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É sempre bom lembrar: sobre o jogo do contente

No foco da imagem há um disco de vinil tocando em um aparelho "toca-discos". E ao lado dele, há algumas capas de discos de vinil empilhadas e um fone de ouvido.
Przemek Klos / Canva
Escrito por Nina Veiga

Um copo vazio está cheio de ar. Mas e as emoções? Vivemos em uma era onde a busca pela felicidade parece não dar espaço para sentimentos mais profundos ou “menos alegres”. O que acontece quando o vazio se torna essencial para o preenchimento? Descubra a reflexão que nos desafia a pensar além da felicidade.

É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar. O YouTube trouxe-me um clipe aleatório, ao invés do gesto automático de rolar a tela com o dedo, fiquei. A voz de Chico Buarque. A imagem reflexiva do cantor, na capa do clipe, convidou-me à reflexão, à pausa. Escuto mais um verso da canção composta por Gilberto Gil:

“É sempre bom lembrar
Que o ar sombrio de um rosto
Está cheio de um ar vazio,
Vazio daquilo que no ar do copo
Ocupa um lugar”.

Verso intrigante. Interessante pensar que o que é vazio para um é cheio para outro. “Vazio daquilo que no ar do copo ocupa lugar”. A música e a foto me fazem pensar sobre emoções, suas denominações e avaliações. Há emoções que se legitimam socialmente, outras não. Não creio que o rosto do Chico esteja sombrio, mas sim introspectivo.

No entanto, hoje em dia, devido à ditadura da felicidade, qualquer emoção menos “alegre” é desqualificada, logo taxada de sombria, negativa. Não se fica mais na fossa, não se permite que o luto dure, não se pode refletir, meditar ou ter uma ação introspectiva que logo vem alguém dizendo ‘sai dessa’, ‘a vida segue’, ‘anime-se’.

Uma mulher loira está com as duas mãos no rosto, ela apresenta uma feição de cansaço.
Mart Production / Pexels / Canva

Afinal, toda a gente quer ser alegre. Toda a gente quer ser feliz. Toda a gente quer superar. Ver o cheio ao invés do vazio. Ser positiva, otimista, toda a gente quer e, desse modo, emoções menos festivas são omitidas ou disfarçadas.

Agora, estou escutando a gravação do Gil. Dá vontade de convidar o prezado leitor a escutar a voz doce do baiano cantando: “Uma metade cheia, uma metade vazia”. É tanta delicadeza que até me faz envergonhar da crítica que acabei de fazer a toda gente que quer ser feliz, ser positiva.

Pensando bem, pode ser, sim, que eu tenha sido um pouco sombria, mal-humorada, a criticar toda gente que quer ser sempre e sempre alegre. É que não gosto muito de monoemoções, não me dou bem com o jogo do contente. Sabe, acho mesmo que a vida vale ser vivida e celebrada, mesmo quando há tristeza, dor, temor. Talvez, uma vida assim, sombria, deva ser ainda mais celebrada.

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Pois é fácil viver alegre com motivos para alegria, mas quero ver é viver alegre e continuar a viver em alegria, quando não se tem nada para alegrar-se. Aí, sim, é preciso coragem, aí, sim, é preciso força. Quando o copo está vazio, quando o rosto está pleno de dor, aí, sim, é preciso afirmar a vida e continuar a viver. Afinal, é sempre bom lembrar que “a dor ocupa metade da verdade, a verdadeira natureza interior”.

Sobre o autor

Nina Veiga

A artemanualista e ativista delicada Nina Veiga é doutora em educação, escritora, conferencista. Sua pesquisa habita o território da casa e suas artes, na perspectiva da antroposofia da imanência. É idealizadora e coordenadora do coletivo Ativismo Delicado e das pós-graduações: Artes-Manuais para Educação, Artes-Manuais para Terapias e Artes-Manuais para o Brincar. Desenvolve trabalhos de formação de artífices e escritores. Suas oficinas associam o saber teórico-conceitual às artes-manuais como modo de existir e à escrita como produção de si e do mundo.

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