Ser mulher implica em criar um corpo em abertura ao inacabado, um corpo aberto a todos os outros devires que o possam povoar. Diz o filósofo Gilles Deleuze devir-mulher não é: “… nem imitar, nem tomar a forma feminina, mas emitir partículas que entram em aproximação de movimento e repouso, ou na zona de vizinhança de uma micro-feminidade, isto é, produzir em nós mesmos uma mulher molecular, criar a mulher molecular”. Sendo que o molecular inclui os fluxos, as intensidades e os devires
Galo cantou, madrugada na colina. Manhã menina está na flor do meu jardim… Desde cedo na lida da casa, na escrita da crônica diária, na organização do trabalho.
A vida viva está a toda: é pão, é pedra, é mato. Movimentação rente aos elementos do viver. Momento presente, vida de roça, vida doméstica com ervas, escrita e fogão. Louça para lavar, texto para escrever, roupa para estender. Sol, grama, barro.
A biblioteca na cozinha, o ateliê na varanda, a fiação na sala, a leitura na cama. Tudo misturado. Uma vida acontecendo entre. Uma vida em devir. Devir-vida. “O devir está sempre ‘entre’ ou ‘no meio'”, escreve o filósofo, no isolamento do seu gabinete.
E continua: “Escrever é um caso de devir… “. Mal sabia ele o tanto de ‘entre’ que se vive em um devir-mulher da escrita. Misturas, fronteiras incertas, calda quente da escrita, é pão, é mato, vitamina para a criança girando no liquidificador. O filósofo junto, lido na cozinha, respingado de feijão.
Ele nem imaginava que sua frase “Pudesse-se instaurar uma zona de vizinhança com não importa o quê… “seria misturada ao arroz, ao angu. Sua filosofia dando a pensar, enquanto se lava a louça, olhando a grande pedra pela janela da cozinha.
A montanha de pedra, soberano monumento que não deixa esquecer que são eles, os elementos, que movem o viver.
Uma vida junto aos elementos, afetada por eles, uma vida plena de necessidades: fazer o pão, cozinhar a mandioca, colher a hortelã para o chá que amaina a dor. Necessidades. Uma vida necessária, plena de sentido e sentires. E entre tudo isso, a escrita se dá.
Uma escrita em meio à vida. Uma escrita misturada, interrompida. Pensamentos que escapam, ideias que se esquecem, anotações que se perdem.
Você também pode gostar
Tirando a escrita de sua linearidade, afetando sua consistência, colocando-a em risco, sujando a escrita com a vida que se vive. Operação de afastamento da escrita de uma idealidade, que a imagina fruto de um trabalho contínuo, no silêncio da biblioteca, de uma introspecção reflexiva, em um trabalho intelectual intenso e preciso.
Uma escrita de meio à vida, que disputa espaço com a varrição da casa, com o preparar da salada. Uma escrita que se suja de gordura.
Uma escrita pior, muito pior do que poderia ser. Uma escrita viva e imperfeita feito a vida de qualquer pessoa.