Lugar de mulher é… onde ela quiser. E por que não dizer na ciência também? A presença das mulheres nas pesquisas científicas tem ganhado cada vez mais espaço, o que comprova que, sim, temos a mesma capacidade de revolucionar a história do mundo.
Exemplos não faltam, e estamos falando de tempos em que a sociedade era ainda mais castradora dos direitos femininos. Hoje a luta ainda é muito árdua, ainda é preciso que a mulher prove seu valor, em meio a obstáculos como o desmerecimento e a descrença quanto a suas capacidades.
Ainda somos vistas sob a imagem daquela que cuida, que foi “destinada” a criar os filhos e administrar o lar. Não importa o quanto a sociedade já tenha avançado, infelizmente essa continua sendo a premissa sobre o que é ser mulher.
Quantas cientistas você conhece?
Essa certamente não é uma pergunta difícil de se responder. Provavelmente você dirá que, pessoalmente, não conhece nenhuma. E historicamente, fará um esforço para se lembrar. Mas muito do que desfrutamos hoje, em especial no que tange à tecnologia, passou pelo trabalho feminino.
Mas é preciso, sim, se esforçar e pesquisar ao máximo, não só para ter conhecimento sobre a história de cada uma, mas também, e principalmente, para difundir essas histórias e valorizar o trabalho feminino no campo científico, que não é uma conquista recente. Aliás, merecemos destacar as precursoras dessa revolução, que se tornaram a grande inspiração e abriram o caminho para a ascensão feminina em todas as áreas da ciência.
A seguir, fizemos uma seleção inspiradora de mulheres que fizeram e fazem a diferença na história, provando que lugar de mulher é, sim, na ciência.
Ada Lovelace – a mãe da programação
Você sabia que o primeiro programador de que temos conhecimento foi uma mulher? Tudo começou quando ela ficou incumbida de traduzir um artigo de seu professor – o matemático Charles Babbage – do francês para o inglês e incluísse suas notas de rodapé.
Em uma de suas notas, ela descreve o algoritmo para a máquina analítica de Babbage. Nesse algoritmo, ela demonstra o passo a passo da sequência de operação dessa máquina, usando os números de Bernoulli como exemplo. Os números de Bernoulli são sequências numéricas úteis especialmente em programação, criados para sintetizar somas finitas ou infinitas.
Em seu algoritmo, o primeiro do mundo, Ada organizou as operações em grupos que podiam ser repetidos – hoje em dia, na programação, esses grupos são chamados de loop. Com seus achados, Ada, chamada por Babbage de “encantadora de números”, conseguiu prever que uma máquina como aquela futuramente seria capaz de produzir imagens, gráficos e ser útil em atividades diárias, em especial para estudos científicos. Por essa razão, ela também contribuiu para revolucionar a história da pesquisa mundial, visto que seu algoritmo futuramente seria capaz de viabilizar tais processos.
Dois prêmios Nobel e uma grande referência
Sem sombra de dúvidas, quando trazemos à tona o papel da mulher na ciência – e, acima de tudo, na sociedade –, uma das maiores e mais relevantes referências é a cientista polonesa Marie Curie.
Suas conquistas representam a conquista de todas as mulheres, juntamente, é óbvio, com as dificuldades do trabalho feminino em um campo majoritariamente masculino e dentro de uma sociedade organicamente machista. Se os tempos estão mudando, é em parte pelo fato de a própria sociedade estar evoluindo, mas em grande parte é pelo trabalho de mulheres como Marie.
Marie Curie desde sempre enfrentou desafios em sua empreitada como cientista. Após concluir o colegial, ela não pôde cursar graduação, pois mulheres não eram aceitas na universidade de sua cidade natal. Graduada em Física e Matemática pela Universidade de Sourbonne, ela foi a primeira mulher a lecionar nessa instituição e também a primeira a receber o título de doutora.
Incentivada pelo físico francês Antoine-Henri Becquerel – responsável pelos estudos que conduziram à descoberta da radioatividade –, Marie descobriu dois novos elementos químicos que tinham maior radioatividade que o urânio: o rádio e o polônio. Essas descobertas lhe renderam o Prêmio Nobel de Química. Antes disso, ela e seu marido, em parceria com Becquerel, já haviam sido laureados com o Nobel de Física – fato que fez dela a primeira mulher a receber essa distinção.
Marie Curie é a única pessoa do mundo a receber dois prêmios Nobel em áreas científicas distintas, por suas descobertas sobre o fenômeno da radioatividade e suas aplicações no tratamento de vários tipos de câncer. Além disso, ela viabilizou a continuidade dos estudos sobre essa área por parte de outros cientistas, ao optar por não patentear seus feitos.
Rainha da Pesquisa Nuclear
Esse é um dos apelidos de Chien-Shiung Wu, cientista chinesa que se formou em Matemática, mas acabou atuando como pesquisadora no ramo da Física. Wu foi aceita na Universidade de Michigan (EUA), mas seus planos acabaram mudando assim que ela fez uma parada na cidade de São Francisco (Califórnia). Como na Universidade de Michigan, as mulheres eram proibidas de usar a entrada principal, ela acabou optando por ir estudar em Berkeley. Mas, apesar de ser uma instituição melhor para estudar, por ser de origem asiática, ela ainda teve que encarar um outro preconceito: a xenofobia.
Entre suas contribuições para a ciência, destacam-se o trabalho sobre fissão nuclear e o estudo sobre mudanças moleculares na deformação da hemoglobina causada pela anemia falciforme.
Um marco na sua carreira foi um estudo sobre violação da paridade que marcou o início daquilo que se tornaria o atual Modelo Padrão da Física. Wu realizou esse experimento a pedido dos físicos teóricos Tsung-Dao Lee (amigo de Wu) e Chen Ning Yang, que acabaram recebendo um Prêmio Nobel de Física pela descoberta. No entanto, não foi feita nenhuma menção à cientista no prêmio. Aliás, seu trabalho só veio a ser reconhecido com o Prêmio Wolf, criado especialmente para cientistas vivos que mereceram, mas não receberam o Nobel.
Outro grande evento de relevância na vida profissional de Wu foi o convite que ela recebeu em 1944 para participar do Projeto Manhattan, que produziu as primeiras bombas nucelares.
Chien-Shiung Wu, foi uma grande – e pouco valorizada – cientista, que, além de enfrentar o machismo, teve que lidar com o preconceito quanto à sua origem asiática. É um exemplo de luta e uma grande inspiração para as mulheres.
Estrela de grandeza nacional
Um dos nomes mais conhecidos da ciência brasileira mundo afora, Duilia de Mello é astrônoma, professora e escritora nascida em Jundiaí, São Paulo. Radicada nos EUA, ela é astrofísica e pesquisadora da NASA, professora titular de Física e Astronomia da Universidade Católica de Washington. Inclusive, já foi vice-reitora dessa instituição.
Graças a seus mais de 100 artigos científicos, dois livros publicados e grandes descobertas – entre elas a galáxia do Côndor (NGC6872), a maior galáxia espiral do universo, Duilia foi escolhida como uma das dez mulheres que mudaram o Brasil e uma das 100 pessoas mais influentes em território nacional.
Além da NGC6872, a cientista também foi responsável pela descoberta da Supernova SN 1997D e participou da descoberta das Bolhas Azuis – aglomerados de estrelas solitárias localizadas do lado de fora das galáxias que estão em processo de colisão. A existência dessas estrelas “órfãs” ajuda no enriquecimento químico do Universo.
Entre outras tarefas, seu trabalho envolve pesquisas para entender a formação e evolução de galáxias, em especial a compreensão de como a Via Láctea foi formada.
Duas gerações, um código
Em 2020, começamos a vivenciar uma das maiores pandemias de que se teve conhecimento. A Covid-19 atingiu o mundo de forma devastadora, ceifando vidas, destruindo famílias, estabelecendo uma nova forma de interação social e gerando uma corrida científica rumo a soluções que envolveram a tentativa de tratamento, elaboração de vacinas – como modo de prevenção global –, políticas públicas e de saúde, bem como a aceleração dos estudos em torno do vírus causador dessa doença – o coronavírus.
Cientistas de todo o planeta se envolveram em diversas e incansáveis pesquisas, em todas as frentes, para conter o avanço da doença e tornar o mundo mais seguro para as populações. Nessa batalha, merecem destaque duas cientistas de gerações diferentes, aliadas na busca pelos avanços contra o coronavírus: Ester Cerdeira Sabino e Jaqueline Góes de Jesus.
Ester é médica e doutora em Imunologia pela USP. Com uma extensa carreira estudando o DNA de vírus como o da dengue, Chikungunya e Zika, tendo participado de projetos de sequenciamento do genoma desses vírus, Ester liderou o trabalho de outras mulheres no primeiro sequenciamento genético do coronavírus (SARS-CoV2) no Brasil.
O resultado desse trabalho – realizado em um tempo recorde de 48 horas e usando uma metodologia de baixo custo – levou a equipe a identificar a origem das primeiras contaminações, bem como a rota do coronavírus e suas mutações.
Jaqueline é graduada em Biomedicina, mestre em Biotecnologia e doutora em Patologia Humana e Experimental. Contribuiu com sua experiência desenvolvendo e aperfeiçoando protocolos de sequenciamento de genomas.
Para esse trabalho, elas e os colegas utilizaram uma técnica trazida ao Brasil por Ester, durante a epidemia de Zika no país.
Mas não para por aí
A participação relevante das mulheres no combate ao coronavírus ainda conta com outras cientistas, que atuam em outras frentes.
Daniela Trivella, graduada em Ciências Biológicas e doutora em Ciências Físicas Biomoleculares, coordena projetos em busca de medicamentos já existentes que tenham alguma eficácia contra o coronavírus.
Natália Pasternak, graduada em Ciências Biológicas e doutora em Microbiologia, é uma das mais ativas divulgadoras científicas sobre a Covid-19, graças a seu ativismo científico nas redes sociais, na busca por combater a desinformação em saúde, que gerou impacto não só no Brasil, como na América do Sul e outros países do mundo. Feito que lhe rendeu o Prêmio Ockham de Ativismo Cético. Diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência, Natália é uma pioneira na defesa do uso de evidências científicas nas políticas públicas.
Considerada uma das maiores autoridades no país quando o assunto é pulmão, Patricia Rocco tornou-se uma referência na pandemia. Coordenou um estudo clínico nacional que concluiu que a nitazoxanida – medicamento antiparasitário – foi capaz de reduzir a carga viral. Além disso, esteve envolvida em pesquisa sobre o uso de células-tronco mesenquimais para o tratamento da Covid.
O caminho ainda é longo
Felizmente, se formos ampliar a lista na ciência, seja em que área for – Medicina, Física, Química, entre outras – teremos a grata surpresa de um número crescente de mulheres atuando em posições relevantes e determinantes para o curso da humanidade.
Entretanto ainda temos um caminho muito longo pela frente, não só para ocupar os espaços a que temos direito, como também para conseguirmos administrar jornadas, que na maioria das vezes são múltiplas e extenuantes, que impedem que comecemos. O desafio, portanto, não é só obter um cargo, mas também o acesso ao estudo, a uma rede de apoio (especialmente da mulher que é mãe), ao respeito por nossa integridade e à igualdade de gênero, que ainda é um enorme entrave na sociedade.
Inspire como uma mulher!
Que possamos levar adiante o legado de todas estas mulheres elencadas neste artigo, e que possamos voltar lá no passado bem distante, inspirando-nos em Hipátia de Alexandria, a primeira matemática da História, que, além de ter sido uma brilhante filósofa, teria desenvolvido estudos sobre a Aritmética de Diofanato de Alexandria, o Pai da Álgebra. E, segundo os historiadores, ainda revisou a obra “As Cônicas”, do filósofo Apolônio de Taina, tornando o documento mais acessível e inteligível. Há relatos, inclusive, de que ela teria construído um astrolábio, um hidrômetro e um higroscópio.
Você também pode gostar
No entanto, sua postura em defesa do racionalismo científico, vista como uma apologia a sentimentos anticristãos, resultou na sua morte. A versão mais aceita desse episódio é do historiador britânico Edward Gibbon, de que ela sofreu uma emboscada, tendo sido cruelmente linchada e posteriormente queimada.
Essa é uma história, que certamente tem suas versões, mas que conta nada mais do que a realidade de toda mulher: a sociedade está sempre querendo calar a voz feminina. Mas devemos nos concentrar na ideia de que o mundo está mudando, e certamente, num futuro não muito distante, haverá cada vez mais notícias de mulheres – dentro ou fora da ciência – mudando o mundo para melhor.
“Eu me pergunto se os minúsculos átomos e núcleos, ou os símbolos matemáticos, ou as moléculas de DNA têm qualquer preferência pelo tratamento masculino ou feminino.” – Chien-Shiung Wu