É bastante comum o gesto, entre pais e filhos, da troca de beijinhos (na boca), os famosos “selinhos”. A demonstração de carinho, aparentemente inofensiva, em famílias emocionalmente saudáveis, não traria maiores prejuízos psicológicos, pode-se pensar – afinal, “O que um inocente beijinho pode causar de malefícios? Estou apenas demonstrando meu amor por meu filho(a)!”.
Pensaria grande parte dos leitores, adultos, que são também genitores. Contudo, trago aqui uma reflexão sobre o ato simbólico de beijar os pequenos. Como educadora e especialista em Educação Infantil, vejo-me na obrigação de realizar um alerta a todos os pais e mães conscientes, embora a temática possa gerar críticas. Explico o porquê.
Trocas afetivas são comuns e necessárias entre pessoas que se amam, isso é inquestionável. O beijo é um costume social bastante praticado, principalmente em regiões ocidentais do globo. Em nosso país tropical, o Brasil, onde os povos são considerados uns dos mais amistosos e afetuosos, comumente cumprimentamos pessoas conhecidas com beijos estalados no rosto – podem ser praticados os três beijos alternados em cada bochecha, ou ainda dois beijos, um de cada lado, ou mesmo um simples “encostar único de bochechas”, de modo mais rápido e prático.
Apertos de mão são delegados para situações mais formais e, principalmente, quando não temos intimidade com as pessoas cumprimentadas. Assim, beijar sempre foi demonstrar apreço, e até já comentei sobre o dia do beijo por aqui – (era época de pandemia e necessitávamos ser cautelosos quanto à prevenção de transmissão de doenças).
Como pedagoga, acredito que o ato de beijar alguém, principalmente na boca, é bastante saudável entre pessoas adultas e quando praticado de forma consensual, ou seja, quando ambas as pessoas da relação concordam com o ato e o desejam praticar. Porém, entre adultos e crianças, o gesto não é tão inocente assim.
Obviamente, a maioria dos pais, sendo eles cidadãos éticos e coerentes, não veem o gesto com malícia ou como indicador de maiores prejuízos a seus filhos. Contudo, o beijo na boca abre precedentes para que nossos filhos considerem o hábito como um ato normal. Assim, normalizar o beijo que, para a maioria dos pais, realmente, demonstra afeto entre mãe e filha(o), ou entre pai e filho(a), pode significar à criança que compreenda que qualquer outro adulto pode solicitar beijos – e não deveria ser considerado razoável beijos entre pessoas adultas e crianças.
Não podemos fechar os olhos à comum prática desviada e criminosa que é a pedofilia. Embora considerado um comportamento grotesco e vil, cometer violência sexual com pequenos é bastante comum, não somente em redes virtuais, mas também presencialmente. Adultos inescrupulosos se aproveitam da inocência de nossos infantes, muitas vezes desprotegidos pelos pais, os quais não observam o conteúdo acessado por eles na internet. Assim, desconhecidos ganham a confiança das crianças oferecendo-lhes prêmios, brinquedos, jogos, doces e outros atrativos. Após, marcam encontros e se fazem passar por amigos, até que cometem os atos ilícitos e absurdos.
Dados recentes da rede CNN Brasil informaram que familiares e conhecidos são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual contra crianças de 0 a 9 anos no Brasil. Entre as vítimas de 10 a 19 anos, o crime é cometido por pessoas próximas em 58,4% dos casos. Entre 2015 e 2021, o país registrou mais de 200 mil casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes – sem mencionar os casos velados que não foram noticiados ou reconhecidos. Esse número desastroso e alarmante tenderá a aumentar se terceirizarmos a educação de nossos filhos a outras pessoas ou se não lhes dermos a devida atenção.
Mas de volta ao beijinho na boca entre pais e filhos… Mesmo em uma família saudável, o costume pode significar à criança, que ainda não tem total compreensão da ética, nem tem seu senso de criticidade completamente construído, que pode ser aceitável beijar outros parentes ou mesmo estranhos, ocorrendo a solicitação desse beijo ou de outras demonstrações “afetivas”. Não é tão difícil que demonstremos nosso carinho pelos pequenos com beijinhos no rosto, com abraços apertados, com afagos, cafunés, colinhos e aconchegos! O beijo na boca é um afeto que deveria ser promulgado pelos casais. Isso assegura que a criança compreenda que só irá praticar o beijo na boca quando for adulta, talvez quando adolescente.
É vital, também, que ensinemos às crianças que não devem permitir a ninguém o direito de lhes pedir beijos ou toques em seus corpos. Ao mesmo tempo, não devemos obrigar crianças a aceitar ou dar beijos sem que sintam vontade. Elas não devem ser obrigadas a cumprimentar tio ou tia, parente que seja, com beijos ou abraços, por incumbência ou por educação. A criança não deve realizar nenhum ato formal que se sinta incomodada a fazer, com medo de ser intitulada de “malcriada” ou “feia, boba, mimada”. Tais designações são um total desrespeito e uma violação de seus direitos, os quais sempre devem ser assegurados, ainda mais pelos pais.
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Em suma, é extremamente importante que dialoguemos frequentemente com as crianças de nossa família, desde a tenra infância até a juventude. “Se você não der atenção ao seu filho, o abusador dará” – a frase proferida por educadores parentais não poderia ser mais verdadeira. Beijar é um ato bonito, mas que requer cuidado, consideração e compreensão, além de permissão e aceitação de todas as partes envolvidas. Proteger nossos pequenos é mais pertinente que nosso anseio por um afeto desarmonioso.
Referência:
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/familiares-e-conhecidos-sao-responsaveis-por-68-dos-casos-de-violencia-sexual-contra-criancas-no-brasil-diz-saude/