Academicamente falando, muito já se disse do processo de formação e informação por que passa todo indivíduo, assunto esse explorado até à exaustão, ainda que tão pouco compreendido quando escapa do ambiente acadêmico para ser levado à vida das pessoas. Isso porque a abordagem fica na diferença entre esses termos sem se atinar para o fato de que ambos não vão além de causa, e o que mais importa quando se fala em relacionamento é a consequência. Explicando melhor: durante o período de formação ou desenvolvimento, estamos apenas construindo a estrutura que depois será usada para sustentar nossas relações com as pessoas, ou seja, como acontecerá a sua aplicação prática.
Então nossa abordagem aqui pretende ir além do período de formação e informação por que passamos, mas colocando foco no “depois” que disso resulta, traduzido como qualidade das relações que iremos estabelecer. E de que forma podemos medir essa qualidade? Pelo benefício levado às pessoas envolvidas em termos de bem-estar físico e emocional resultante dos elos que se estabelecem entre elas, a partir de sua aproximação.
Ainda no campo das causas, existe um vetor humano que independe e antecede a fase de formação e informação, a que muitos atribuem um caráter de “essência” própria. A essência do indivíduo já nasceria com ele, sendo constituída pelas características que permanecerão inalteradas por toda a vida. E claramente é a de mais difícil compreensão dentre todos os atributos humanos, pois nem a própria pessoa conseguirá entender quando ou como surgiu: apenas se dá conta de que é componente intrínseco de sua visão de mundo, sempre esteve presente e lhe serviu de norte para pensar e agir do modo com que o faz. Tanto que muitas vezes essa conscientização da própria essência vai acontecer muito tempo depois, quando o indivíduo já atingiu sua maturidade plena ou até na velhice. E é nesse dia que se “olha pelo retrovisor” aquele padrão que sempre se fez perceber em cada reação e nos momentos mais importantes da existência.
Muita gente irá confundir essa essência a que me referi com o que se tem como caráter da pessoa. Isso é um equívoco, pois o caráter é forjado pelo conhecimento que vai se acumulando nos primeiros anos de vida, enquanto a essência já estava lá antes disso, daí porque os próprios estudiosos da alma humana encontram dificuldade para alcançar sua compreensão. Só para ilustrar, na definição de Eric Berne, ao elaborar sua teoria da “Análise Transacional” – com base no comportamento humano –, o pesquisador descobriu que havia emoções que já nasciam conosco, e que ele chamou de “emoções primárias ou autênticas”. Estas seriam em número de cinco: a Alegria, a Tristeza, o Medo, o Afeto e a Raiva. São reações inatas que todo recém-nascido já traz desde que seu sistema nervoso é formado ainda no útero materno, sendo muito fácil de se constatarem. Pode-se afirmar, então, que a Essência seria o sexto elemento emocional acrescido ao conjunto, com a diferença de que nem o próprio indivíduo se dará conta disso até muito tempo depois. Ele apenas perceberá que determinadas coisas lhe provocam um profundo mal-estar ou, ao contrário, uma maravilhosa sensação de plenitude, sem sequer entender a razão para os perceber dessa forma.
Mas a pergunta que nos deve interessar é: isso é bom ou é ruim? Quando se fala em alegria ou afeto fica claro que se trata de coisas boas. E quando lidamos com tristeza, medo ou raiva, é senso comum que se trate de coisas ruins. Então por que não acontece da mesma forma em relação à nossa essência? Essa resposta, pelo menos, não é tão difícil quanto lhe conhecer a origem: as cinco emoções classificadas por Berne acontecem no próprio indivíduo, independentemente de outrem, enquanto a essência dele… ah! Isso ele só irá descobrir depois de senti-la em contato direto com a essência alheia. Isso nos leva à conclusão de que nossa essência é a única dentre as características emocionais inatas que depende dos relacionamentos para se revelar a nós. É fácil saber que as outras cinco podem ter origem em qualquer coisa – seres vivos ou não –, mas a essência só acontece em relação a outro ser vivo que também a possua, sendo decisiva para aproximá-los ou distanciá-los de forma claramente perceptível e indelével. E por que indelével? Ora, se ela não muda, bastará identificar quem a traga totalmente contrária à sua para se saber que não conseguirão se entender em momento algum, pois não se trata daquele tipo de erro que todos cometemos em diferentes momentos, e que costumamos entender como “erros de percurso”. A incompatibilidade entre essências estaria intrinsecamente associada à visão de mundo que trazemos, e, quando se mostram inconciliáveis, podem tanto se traduzir por “conflitos de personalidade” quanto por “falhas de caráter” (estas últimas, obviamente, quando esbarram em questões éticas).
Vamos analisar um modelo até bastante comum no seio familiar, como é a dificuldade de relacionamento entre pai e filho por exemplo, devido ao desencontro de suas essências: um pai que pensa e se comporta de forma incisiva e autoritária por força de sua formação, e um filho que reage muito mal a esse tipo de postura, cobrando explicações para sua forma inflexível de agir. Claro está que eles dificilmente chegarão a um entendimento, a menos que um dos dois busque harmonia com a própria essência: ou o pai decida atenuar seu autoritarismo para se aproximar do filho, ou este dispense as cobranças de um tratamento menos rígido por alguma razão que considere importante, como a idade ou a saúde de seu pai, por exemplo. Note-se que nenhum dos dois precisou abrir mão de sua essência, mas apenas “fazer uma concessão” em prol de algo que se mostrou importante naquele momento ou naquela situação específica para o objetivo proposto, que era o de diminuir a distância entre ambos. Esse exemplo mostra um caso bem frequente de conflito de personalidades, mas não necessariamente com base em questões de caráter.
Mas voltando atrás um pouquinho – lá onde acaba a causa (formação e informação) e tem início a consequência (conformação ou transformação). Já se pode entender que a essência não depende de que se tenha consciência dela para que se manifeste nos indivíduos. Quando contrariada, ela simplesmente “reage” dentro da pessoa, acionando o alarme de que há um conflito em andamento esperando por um posicionamento dos envolvidos, como no exemplo utilizado entre pai e filho. Tal posicionamento é que irá decidir o tipo de comunicação entre eles. A partir daí se saberá se poderá haver uma harmonização, ainda que não de essência, mas como uma espécie de “pacificação consciente”. Esta chega como um “escudo” colocado a serviço da saúde mental dos envolvidos quando a relação entre eles estiver sendo colocada em xeque. Essa “proteção” por efeito de escolha poderá se estender a todo o tempo de convívio por conta dessa tomada de consciência pelas partes, “positivando” um relacionamento que poderia ser conflituoso se não se empenhassem num “ajustamento de conduta”. Em outras palavras, por ter sido resultado de uma decisão consciente, a relação não produzirá nenhuma daquelas emoções primárias negativas do estudo de Berne sobre as quais falamos no início: medo, tristeza ou raiva, já que consentida.
Mas há casos em que as partes acabam não colhendo resultados positivos, mesmo com o esforço de “pacificação”, e aqui se percebe de novo a relevância da decisão consciente por parte dos envolvidos. Se tudo se resumiu a um desejo superficial, não partido do cerne de sua inteligência emocional, em lugar da desejada transformação de postura, o que ocorrerá será apenas uma conformação, que ocorre quando o indivíduo aceita o acordo de fora pra dentro, mas de dentro pra fora sua essência continua gritando que não o aceitou. A pessoa, nesse caso, vai sentir raiva de si mesma por ter cedido, pode mergulhar em tristeza por ter se deixado convencer sem pensar nas consequências internas, ou até sentir medo de não conseguir levar o acordo adiante, e a situação acabar pior do que antes. Isso demonstra a importância da conscientização no que toca ao resultado esperado: ela tanto pode produzir harmonização com a própria essência pela escolha sensata, quanto gerar um robusto conflito interno e não resultar em nenhuma mudança de postura, como se propunha.
Ainda no que diz respeito à essência – que muitos confundem com “índole” –, pouco se sabe sobre sua real natureza, a menos que tentemos entendê-la sob a ótica da espiritualidade. Mas existe uma diferença sutil – porém consistente – entre as duas coisas: a índole teoricamente poderia ser moldada, e a essência não, por ser parte integrante do ser. Partindo dessa premissa, a índole poderia receber influências tanto internas quanto externas, mas no que toca à essência, apenas a “descobrimos” tal qual é, sem exercer nenhum tipo de comando sobre ela. Poder-se-ia dizer, então, que o indivíduo possuidor de uma essência harmônica e positiva não traria tendência para desenvolver uma “índole ruim”? Teoricamente isso se mostraria verdadeiro, porque a primeira – que é o próprio ser – não o permitiria. Mas a essência “não consolidada” desde a concepção, esta sim, se colocaria suscetível à “moldagem” negativa da índole, a exemplo de um livro em branco em que o tipo de vida escolhido possa escrever nele os próximos capítulos de sua trajetória.
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É claro que, nesse aspecto, estamos tratando de crenças, e não de ciência. E nesse campo insólito e desconhecido, nada se pode afirmar. O que se toma como real a partir de narrativas de vida é que a essência – ou natureza do ser – vai sendo descoberta aos pouquinhos pelo próprio indivíduo, e de alguma forma consegue ser “captada” pelos demais à sua volta, dependendo do grau de sensibilidade de cada um. A confirmação dessa essência seria obtida pelo indivíduo em forma de um sentimento sutil e subjetivo, mas extremamente poderoso, que cria rejeição inequívoca a tudo que se mostre contrário a ela, como também faz eclodir uma empatia instantânea com aqueles que a trazem nos mesmos moldes. Daí porque se diz que ambas as essências simplesmente “se descobrem” como decorrência de sua sintonia, e elas próprias se identificam umas com as outras, independentemente das escolhas de seus detentores.
Isso explicaria por que determinada pessoa, no primeiro momento em que trava contato com outra, sente-se identificada com ela, mesmo antes de obter qualquer informação sobre quem seja; ou, ao contrário, percebe-se nutrindo uma rejeição interna ao se aproximar dela, mesmo não havendo uma razão concreta para tal sentimento. Muitos irão buscar explicações para tais reações nas crenças que trazem: algum resíduo espiritual de outras vidas, intuição, sexto sentido, premonição etc. Quatrocentos anos atrás, entretanto, Giordano Bruno já afirmava que o fato de se crer ou não em algo não faz com que a verdade mude. Então o que menos importa é como você interpreta o fenômeno, mas sim a forma como lida com ele em seu benefício e daqueles com quem se relaciona, e isso é o que deve ser levado em conta na hora de avaliar seu potencial para modificar toda a trajetória de ambos.