O lembrete dizia: não se esqueça de colocar o lixo para fora. Beijos, Ana. O bilhete estava bem ao lado da lixeira. Pisou no pedal, a tampa abriu. Cascas de ovos, embalagem de manteiga, restos de comida. O lixo continuava dentro. Virou-se para a janela e respirou fundo. Bilhete… marcas inertes sobre o papel. Respirou forte mais uma vez. A inspiração inibiu a lágrima que tentava escorrer.
Enquanto amarrava com dois nós o saco de lixo, lembrou-se do texto que há dias tentava escrever: Micropolítica da existência. Como afirmar a vida que se vive? Saiu pelo corredor do prédio em direção ao elevador. O cheiro de lixo velho inundou o cubículo iluminado que descia os seis andares com lentidão. Sentiu-se sufocar. O elevador parou no terceiro andar. O vizinho do 34 entrou. Boa noite!
O térreo demorou a chegar. Uma vida que se vive. Lixo. Nem sequer conseguia selecioná-lo. Garrafas de plástico, cascas de frutas, restos de papel, tudo misturado. Sentia-se fracassar. A porta finalmente abriu e o ar entrou. Caminhou até as lixeiras coletivas. Abriu a tampa do contêiner azul. Para a sua surpresa, estava vazio. Depositou com cuidado o pequeno saco no espaço vazio.
Seu Luiz perceberia que o lixo não estava selecionado. Sentir-se-ia constrangida toda vez que encontrasse com ele na portaria. O lixo. Um detalhe aparentemente insignificante ganhava outra dimensão diante daquilo que tentava elaborar: uma vida que se vive. Como afirmá-la?
Ouviu a voz do colega: “Nem tudo deve ser afirmado, Ana, há aquilo que se deve passar ao largo”. Será? Passar ao largo do lixo? Não escrever um bilhete? Seria isso? Ao apertar o botão de subida, lembrou-se da tal questão fundante na teoria do bem em Platão: o como avaliar. Como saber o que passar ao largo e o que afirmar? Entrou no elevador.
Lá dentro, foi Spinoza quem respondeu: o que aumenta a potência de vida. Olhou-se no espelho: prazer? Spinoza respondeu: alegria! Voltou ao apartamento, ligou o computador e escreveu: A constituição de uma micropolítica da existência, afirmativa da vida que se vive, transforma cada detalhe em potência alegre, já que o vê como parte de sua dinâmica fundamental.
Ficou pensando no modo de pesquisar a que se propunha, no âmbito das filosofias da diferença, a partir, especialmente, de Deleuze e Guattari. “Pôr em jogo as coisas teóricas”, como diria Bourdieu, ou seja, não apenas dissertar teoricamente sobre os conceitos ou mostrá-los em ação nas obras literárias ou na arte, ou no campo de estudos, mas operar com os conceitos no viver da pesquisa e da escrita.
Tentar experimentar o avesso de uma prática acadêmica onde os discursos teóricos antecedem e se articulam a objetos de estudo pré-construídos. Pensou no lixo e no bilhete. Na quinta, outra vez? Quanto lixo duas pessoas conseguem produzir? Operar com os conceitos toma proporções existenciais ainda maiores quando, com Nietzsche, se quer pesquisar em uma dinâmica afirmativa da vida viva.
Pesquisar em meio à vida, e não em um gabinete fechado, é um desafio de corpo inteiro. Suspirou, enquanto revirava o livro, em busca de uma citação. Filósofo nenhum imaginou um pesquisar junto aos afazeres domésticos.
Riu sozinha, ao mesmo tempo, em que, na página vinte e cinco, encontrou o que procurava: “arrogância da ignorância”. Não, não iria por aí.
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Uma escrita cotidiana de forno e fogão, desafio que pede a convocação de uma força maior. Lembrou-se de outro livro. Onde estava? Uma força maior, força que aciona o desejo de vida, a capacidade de dizer sim à vida, de enfrentar os combates físicos e existências que compõem sua dinâmica fundamental.
Força que, junto aos fazeres repetitivos infinitos, que entram em jogo quando se prepara o almoço, se leva o lixo para fora, se lava a roupa, se faz o pão, seja ela mesma repetitiva e infinita. Força que produz a capacidade de escrita em meio à vida como potência afirmativa. Força que responde pelo nome de alegria e implica em uma aceitação integral dos aspectos perigosos, problemáticos, repetitivos, entediantes, enigmáticos da existência. Ah! Eis o livro! Clément Rosset: Alegria – força maior.