstein, a ciência divide a crença, mas ao mesmo tempo lança novas propostas de unidade a serem equacionadas: o mundo não pode ser explicado somente pelo ferramental da razão científica. A física quântica identificou novas aberturas e outras conexões na natureza do ser e do Universo.

A razão e a fé, a priori, são traduzidas como singularidades separadas por hermenêuticas inconciliáveis — verdades, portanto, não-absolutas:

Ao olhar a história da igreja moderna — e falo aqui sobretudo da Igreja Católica, mas penso que também não estou muito distante da história das igrejas cristãs em geral –, vê-se que o desafio principal que ela teve diante de si foi a pretensão da ciência de valer como única fonte de verdade.

Todavia nenhuma das duas crenças separadas (ciência e religião) logrou responder plenamente à busca da explicação da natureza humana e do próprio Universo — o que induz a dizer que ambas as crenças são, pois, projetos de aberturas que se inscrevem historicamente, provocando o indivíduo a rever ou transformar a sua forma de crer.

Weber, dando primazia à razão e seus mecanismos na cultura moderna, imprimiu outro modo de interpretar o mundo: a predominância das ações racionais está no indivíduo. É o indivíduo que, em função de seus próprios conhecimentos e/ou valores (estéticos, éticos, religiosos, sociais, culturais, políticos), dá sentido à vida e espera sentidos oriundos da expectativa e da reação da dimensão social. Na visão weberiana de racionalização, a religião sofre uma mudança de significado sobre as intermediações com o sobrenatural e passa a ser centrada no indivíduo. O carismático religioso firma-se como um agente de dominação, cuja legitimação é estabelecida pelo próprio carisma (distinção por qualidades pessoais ou por dons), com probabilidade de obediência.

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Isto é, nenhuma dominação contenta-se voluntariamente com motivos puramente materiais ou afetivos ou racionais referentes a valores, como possibilidades de sua persistência. Todas procuram despertar e cultivar crenças em sua ‘legitimidade’.

Diversas outras formas de legitimação da religião foram manipuladas pelo jogo de poderes políticos e religiosos, e “as técnicas do ‘fazer crer’ desempenham um papel mais decisivo onde se trata daquilo que ainda não é”. Criam-se — de acordo com Certeau — instituições do real como formas visíveis da dogmática contemporânea (mídia, igreja, política, economia, esporte etc.). Entretanto Certeau também denuncia que vozes cotidianas têm o seu sentido no mundo da crença e podem transformar as histórias do crer, inclusive desvinculando-se de instituições religiosas. Ou seja, “o religioso não está no crer (modo), nem no crido (conteúdo), mas nas articulações entre ambos, nas formalidades que produzem conjuntamente, relacionando-os com as demais condutas”. E “a descristianização não é, pois, necessariamente uma extenuação do crer, mas uma saída do religioso”.

As Igrejas, e até as religiões, seriam não unidades referenciais, mas variantes sociais em suas relações possíveis entre o crer e o crido. Elas têm estado em configurações (e manipulações) históricas particulares de relações que podem estabelecer modalidades (formais) do crer e do saber com as séries (quase lexicais) dos conteúdos disponíveis.

Pela secularização, decorrente dos meios de modernização socioeconômica e cultural, do avanço de liberdade de crenças, do pluralismo religioso e da consolidação de um mercado religioso global, segundo as críticas feitas por Ricardo Mariano, as religiões sofrem abalos em suas instituições e se reinventam ritualisticamente com o objetivo de permitir o trânsito do religioso e do não religioso em seus espaços de atuação da fé.

Também é de se pensar que o poder não estaria somente com as instituições, mas com o indivíduo, que busca sentido para a sua forma de existir, denotando-se que a força institucional levantada em nome da religião e de imposição de dogmas de fé reconfigura-se em razão dos fluxos permitidos pela sociedade informacional, que provoca um chamamento individual para escolhas de suas próprias crenças.

Assim, a legitimação da fé, outrora institucionalizada, desloca-se, sem a ruína da igreja, para legitimar outras opções de religiosidade do indivíduo, com base no fato de que cada um tem o direito de desenvolver a sua própria forma de vida, fundada sobre sua própria percepção daquilo que realmente é importante ou tem realmente valor. Os seres humanos são chamados a serem fiéis a si mesmos e a buscarem a própria autorrealização. Em que isto consiste? Cada um, homem ou mulher, deve em última análise decidir por si.

A ideia de civilização traz em si a importância de ações humanas (religiosas, políticas, culturais e sociais) serem forças-motrizes da estruturação dos grupos, comunidades e nações — obviamente que nessas ações encontram-se outras ações que impactam e geram conflitos ou guerras, quando a tolerância deixa de ser condição ensejadora do estabelecimento pacífico e de respeito às diferentes crenças, sejam elas de natureza religiosa, sejam de cunho científico. A ciência também se estrutura como um lugar de crenças, na medida em que delimita suas fronteiras na dinastia da epistemologia do conhecimento, afastando a metafísica (filosofia) e a religião.

Muito provavelmente, para se afastarem os efeitos da barbárie ou o seu retorno, a tolerância pode ser o liame para compreender a natureza múltipla das crenças. Nesse aspecto, o ateísmo, como uma das esferas definidas pela negação da fé em um Deus das religiões reveladas, foi tido como um período de movimento contra a igreja, a política, o estado, e o “ateu um inimigo irrecuperável da humanidade”, […] “o elemento excluído”; porém, na verdade, o ateu é o outro diferente, se colocado na perspectiva da sociedade multicultural, que se enaltece com a alteridade.

Segundo Walzer, a tolerância de escolhas individuais e das versões personalizadas de cultura e religião constitui o regime máximo (ou mais intenso) de tolerância. Mas não está claro se o efeito a longo termo dessa maximização não será a diminuição ou mesmo a dissolução da vida dos grupos.

No campo da religião e mesmo do ateísmo, a diferença não é caso que implique apenas tolerância, mas motivo de perseguição em prejuízo ao direito de esclarecimento. Dizendo que a tolerância não é apenas virtude do indivíduo, mas detentora de caráter eminentemente político, Adauto Novaes elucida:

A prática da tolerância exige, assim, mais do que a passiva aceitação de conviver com a presença da multiplicidade humana. Ela requer a contínua construção de uma identidade coletiva, que não pode jamais pretender ultrapassar sua própria particularidade e por isso não pode pretender ser válida para todo o sempre. O tolerante que apenas assume sua condição de inércia em face do resto do mundo em que vive se esquece da força inequívoca de todos os mecanismos de exclusão, eles mesmos produtores de sentido. A diferença, como indica Walzer, exige a tolerância, mas também que ela seja desenhada com todas as cores de nossa própria humanidade, para que não seja empurrada para o cinza indistinto da barbárie.

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Diante do estruturalismo hierarquizado dicotômico, polarizado, oposição bipolar da filosofia, do pensamento, da ciência, da sociedade, da religião, os pensadores modernos e críticos da metafísica e do próprio estruturalismo funcional, como Derrida, Bauman, Vattimo, apresentam que o indivíduo, no projeto do liberalismo da sociedade contemporânea, pode, entre “dizer sim” ou “dizer não”, optar por outra alternativa, saindo da imposição de escolha entre um polo e outro da dicotomização da verdade ou da realidade. O real tem outras nuances, cujas incertezas levam o ser humano a fazer uma terceira escolha, mobilizado por novas abstrações que passam a fazer sentido, segundo a ideia caracterizada na teoria da desconstrução de Derrida.

Quanto à religião de mero culto e de ordem moral, Derrida assevera que:

Em relação a todas essas forças de abstração e dissociação (desenraizamento, deslocalização, descarnação, formalização, esquematização universalizante, objetivação, telecomunicação etc.), a “religião” encontra-se ao mesmo tempo no antagonismo reativo e supervalorização reafirmadora. Exatamente onde o saber e a fé, a tecnociência (“capitalista” e fiduciária) e a crença, o crédito, a fiabilidade, o ato de fé terão estado sempre comprometidos, no próprio lugar, no cerne da aliança de sua oposição. Daí a aporia — uma certa ausência de caminho de via, de saída, de salvação — e as duas fontes.

Na mutação da fidedignidade religiosa, a segurança ontológica de previsibilidade da rotina da vida diária, à luz de Anthony Giddes, entra em oposição com a ansiedade existencial que evidencia que “a aptidão da rotina diária para autoperpetuar-se tem limites intransgredíveis no tempo”. Bauman sugere que “a mais importante das realizações da rotina diária é precisamente cortar as tarefas da vida conforme o tamanho da autossuficiência humana”. “Talvez no caso da religião mais do que em todos os outros casos, porque a religiosidade não é, afinal, nada mais do que a intuição dos limites até os quais os seres humanos, sendo humanos, podem agir e compreender”. E em outras palavras:

A ideia da autossuficiência humana minou o domínio da religião institucionalizada, não prometendo um caminho alternativo para a vida eterna, mas chamando a atenção humana para longe desse ponto; concentrando-se, em vez disso, em tarefas que os seres humanos podem executar e cujas consequências eles podem experimentar enquanto ainda são “seres que experimentam” — e isso significa aqui, nesta vida.

Do “desencantamento do mundo” pela racionalização de sentido material, segundo Weber, ao “encantamento do mundo” com as possibilidades finitas da autossuficiência humana, à luz das reflexões derridadianas, as crenças, fundamentais pela tolerância e reconhecimento das diferenças de credos, evidenciam-se com dupla natureza nas religiões reveladas, pois o crente que separa a sua teologia em relação a outro crente de dogma diferente acaba, num sentido separatista, agindo pelo mesmo sentido que o ateísmo, com sua espiritualidade singular (crença ou descrença), confrontando-se com a religião cristã. “A complexidade e as múltiplas nuances entre correntes filosóficas e religiosas mostram quão vagos são os limites que separam a crença da descrença”. Logo, a religião e o ateísmo não são duas realidades totalmente separadas. Há crenças ritualizando esses dois fenômenos.

Repare com Nilo Deyson: na história da humanidade, relata-se que, desde a antiguidade, o indivíduo traz consigo o desejo da criatividade como mola propulsora de construção de realidades, e em razão disso constrói uma sociedade cultural, integra-se em grupos e em comunidades, tendo por elo códigos arbitrários, porém ele também é capaz de destruir sistemas de existência e de reconstruir outros para dar curso à vida. Nesse emaranhando de fatores materiais ou imateriais, a decifração do Universo, do mundo e da natureza desafiou a razão humana para dar sentido a tudo que poderia estar ao alcance do pensamento e do ato de fazer e crer.

A filosofia da inerência do próprio ser — metafísica como um ápice do saber — serviu à teologizada cosmogonia; à religião em seus diversos momentos de diálogo entre o humano e o divino; à arte como criatividade, que pode implicar respostas sem se propor a isso; à poética, que revela o simbólico e as imagens para desvelar o indizível; à ciência para que ela desse respostas da verdade, mesmo subtraindo a força do real; e, por que não dizer?, à própria filosofia racional. Noutras palavras, “o homem é um animal metafísico”. Portanto ele se constitui tanto de saberes físicos como de verdades transcendentes e a crença em Deus foi um fator poderoso de racionalização e disciplina que permitiu ao homem sair da selva primitiva do bellum omnium contra omnes, além de ter favorecido a constituição de uma visão “científica” do mundo, que abriu caminho à técnica, com seus efeitos de assegurar e facilitar existência.

Nesse percurso, a filosofia clássica greco-romana se separa da religião e da ciência, definindo-se duas grandes fronteiras da verdade: razão e fé. Facultou-se também a abertura de novas compreensões em busca da verdade — empreitada que ainda perdura. Ademais, a filosofia também não logrou apresentar definição para o ateísmo — “O filósofo começa por uma constatação: o ateísmo está por toda parte difundido; tais doutrinas foram, ‘por assim dizer, semeadas entre todos os homens’”.

As frestas que ocorrem tanto na ciência (razão) quanto na religião (fé) permitem que as crenças, antes estabelecidas em seus significados religiosos e científicos, respectivamente, possam mudar, ser criadas e recriadas, como no resultado científico da técnica e do instrumento; na experiência religiosa, em que o sagrado alimenta o mito e o rito; no milagre da oração, que promove êxtase; na filosofia agnóstica, que constrói a sua constelação; na filosofia metafísica, que se estrutura na dinastia dos conceitos e das noções; no ateísmo, que se molda semanticamente em crenças de outra natureza (dialeticamente, do positivo pela negatividade e do negativo pela positividade) etc.

Em toda essa processualidade, denota-se que o ateísmo, embora advogue um terreno próprio, aproxima-se de diversos elementos das religiões reveladas, entre eles o significado das (des)crenças. Falando de relações de perseguições entre crentes e descrentes e de civilizações antigas, Georges Minois elucida que “o ateísmo é tão antigo quanto as religiões” e faz o seguinte destaque histórico:

É claro, a história do ateísmo foi moldada durante muito tempo por suas relações com as religiões, que o perseguiram, antes que ele mesmo se tornasse perseguidor em certas culturas não crentes do século XX. […] No que diz respeito ao cristianismo, em particular, que gosta de se gabar de seus 2 mil anos de existência, o ateísmo goza de uma anterioridade que deveria lhe valer respeitabilidade.

Então o ateísmo data de uma existência anterior à vida de Jesus e de seus desdobramentos no cristianismo, nas suas diversas expressões institucionalizadas e em outras religiões reveladas, de modo que o ateu crê em algo, pois é da natureza humana, no sentido epicuriano, criar, crer e dar resposta a si mesmo no mundo, porém pelo prazer (em busca da felicidade), sem negar o transcendente do mundo e a vivência harmônica dos deuses, mesmo longe dos humanos. Por um ateísmo moral, “Epicuro (341 a.C — 270 a. C.) afirma a existência dos deuses: ‘os deuses existem, o conhecimento que temos deles é uma clara evidência’”.

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Com ou sem a crença num Deus monoteísta, o mundo ateísta apresenta uma realidade que não se contradiz de modo contundente com o mundo politeísta (ou ateísta), pois “os panteístas não acreditam num Deus sobrenatural, mas usam a palavra “deus” como sinônimo não sobrenatural para a natureza, ou para o Universo, ou para a ordem que governa seu funcionamento”. E “em muitos sistemas teístas de fé, a divindade está intimamente envolvida nas questões humanas”.

As questões humanas também são situações experienciadas no ateísmo por um processo de transferência não ao transcendente, mas à visão materialista da vida, como algo muito similar às culturas não crentes. De qualquer modo, a ideia ou o som de Deus, com letra maiúscula, ou deuses, com “d” minúsculo, ressoa e tem eco no espaço do mundo crente e do mundo do não crente (no território do ateísmo), como afirma Bach: “é impossível conceber o Universo sem princípios espirituais, e uma pessoa não pode visualizar a vida sem que estes princípios estejam funcionando como Causa Criativa. Até os ateus proclamam a divindade, ao negá-la”.

No entanto a semântica do “crer” (“descrer”) do ateu difere no sentido particular do “crer” da teologia cristã bultmanniana, que preconiza que o “crer é compreender que não se pertence ao mundo, espaço da caducidade, do pecado e da morte (demundização), e sim ao mundo do Deus da vida”. Logo, o conceito e a experiência que a vida proporciona ao indivíduo estão no centro da existência para o religioso e para o ateu.

Independentemente da classificação acerca do ateísmo, o que se percebe é que o ateu se constitui numa positividade de crença(s) por acreditar em algo, ainda que as suas crenças possam, à primeira vista, estar afastadas das ditas crenças experimentadas pela maioria que está no solo das religiões.

Ou seja, o ateu parece não ter positividade e identidade, e, por isso, se firma como negador, isto é, como aquele que não possui teísmo algum. Curiosamente, entretanto, o termo “ateu” serviu para designar não apenas aquele que não crê em algo, mas aquele que acredita em algo que não corresponde à crença da maioria.

Na lógica da crença, como condição de “toda vida espiritual”, a exemplo do que Comte-Sponville fala sobre a espiritualidade dos ateus, é preciso fazer duas distinções básicas sobre a noção de crenças, seja para as religiões, seja para o ateísmo. No ateísmo, há a pretensão de uma separação entre crer e não-crer ou “descrer”, rompendo-se com a divindade de Deus ou deuses que regulam e asseguram a vida noutro mundo ou no terreno mundano, ao passo que, nas religiões reveladas, quando os seus crentes optam por determinada teologia ou doutrina, acabam também por exercer dicotomicamente algum tipo de “crença versus des-crença” em relação aos dogmas de outras expressões religiosas ou de culturas nãocrentes. Nesse sentido, as crenças, por si mesmas, são sentidos construídos e absorvidos numa rede de significados culturais interpretativos — segundo Geertz, conforme a resposta pretendida ou intencionalizada por indivíduos, grupos, comunidades como verdade que sustente a existência, ou, “noutros termos, uma ‘modalidade’ da afirmação e não o seu conteúdo”, como afirma Certeau.

Logo, as formas e a intensidade da crença variam em uma certa época e ao curso do tempo. Elas adequam-se a objetos às vezes idênticos, às vezes diferentes. O deslizamento do substantivo ao verbo (da crença ao crer) é encarregado de sublinhar o abandono de uma modelização com único objetivo cristão, podendo carregar a reflexão para um dado histórico universalizável, da mesma forma que a distinção entre religioso e não religioso.

Nos significados tecidos por religiosos, descrentes, não religiosos e ateus, as crenças, como um engendramento vital, místico e racional, não diferem em sua semântica constituída pela racionalidade humana, pois o indivíduo crê em algo — sagrado ou mundano sacralizado. A filosofia ontológica do sentido do ser, em Heiddegger, pode sustentar o homem para o seu próprio retorno, metafisicamente, se religioso ou não religioso, crendo, por vez também descrendo.

Se a ciência se separa da religião e da filosofia por razões de atribuições específicas delimitadas pela racionalidade humana, nem por isso a questão da verdade do vir a existir no mundo está superada, pronta e acabada. À ciência cabe investir-se de competência para comprovar a verdade das coisas e dos fenômenos pelo exercício do pensamento científico mediado pelos seus próprios métodos, instrumentos e teorias; não tendo, portanto, atribuição e condições de estabelecer a verdade ou não da existência de Deus. Apesar das últimas revoluções científicas apresentadas pelas teorias da física quântica (massa é energia), rompe-se a noção dicotômica de massa versus energia. Muda-se a equação para perquirir sobre o mundo real. A filosofia clássica, com a noção polarizada de transcendente e matéria no reino da infinidade na visão aristotélica, é superada com a filosofia heideggeriana do sentido prático da vida (experiências do ser). Com a ideia de um ser supremo e eterno, segundo doutrina da eternidade, aprofundada pela metafísica oriental, o ser humano convive e estabelece coexistência entre o sagrado e o profano. A religião, com a força e o poder de um Deus único, cristianizada e institucionalizada, elege e determina ritos salvíficos aos indivíduos e sacraliza espaços distintos: o sagrado versus o profano. Há outro mundo além da morte. No entanto tendências religiosas contemporâneas inventam que Deus não só salva como distribui abundâncias de bens de salvação na terra mesmo. A salvação acontece no rito religioso mesmo em tempo real, e o discurso da salvação imediata retroalimenta o mercado religioso. Tudo isso para valorizar a existência e a salvação do ser humano pela crença ou por aquilo que se denomina no meio religioso de fé.

Afastando-se da proposta de salvação do ser humano por um ente invisível, transcendente, infinito, eterno, superior, supremo e criador de tudo a partir do caos ou do nada, o ateísmo desenvolve seus fundamentos de realização humana na própria existência, mas nem por isso deixa de estabelecer suas crenças, ritos e rituais.

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Nesse sentido, embora o ato de vontade humana possa exercer a divisão do mundo em racionalidades (ciências e filosofias) e irracionalidades (religiões), de algum modo esses dois mundos se cruzam em razão da potência que a crença exerce em sua manifestação: modus de crer e descrer. Assim, é a razão humana, independentemente da classificação em que se queira colocá-la (imanente, empírica, racionalista), que autoriza a crença ou não em Deus, em um criador de tudo, em um ser transcendente de infinidades e realidades eternas. Como também permite que o ser humano tenha ou não fé religiosa e continue acreditando em Deus, sem uma religião revelação. A razão, metafisicamente, cria a crença. É do ser humano o estabelecimento de crenças para se relacionar consigo, com o outro, com o mundo, com o além-mundo.

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Entre religiões reveladas e ateísmo, a fronteira não é tão objetiva e nítida. A crença (a descrença) permeia ambos os espaços do existir humano, como também abre fecundo espaço de liberdade na própria fronteira, superando-se a explicação dicotômica inventada culturalmente para identificar razão e fé, ciência e religião. Como disse Salvatore Natoli, “não existe mais um rio da história que unifica os diferentes destinos dos seres humanos”, é preciso, na deriva do mundo, que cada indivíduo se constitua “ponto de resistência” e “ponto de abertura”.

Pelo impulso originário da filosofia primeira, a vida (as experiências do ser, segundo Heidegger) desafia e provoca mudanças paradigmáticas de explicação da verdade: a física quântica se aproxima do desconhecido para explicá-lo. A razão inventa a sua fé, a sua crença. A religião a manifesta, pois, como entende Voltaire: “se Deus não existisse, seria preciso inventá-lo”. O ateísmo conecta-se pelo crer (ou descrer) em algo acerca da metafísica da vida (produto da ciência, fé sem religião, criador sem instituição religiosa). O processo de buscar explicação da existência prenuncia que o ser humano não é um simples indiferente ao desconhecido. Ele crê em algo.

A natureza da vida sem um criador para crer, a partir de algo, dilui-se. O ser humano é agente de criação de seus próprios vínculos. A divisão e a classificação do mundo contradizem a própria semântica da unidade da vida: o existir dá significado de se estar no mundo.

Nilo Deyson Monteiro Pessanha

Sobre o autor

Nilo Deyson Monteiro Pessanha

Sou filósofo, escritor, poeta, colunista e palestrante.
Meus trabalhos culturais estão publicados em diversas plataformas. Tenho obras e livros publicados.

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Sou uma incógnita que deve ser lida com atenção e talvez somente outras gerações decifrem meu espírito artístico. Sou muitos em mim e todos se assentam à mesa comigo. Posso não ser uma janela aberta para o mundo, mas certamente sou um pequeno telescópio sobre o oceano do social.

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