Reflexões do editor

Dançar na chuva

Mulher dançando na chuva
isitsharp de Getty Images Signature / Canva
Escrito por Nina Veiga

Dançar na chuva é um ato comum entre as crianças e entre os adultos que decidem fazer algo espontâneo. Porém, quando pensamos na expressão, notamos que ela pode simbolizar um jeito de viver a vida e de lidar com os nossos problemas. Veja como o termo inspirou a colunista Nina Veiga.

O despertador tocou. Deixou que a música corresse inteira, para só depois desligá-lo. Gostava da letra, era como um mantra matinal: “Dançar na chuva quando a chuva vem”… Cinco e trinta e quatro. Levantou-se. Precisava estar no aeroporto antes das sete. O táxi a levou pelas ruas desertas, enquanto a segunda-feira surgia. Estarei em casa para o almoço. Lembrou-se que teria de fazer uma conexão. São sempre complicadas. O passageiro desembarca numa cidade que não é o seu destino final e embarca em outro avião, para continuar o voo. Sorriu ao lembrar-se da definição que havia lido há anos em um folheto de uma companhia aérea que nem existia mais. Tem certos conceitos que se colam em nós para sempre. Não pôde deixar de pensar no esforço que fizera para tentar descolar o conceito de educação do de escola na palestra que acabara de proferir.

Estes são típicos conceitos que grudam, se grudam. Sempre que conseguia, tentava usar não usar nem educação, nem escola. Palavras usadas demais goram e grudam, diminuem a potência, enquadram o que se faz em formas, levantam fronteiras.

Planta na chuva
MrcTeamStock de Getty Images / Canva

Ao chegar ao aeroporto, a constatação: sem teto. Pensou imediatamente na conexão: apenas uma hora entre o pouso e a nova decolagem. Vai ser muito difícil almoçar em casa. Dançar na chuva… Procurou um local afastado para se sentar, na sala repleta de passageiros mal-humorados. Buscou na bolsa o livro que havia trazido para ajudá-la na peleja dos conceitos: O que é filosofia, de Deleuze e Guattari. Acabara de ouvir de uma colega, doutora em antropologia, sobre o modo como os índios, de uma tribo que ela pesquisava, chamavam aquilo que conceituamos ora como escola, ora como educação, para eles a palavra que mais se aproximava era “transmissão”. Palavras! Eis outra palavra repleta de significados dos quais ela preferiria manter-se longe. Longe de casa, longe das palavras. Tantos dias longe de casa e a volta atrasara. A melodia do despertador matinal atravessou-lhe a mente:

Dançar na chuva quando a chuva vem… Chuva, neblina, overbooking… Como dançar diante de desafios tão pouco estimulantes? Parecia-lhe que o trágico, a potência afirmativa do trágico tinha mais glamour quando se tratava de grandes acontecimentos. Afirmar sala de embarques e conceitos que grudam era um desafio. Abriu o livro, concentrada na questão que a vinha chateando: como livrar-se dos conceitos de educação e escola? Entendia o que os índios queriam dizer quando falavam em transmissão. Era o estar próximo e deixar-se contaminar pelo ver fazer, pelo fazer junto.

Porém, o termo “transmissão” remetia à transmissão do conhecimento, um conceito da pedagogia do qual não queria aproximar-se. Preferia manter-se afastada de conceitos que, de alguma maneira, pudessem remeter ao discurso pedagógico, elaborado contra ou a favor da transmissão do conhecimento escolar, a partir da apropriação dos resultados produzidos pelo conhecimento científico. Começou a ler, teve de rir: “Perdemos sem cessar nossas ideias. É por isso que queremos tanto agarrar-nos a opiniões prontas”. Pensou no filho que chegaria da escola e não a encontraria, pensou na palestra que dera para graduandos, de diferentes licenciaturas, na faculdade de educação, pensou nos índios e no dançar na chuva. Seguiu a leitura, ainda cantarolando a música do despertador que havia, ela também, colado.

“Pedimos somente que nossas ideias se encadeiem segundo um mínimo de regras constantes, e a associação de ideias jamais teve outro sentido: fornecer-nos regras protetoras, semelhança, contiguidade, causalidade, que nos permitem colocar um pouco de ordem nas ideias, passar de uma à outra segundo uma ordem de espaço e do tempo, impedindo nossa ‘fantasia’ (o delírio, a loucura) de percorrer o universo no instante, para engendrar nele cavalos alados e dragões de fogo”. Suspirou.

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Queres ideias coladas, Ana? Apropriar-se de palavras e conceito, de opiniões prontas? Invente palavras. Construa pensamentos com palavras inventadas, desacostumadas, torcidas! Às margens do livro, desenhou um dragão de fogo. Riu, o filho iria aprovar. A voz indiferente no alto-falante chamou o voo 4361. Se tudo desse certo, conseguiria a última conexão para casa. Encaminhou-se à fila de embarque, a música colada, insistia o seu refrão: quando chover, deixar molhar….

Sobre o autor

Nina Veiga

A artemanualista e ativista delicada Nina Veiga é doutora em educação, escritora, conferencista. Sua pesquisa habita o território da casa e suas artes, na perspectiva da antroposofia da imanência. É idealizadora e coordenadora do coletivo Ativismo Delicado e das pós-graduações: Artes-Manuais para Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar. Desenvolve trabalhos de formação de artífices e escritores. Suas oficinas associam o saber teórico-conceitual às artes-manuais como modo de existir e à escrita como produção de si e do mundo.

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