Durante toda minha infância tive como mestra a minha avó com seus simples, não menos sábios ensinamentos sobre nutrição. Muitos deles inclusive, obtive a comprovação na minha formação acadêmica.
Minha árvore genealógica basicamente é formada por indivíduos magros. Nunca tive problemas com excesso de peso, mas, desde sempre, uma alimentação balanceada e equilibrada, não restrita, fez parte da minha vida. Geralmente eu como aquilo que gosto, mas de modo consciente.
Apenas durante o período das minhas duas gestações eu pude sentir o peso aumentado; minhas pernas doíam, cansava facilmente ao subir um lance a mais de escada, não conseguia abotoar a sandália sem ajuda, meus calcanhares ficaram rachados e perdi completamente a minha noção de espaço. Vivia entalando a barriga em catracas. Engordei exatamente o esperado para minha compleição óssea e estatura, mas pude constatar que carregar peso a mais não é algo confortável.
Por alguns anos, trabalhei com obesos mórbidos. E, para que eu pudesse melhor entender aqueles casos, tentei extrair da vivência temporária (gestação) o que seria viver acima do peso. Busquei “sentir” algo que pudesse me ajudar a ajudá-los… Sabe aquela frase que a gente diz sem pensar: “Eu posso imaginar.”… Não, não dá para imaginar algo que você nunca passou, ou sentiu.
Os depoimentos e relatos que eu ouvia nas anamneses me levavam perto da compreensão sobre aqueles comportamentos abusivos e danosos com a comida. Mas, ainda assim, não fazia ideia de como tudo aquilo repercutia do lado de dentro.
Certa vez eu perguntei: O que mais te dá prazer, além do comer? O jovem rapaz, com seus vinte e poucos anos, sentado à minha frente, carregando na bagagem pessoal 45 quilos acima do peso indicado, respondeu constrangido e triste: “Nada, doutora. Eu gosto de dançar, mas me sinto desengonçado dançando, então nunca danço em público. Gostaria de ir ao clube, mas sem coragem para vestir uma roupa de banho. Eu não caibo na cadeira do cinema, nunca tive namorada, e também não tenho amigos para sair ou dividir uma pizza no sábado à noite, então eu peço uma pizza e como ela toda sozinho. Me sinto culpado depois, mas na hora é a única coisa boa que tenho…”
Permaneci em silêncio por alguns instantes, ele também.
Eu tentava rapidamente reter todas aquelas informações e organizar em minha mente. Enquanto sentia meu coração soando estridente dentro de mim feito uma sirene do SAMU. Meu lado racional e emocional estavam em reunião e tentavam estabelecer um consenso. A questão não era somente ficar calculando calorias ingeridas, era algo mais profundo, como um vazio a ser preenchido.
Um complexo ser humano que ao longo da sua vida fora priv ado e limitado de viver. E pude concluir, que eu não tinha o direito de privá-lo ainda mais. Mas podia ajudá-lo a resgatar sua autoestima e lhe apresentar algumas formas de como se sentir pleno sem ficar se empanturrando de comida. Com cuidado, fui propondo mudanças de comportamento que iam resultar numa perda de peso inicialmente sutil, porém constante. A melhor forma de não frustrar é não gerando grandes expectativas.
Apresentei a esse jovem outros modelos de hobbies, e sugeri que toda vez que ele pensasse em comida, buscasse os hobbies para tirar o foco da comida. Ensinei algumas técnicas de autocontrole e também de autoconhecimento. Um dia, pedi que fechasse os olhos e mentalizasse como ele ficaria e se sentiria com quilos a menos e, depois, que fizesse esse exercício mental todos os dias, ao dormir e acordar.
Ele me contou que quase nunca se olhava no espelho. Então, eu disse a ele que ganhamos força para mudar uma situação quando encaramos a mesma de frente. Era necessário ele se olhar, se acolher, para tão somente depois se transformar. Vocês devem estar se perguntando e a dieta?
Ele sabia de cor e salteado o que deveria comer, só não conseguia colocar ação. Já tinha feito dezenas de dietas milagrosas, já havia tomado remédios, entre outras peripécias extremamente agressivas ao corpo e mente. Tudo sem sucesso. E cada vez que fracassava, surgia o peso da culpa que resultava na inércia e consequentemente, recuperava rapidamente o peso e ainda ganhava uns quilos extras.
Foi necessário e prescrito apenas um roteiro alimentar fracionado/equilibrado para que ele pudesse se nortear. Eu tinha o cuidado de não usar termos restritivos. Em vez do clássico ‘”Não pode!”, eu utilizava “Eu sugiro.”. E sempre pontuava “Acredito em você!”.
Nesse paciente, em específico, não realizei nenhuma avaliação para saber seu percentual de gordura (mesmo porque era notório). Minha preocupação não girava em torno de fazer registros de números e nem seguir protocolos, preferia usar o tempo da consulta em motivá-lo a seguir com seu propósito.
Dia após dia, dentro de aproximadamente 24 meses, ele estava apenas 9 quilos acima do peso ideal para sua estatura e compleição óssea. Feliz e realizado… como nunca.
Dois anos para conquistar algo que almeja, muito tempo? Sério!? Ele não achou, porque nunca antes havia experimentado ser um indivíduo livre e autônomo. Desde criança obeso, sofreu com restrições e bullying. Se vitimou até aquele momento, quando percebeu que somente ele poderia ser o protagonista da sua própria história, assumiu seu papel, ocupou seu espaço, tomou as rédeas da situação…
Esse foi o tempo necessário para que esse jovem pudesse construir sua “nova morada”. Compreendendo a sua mente, aprendendo a lidar com suas fraquezas e potencializando seus pontos fortes, se aceitou, se respeitou, e se preencheu a tal ponto que não precisaria mais da comida para fazer isso.
Foi legal fazer parte dessa conquista e de muitas outras. Mas o processo é doloroso até para mim que apenas acompanhava trajetórias. Constatar a que ponto chega o descontrole e desequilíbrio alimentar/emocional e como esses transtornos privam, sentenciam e abreviam a vida das pessoas.
Atualmente a obesidade é considerada o maior problema de saúde pública, sendo que grande parte da população obesa tem a infância como uma de suas principais vias. Então, o universo proporcionou a minha oportunidade de superação, ir além do ficar remediando.
A minha superação se transformaria no meu propósito de trabalho. Tem um modo inusitado de ser aplicado, além de muito ousado. Mas eu sou assim, movida a desafios…
A resiliência foi surgindo na medida que fui atravessando vales sombrios acompanhando meus pacientes adultos que, muitas vezes, estavam com o fator saúde em apuros, lembrando que as causas podiam ter sido evitadas. Apesar de anos na clínica, eu me permiti mudar de caixa e adentrar num mundo mágico, literalmente de conto de fadas…
Crianças… Há quem pense que é muito complicado fazê-las comer de modo saudável. Bom, fácil também não é! Mas digamos que eu acertei a mão na mistura dos ingredientes para criar uma poção mágica estratégica.
Já se passaram 10 anos desde que iniciei minha jornada nesse mundo encantado… tão doce quanto mel, tão colorida quanto o arco-íris.
Ser uma Nutri Fada foi a coisa mais linda que me ocorreu.
Alguém precisava fazer propaganda sobre os nutritivos e mágicos alimentos do Papai do Céu, alguém precisava contar a magia que ocorre na natureza e depois no corpo humano. Sim, a magia da semente que se transforma em outro fruto, a magia de um alimento que se transforma numa nova e minúscula partícula de energia e comidinha para nossas pequenas células. A magia do crescimento e desenvolvimento…
Crianças não sabem que existem vidas microscópicas vivendo dentro da gente, logo nunca pensam para onde vão os alimentos. Por que devemos comer? Que importância isso tem? Quais são as comidas preferidas das células… Crianças, de modo geral, têm tendência a aderir condutas que fazem sentido para elas. E ponto.
Me digam, o que é mais fácil: construir ou reformar? Educação Nutricional se aplica principalmente em crianças, e de preferência nas escolas (nos hospitais não cabe mais, fica fora do contexto). Ah, já testei no coletivo tem um efeito multiplicador e rápido. A escola é um ambiente que faz parte da trajetória de vida de todos nós. Nela vivenciamos o conhecimento e compartilhamos momentos que levamos conosco durante toda a vida.
Eu, particularmente, acho o processo de construção mais efetivo. Na proporção que vão crescendo em estatura, se tiverem acesso ao aprendizado e senso crítico, crianças e jovens terão mais consciência e sabedoria para saber discernir qual a diferença de um alimento que nutre o organismo daquele que só enche a barriga.
Sem contar, com a facilidade nata que possuem de aprender, a falta de vergonha de perguntar e a típica curiosidade.
Tudo isso torna o aprendizado mais rico, prazeroso e oportuno.
Paciência não me falta, toda semana, em responder cartas com perguntas fofas e interessantes. E, com isso, a cada dia cresce a minha convicção que essas crianças não esquecerão das respostas dessas cartas mágicas quando adultos.
Enfim, eu concordo plenamente com a frase dita ao mundo inteiro pela corajosa menina Malala Yousafzai, em 2014, em defesa ao seu direito à educação: “Uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo. Educação, a única solução.”.
Sim, Malala! A Educação Nutricional também é a única solução para tornar decrescente índices estatísticos de Obesidade Infantil no planeta. A Saúde já está num processo caótico e agonizante, quase numa UTI. E os alimentos de verdade têm o poder de reverter isso… Pena que muitos ainda não se deram conta disso. Precisam voltar para a escola. Sorte que nunca é tarde para aprender… Estamos juntas.
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