Eu nem deveria estar aqui escrevendo. Um dia cheio de sol como este envia um convite quase irrecusável para meu espírito libertário se livrar do mofo e sair pedalando sem rumo, diante desse sol brilhante que me invade tanto a alma quanto o escritório de onde escrevo esta crônica. Mas meu espírito incorrigível de eterno buscador acaba vencendo a disputa e cá estou eu, deixando a bike para amanhã, que a previsão garantiu trazer um dia mais bonito ainda, confiando que o sol continuará nascendo todos os dias, mas a inspiração que chega de repente raramente se mantém viva até o dia seguinte.
Estou eu aqui querendo entender o porquê dessas paixões sem sentido (para mim, pelo menos!) a que as pessoas se entregam, e me perguntando ao mesmo tempo, porque eu, mesmo me esforçando, nunca consegui manter alguma delas mais do que por um curto período. Mas a verdade é que gosto disto, a de não me sentir submetido a nenhuma, exceto o sentido que me prende à minha própria liberdade ou às pessoas das quais me aproximo por algo bem menos profundo do que seus discursos dogmáticos!
Serei um ET? Mas como um ET sabe se tratar de um se nunca sair de seu próprio meio? Às vezes o mundo à minha volta parece tão estranho ao que trago por dentro que me dano a perguntar se me trouxeram de algum outro planeta, mas esqueceram de me contar. Quem saberia me dizer como se pode passar uma vida inteira se perguntando porque as paixões – como a qualquer outro mortal – não o definem, e ainda assim gostar de se sentir esse alienígena que nada contra a maré? Pois é exatamente o que me pergunto há décadas, e até agora não consegui sequer me aproximar de uma resposta, mas somente acumular um número cada vez maior de perguntas, pois que as primeiras nunca são suficientes para aplacar uma sede sabidamente insaciável.
Sei… Você que lê este texto não deve estar entendendo nada do que estou falando. Compreensível. Já me fiz essa pergunta também e foi difícil chegar a uma resposta plausível. Mas tenho motivos de sobra para achar que eu tenho um ET enrustido lá dentro desta configuração de carne e osso. Não consigo entender, por exemplo, porque praticamente todo mundo no país em que vivo tem que ser fanático por futebol… e eu não gosto! Por que é que todo mundo que conheço é fanático por cerveja… e eu não suporto! Ou porque um montão de gente apoia algum mito que eu odeio!
Tá! Pisei no seu calo agora e tenho que abrir mais a coisa. A ideia não era entrar por essa seara, mas já que entrei, vamos lá. Não é que eu seja imune a paixões, mas o que sei é que algo impede que eu me afogue nelas. De quando em quando, até mergulho mais fundo, mas é só para, quando voltar à tona, poder comparar o que senti lá do fundo com o percebido aqui em cima, e não acabar dominado por nenhuma das duas.
Em tempos de redes sociais, é impossível não topar com algum desses heróis acima do bem e do mal – ou até um anticristo, sei lá – que seguidor nenhum ousa questionar, e isso é um fator que, por si só, já me provoca arrepios. E a razão é simples: pela minha ótica “auto aflorada”, nada absolutamente, dentre tudo o que se coloca entre Deus e o diabo, está livre de ser questionado, inclusive os próprios.
Se eu concebesse um deus que nos dotasse de inteligência para questionar o resto, exceto ele mesmo, seria difícil distingui-lo de qualquer ditadorzinho de uma república de bananas. Não o vejo tão “sem noção” para cobrar ser aceito por esse viés, e isso me remete ao velho enigma das paixões inquestionáveis: por que não acontecem comigo, se vistas como razão de ser por tantos? Seria mera pretensão minha de parecer “especial”, ou o meu ET interno gritando algo tipo “pula fora que vai entrar numa furada”? Acho que nunca o saberei!
A questão é que tem algum troço lá, no fundo, alguma espécie de luzinha vermelha no painel – e eu não sei como nem por quê – que parece piscar, me avisando a hora de mudar a rota. E não adianta tentar resistir, porque a rejeição a ela entra num crescente tão automático que, a partir daí, não consigo seguir em frente sem sentir todos os pelos do corpo em pé. E é quando meus diálogos internos entram em cena, tentando explicar o fenômeno da repulsa espontânea e auto insurgida como sexto sentido, algo assim, me forçando a ligar os pontos e levantar-lhe as arestas, até que aflore ao plano consciente. E de novo as famigeradas (e recorrentes) elucubrações: “Onde estão os outros?…”
Mais tarde, vêm as tentativas de entendimento: “Por que as pessoas atuam como um bando de idiotas anencéfalos, de ‘maria-vai-com-as-outras’? Por que tantos passam por cima do incontestável para manter a postura do ‘impávido colosso’? Acreditariam mesmo numa imponderável teoria da conspiração para explicar tudo o que não querem descobrir? Sentem-se assustadas pela ideia de desconstruírem suas próprias verdades ao tentar entendê-las?”
Mas o mistério maior não recai sobre a razão das pessoas para seguir um rumo que se mostra claramente equivocado, mas, no meu caso, para essa “ficha” cair de repente, sem que eu saiba exatamente a razão. Fico sempre com a imagem desagradável de colocar meu cérebro numa mesa, junto a vários outros, na tentativa de entender por que o meu funciona diferente. E a percepção é a de receber um “suporte técnico” por alguns “hermanos” da além-galáxia: “Seu cérebro parece desprovido do componente comum da paixão direcionada a pessoas ou coisas, tendendo a produzir respostas lógicas na maioria das vezes. Isso o torna refratário a construções que transformam pessoas comuns em heróis, de modo que consiga enxergar suas falibilidades.”
Eureka! Meu ET interno de novo me ajudou a decifrar a parada! Claro que isso não me torna imune a armadilhas de toda ordem. Vez por outra, sucumbo às tendências numéricas que me levam a concluir: “Pessoas analíticas também desenvolvem paixões irracionais em algum momento. Essa é a regra!”– quando então meu “etezinho” interno entra na briga: “Mas essa regra não se aplica a você, porque você é um ET, esqueceu?”… Complicado isso! O conflito se instalou com a ideia de que seria mais fácil sucumbir às paixões, como todo mundo. Mas cadê tesão para sustentá-la? “Pô, não fiquei assim pela desilusão com a vida, muito menos por indiferença. Eu choro vendo uma menina que acabou de recuperar o cãozinho sequestrado… Por que então não consigo entender a paixão do povo sofrendo por seu time?” Pois é! Desenvolver um pensamento ET como padrão pode acabar em tortura pela vida inteira!
Volto no tempo e me vejo décadas atrás – menino ou adolescente – compondo a rodinha fechada do bairro, a minha “turma de fé”, como todo mundo. Lembro do “baseado” passando de mão em mão, até chegar em mim… Estendo para o seguinte, sem o levar à boca, e a turma questiona: “pô, não vai dar nem um “tapinha? Nem para saber o gosto?” E eu: “Não! Não estou nem curioso!”. Tinha também os “Hi-Fi”, os populares “bailinhos” que aconteciam cada vez na casa de um e, como de costume, todo mundo de “Cuba Libre” na mão!… Menos eu, que ficava na Coca-Cola. A turma pira, zoa… Eu nem na deles. Algumas vezes não queriam nem Coca e partiam para um coquetel de frutas… E só com frutas! “Ferrou!” – diziam, e eu nem aí, apesar de toda a zoação.
Aí você vai dizer que foi a formação de casa. Nada! Meu pai fumava desbragadamente, e ele ou mamãe nunca falavam sobre drogas com nenhum de nós. Era tabu, como tantos outros assuntos. Então aquela minha resistência parecia vir do nada, ou dos “hermanos galáticos”, sei lá. Mas o que sei é que não entrava numa de fazer algo apenas porque tudo mundo estava fazendo. Na época nem buscava as razões: não sentia tesão pela coisa e pronto. Apenas seguia meus instintos, sem tentar explicá-los! Não tinha nada de querer ser bonzinho, diferente, ou trazer alguma ideologia por trás. Era falta de vontade pura e simples, vá lá entender a razão!
Só muito mais tarde saí buscando o porquê daquilo, da recusa em entrar na “vibe” da minha turma, como seria o esperado. E finalmente concluí: já era a ausência da bendita paixão! Simples assim! Algo me dizia que o que eles buscavam não me faria a menor falta. Não importa a razão: era uma resposta ao chamado interno e não ao externo, e ponto final!
Lembro que entre os 10 e os 25 anos – como acontece em todas as épocas – sempre tinha alguém para produzir um “frisson” na turma com algum programa, o que levantava uma enorme expectativa neles bem antes do evento. Mas comigo não rolava emoção, muito menos aquele clima de “tentar suicídio” se não fosse convidado. Via como algo natural que poderia ou não acontecer, sem lhe dar poder para alterar meu ritmo.
O avançar dos anos foi me trazendo outras resistências ao senso comum que fui associando às anteriores, permitindo montar aquele quebra-cabeça que me conduziu a uma interessante conclusão: algo dentro de mim produziu uma resistência natural contra qualquer fato com potencial para alterar meu estado de consciência, atuando como um gatilho automático contra a perda do meu poder de decisão.
O que começou apenas como reação instintiva quando eu não tinha sequer uma posição a respeito, posteriormente se revelou a mim como uma “blindagem” desconhecida até por mim, uma espécie de “proteção” mantida até o momento em que pudesse avaliar por mim mesmo se convinha introduzir algum componente novo à minha vida. E ainda não consegui entender, à luz da lógica, a ausência de curiosidade ou expectativa diante de algo novo durante os anos de minha adolescência, uma característica natural desse período que atua como mola impulsionadora para descobertas e novos aprendizados.
Por alguma razão, esse componente não se fazia presente em mim, suprimindo o desejo comum de experimentar coisas em que o comando pudesse saltar de minhas mãos para a experiência em si. Isso entraria aparentemente em choque com uma inquietude intelectual que se debruçava sobre detalhes que meus colegas nem notavam. Mas, no caso desta curiosidade, eu queria explorá-la sem interferências, de dentro para fora, em vez de fazer o caminho contrário.
Mesmo sem conhecer as razões, algo me impelia àquela resistência não vinculada a qualquer crença, ideologia ou valores contrariados: eu a via como uma reação autônoma que não dependia de minha autorização, tipo uma rejeição programada para funcionar no “piloto automático”, caso algum risco entrasse em seu radar. Seria muito fácil atribuí-la a fatores sobrenaturais, se essa fosse a minha tendência, mas preferi me ater à premissa newtoniana de que “o que sabemos é uma gota, e o que ignoramos é um oceano” para apenas aceitar o fato, em vez de tentar entendê-lo, em respeito ao meu ceticismo basilar.
Mas a experiência daqueles tempos acabou se estendendo para muitos outros aspectos que, já na vida adulta, eu reconhecia como “viciantes” de forma consciente, e o desejo de seguir o rito comum ficasse submetida à paixão por uma causa ou pessoa a que se atribuísse um status maior que a própria vontade. Foi quando meu senso crítico se tornou mais acentuado, e com ele a necessidade de uma autonomia crescente em relação a ideias, crenças e leituras externas. Mas claro que isso só me chegou bem mais tarde ao nível consciente, após análise daquele histórico de reações instintivas e não questionadas por muito tempo.
A maturidade acaba convertendo o antigo receio de parecer “herege” ou mero rebelde sem causa em contestação legítima, naquele prazer de assumir a própria essência sem medo de ser feliz. A gente supera o medo de ser punido pelos céus apenas por assumir as próprias dúvidas, ao descobrir-se distante de qualquer “verdade”, antes de se afirmar sobre mitos ou supostas realidades.
– Mas você não tem religião? – me perguntam alguns.
– Já tive, mas não quero mais ter uma!
– Ah! Tornou-se ateu.
– Também não!
– Como assim?
– Até pensei ser ateu num tempinho, mas minha própria racionalidade me impediu. Coisa demais para surgir do nada. Pura lógica, simples assim, mais uma vez!
– Mas acredita em ET!
– A lógica de novo: pretensão demais para um povo dessa poeirinha galáctica em que vivemos. A questão não é existir, mas aproximar os dois.
– Você é pirado!
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E a coisa segue por aí… Sendo visto como “pirado”, mas sempre pirando quais insistiram em tentar entender a minha diferença nessa eterna briga pelo espaço entre iguais que nunca precisou de paixões, de heróis, de crenças, de times, ou de seguir a bússola para um mesmo ponto de atração, em vez de seguir o norte da agulha interna a que só você tem acesso.
Trocar ideias pode não ser tão fácil como se pensa, principalmente quando um dos lados entende o convencimento como uma tentativa de colonizar o outro, como o disse Saramago. Entretanto, na ausência de arreios e verdades construídas, podemos encontrar tempo suficiente para falar de nossas igualdades, entender melhor as nossas diferenças e as complementariedades que geram, que podem inclusive explicar os espíritos indômitos que nos tornamos.