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Devir – mulher da escrita

Imagem de uma mulher usando um moletom branco. Ela está sentada e sobre uma mesa, está escrevendo em um carderno. Ao lado, uma caneca de chá e um arranjo floral.
Anna Ostanina de Getty Images grátis para o Canva Pro
Escrito por Nina Veiga

Ser mulher é estar em constante transformação, criando uma “mulher molecular” em fluxo contínuo. A vida é uma mistura de tarefas diárias e escrita, onde tudo se interage: a cozinha, a biblioteca, a vida doméstica. A escrita se mistura à vida, é imperfeita e viva, refletindo a realidade cotidiana.

Ser mulher implica em criar um corpo em abertura ao inacabado, um corpo aberto a todos os outros devires que o possam povoar. Diz o filósofo Gilles Deleuze devir-mulher não é: “… nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que entram em aproximação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma micro-feminidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular, criar a mulher molecular”. Sendo que o molecular inclui os fluxos, as intensidades e os devires

Galo cantou, madrugada na colina. Manhã menina está na flor do meu jardim… Desde cedo na lida da casa, na escrita da crônica diária, na organização do trabalho.

A vida viva está a toda: é pão, é pedra, é mato. Movimentação rente aos elementos do viver. Momento presente, vida de roça, vida doméstica com ervas, escrita e fogão. Louça para lavar, texto para escrever, roupa para estender. Sol, grama, barro.

A biblioteca na cozinha, o ateliê na varanda, a fiação na sala, a leitura na cama. Tudo misturado. Uma vida acontecendo entre. Uma vida em devir. Devir-vida. “O devir está sempre ‘entre’ ou ‘no meio'”, escreve o filósofo, no isolamento do seu gabinete.

E continua: “Escrever é um caso de devir… “. Mal sabia ele o tanto de ‘entre’ que se vive em um devir-mulher da escrita. Misturas, fronteiras incertas, calda quente da escrita, é pão, é mato, vitamina para a criança girando no liquidificador. O filósofo junto, lido na cozinha, respingado de feijão.

Ele nem imaginava que sua frase “Pudesse-se instaurar uma zona de vizinhança com não importa o quê… “seria misturada ao arroz, ao angu. Sua filosofia dando a pensar, enquanto se lava a louça, olhando a grande pedra pela janela da cozinha.

A montanha de pedra, soberano monumento que não deixa esquecer que são eles, os elementos, que movem o viver.

Uma vida junto aos elementos, afetada por eles, uma vida plena de necessidades: fazer o pão, cozinhar a mandioca, colher a hortelã para o chá que amaina a dor. Necessidades. Uma vida necessária, plena de sentido e sentires. E entre tudo isso, a escrita se dá.

Imagem de uma mão masculina escrevendo em um papel, usando uma caneta tinteiro.
ucius / Getty Images / Canva Pro

Uma escrita em meio à vida. Uma escrita misturada, interrompida. Pensamentos que escapam, ideias que se esquecem, anotações que se perdem.

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Tirando a escrita de sua linearidade, afetando sua consistência, colocando-a em risco, sujando a escrita com a vida que se vive. Operação de afastamento da escrita de uma idealidade, que a imagina fruto de um trabalho contínuo, no silêncio da biblioteca, de uma introspecção reflexiva, em um trabalho intelectual intenso e preciso.

Uma escrita de meio à vida, que disputa espaço com a varrição da casa, com o preparar da salada. Uma escrita que se suja de gordura.

Uma escrita pior, muito pior do que poderia ser. Uma escrita viva e imperfeita feito a vida de qualquer pessoa.

Sobre o autor

Nina Veiga

A artemanualista e ativista delicada Nina Veiga é doutora em educação, escritora, conferencista. Sua pesquisa habita o território da casa e suas artes, na perspectiva da antroposofia da imanência. É idealizadora e coordenadora do coletivo Ativismo Delicado e das pós-graduações: Artes-Manuais para Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar. Desenvolve trabalhos de formação de artífices e escritores. Suas oficinas associam o saber teórico-conceitual às artes-manuais como modo de existir e à escrita como produção de si e do mundo.

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