Acabei de assistir a primeira temporada de Atypical, e foi tão bacana que não resisti à vontade de escrever sobre as diferenças que nos tornam humanos. A princípio, trata-se da história de Sam, um jovem autista de 18 anos. Porém, pelo menos para mim, trata-se da vida cotidiana de uma família em transformação, cujos integrantes precisam repensar em seus papéis dentro desse núcleo.
Sam nos apresenta como é viver sem simbolizações, levando tudo o que ouve ao pé da letra. Logo no início, ele se apresenta: “Sou esquisito. É o que todos dizem. Às vezes não entendo o que as pessoas querem dizer”. E lá pro meio da série, ele declara: “Às vezes eu queria ser normal”, e tem como resposta: “Cara, ninguém é normal”.
Pronto, está dito! Isso foi uma das coisas que me fez assistir e querer escrever, pois temos uma história em que todos os personagens se mostram únicos em suas questões, humanos em suas angústias e fragilidades. Não há perfeição em nenhum deles, apenas tentativas de viver da melhor maneira possível.
Sam nos convoca a escutar e responder de um outro lugar, fora das metáforas que usamos cotidianamente para deixar de dizer o que queremos dizer. Ele é direto, diz exatamente o que quer dizer e entende exatamente o que dizem a ele, não o que está implícito, mas o explícito das falas. Isso, nos leva a buscar simplicidade na fala, nos convida a sermos mais diretos, porém com delicadeza. Sam nos mostra que há outras maneiras de falar e de ouvir, e que podemos, sim nos relacionar com os que são diferentes de nós, porque o avesso também é verdadeiro. Nós também somos diferentes dele e não apenas ele de nós, e isso é condição irreversível para se viver, pois a diferença existe e consiste nas relações.
Elsa e Doug são outras fontes de riqueza humana, os pais de Sam, estão o tempo todo tendo que lidar com um filho fora dos padrões desejados, que não responde à fantasia de filho perfeito que todos têm. A mãe ocupa um lugar de superproteção e de medo diante de novas possibilidades de relacionamentos do filho, perde seu lugar de mulher e o reduz ao papel de mãe. Frequenta um grupo de apoio, faz comida, se preocupa com o filho e mais nada. Até que esse filho mostra que vai bem aos cuidados do pai e que não precisa de tanta presença materna. E aí o que lhe resta? Se redescobrir mulher, desejante e sensual, mas a que preço? Quais os caminhos possíveis para esse reencontro com os seus desejos?
Doug não dá conta desse desencontro da fantasia de filho perfeito com um filho da realidade e vai embora. Ao voltar e levar a vida aparentemente normal, ele não comenta com os amigos que o seu filho tem um transtorno. Encontra dificuldade em criar laços com esse filho. Fica ali, porém distante, não sabendo muito como tornar-se próximo. No entanto, eis que é possível tecer uma relação e, então, o encontro de pai e filho, de dois homens conversando sobre namoro, amor, e outras coisas que acontecem. Há um pai de um filho nascendo e é bonito de se ver.
Casey, irmã de Sam, é responsável pelo seu bem-estar, na escola, é sua defensora e companheira. Porém, diante de um irmão que demanda muita atenção dos pais, ela fica sem olhar, como se com ela eles não precisassem se preocupar. E aqui torna-se imprescindível o questionamento sobre como pode ser pesado para os irmãos de pessoas com algum tipo de transtorno, essa falta de olhar, de atenção, como se eles fossem menos importantes por serem capazes de lidar com situações diversas. Enquanto todo o entorno se interessa, cuida e está atento a essa criança ou adolescente com transtorno, cria-se um silêncio, um vazio, uma maneira distante de se relacionar com os outros filhos.
Relacionar-se é difícil, em família é mais ainda, porque a proximidade, a intensidade e as diferenças estão ali o tempo todo, sem trégua e sem disfarces. Família é, sem dúvida, nosso maior campo de batalha, não no sentido de guerrear uns com os outros, mas no que diz respeito ao exercício de aprender a ver o outro como ele pode se mostrar e não como queremos vê-lo. Um exercício de escutar o que está sendo dito pelo outro através do que nos é possível escutar e tentar através desse desencontro de significados construir diálogos. Um exercício de manter-se curioso diante de que lhe parece diferente, errado ou perturbador no outro.
O núcleo familiar nos leva ao paraíso e ao inferno das relações diversas vezes ao longo de nossas vidas, e isso é inevitável. E é nesse ir e vir, no viver dessas relações, que aprendemos e construímos a base de nossas futuras relações. E por esse lugar tão intenso, é preciso sair dele às vezes. É preciso respirar outros ares e enxergar que há outras maneiras de construir relações.
Então, temos os amigos. Eles nos apresentam novas formas de perceber e receber o que está ao nosso redor. Eles nos devolvem uma certa insignificância, pois fora do nosso núcleo familiar somos apenas mais um, e isso é libertador. Sam tem um amigo que o trata como se ele fosse um amigo qualquer, não fica o tempo todo preso ao espectro em que foi diagnosticado. Falam sobre tudo, sem melindres. Esse amigo aposta na capacidade de Sam de conquistar uma garota, de namorar, transar e levar a vida.
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Enquanto o núcleo familiar é denso, a maioria das amizades são leves, e assim, temos a possibilidade de escolher, desconstruir e repensar ao longo de nossas vidas qual importância daremos as diferenças que existem entre nós e os outros. E se essas diferenças limitarão ou expandirão nosso campo de visão.
Desejo que possamos nos enxergar e enxergar todos os outros como atípicos, extraordinários, singulares, inusitados, únicos e, justamente por isso, encantadores humanos.