Mitologia grega

Ensaio sobre a boceta de Pandora

Ilustração de boceta com floral em volta
Escrito por Alex Gabriel

As cortinas de maio, mês das mães, já se fecharam, encerrando, assim, um espetáculo repleto de coragem, benevolência e delicadeza. A despeito disso, porém, este texto se dedica a tratar de algo que vez ou outra está na boca da gente, mas que raramente é discutido com seriedade. Eu estou me referindo à BOCETA. Mas calma, pois, ao menos a princípio, não me refiro à boceta como sendo aquele lugar de onde todos nós viemos, mas à palavra em si.

Sim, eu sei que a palavra lhe soa ofensiva, e possivelmente mais do que outras – como pepeka, xoxota, xana etc. – comumente utilizadas para designar a vulva. Eu não sei o porquê dessa resistência ao termo, mas acredito que uma investigação das origens de “boceta” como referência à genitália feminina – e, por conseguinte, como tabuísmo – possa desconstruir um pouco esse caráter negativo do termo.

Uma provável explicação está na mitologia grega. E, sim, estamos falando dela, da “caixinha de Pandora”, que, em verdade, nunca foi caixinha, mas, originalmente, boceta.

A boceta de Pandora.

Derivada da antiga expressão francesa “boucette” – com registro lá no século 14 e sendo diminutivo de “boce/bosse” (vasilha) –, faz parte do léxico português, designando uma pequena caixa redonda ou oval destinada a objetos pessoais, como joias. Voltando ainda mais no tempo, vemos que “boceta” tem origem do latim e do grego, sendo equivalente à “caixa”, mas, conforme já dito, com as características que a diferem de uma caixa comum. Ademais, a expressão “boceta de Pandora” é comumente utilizada como referência a algo que gera curiosidade, mas que não deve ser revelado.

Existem muitas versões da história, de modo que, por essa razão – bem como para não nos desviarmos da boceta, que é o nosso foco aqui –, não vamos entrar em detalhes, ficando, aqui, sugerida a pesquisa, que vale muito a pena.

Caixinha fechada com luz baixa
Foto de Jouwen Wang no Unsplash

Fato é que tudo começou com uma treta entre Zeus, rei do Universo, e os irmãos Epimeteu e Prometeu, incumbidos da criação dos animais para povoamento da Terra. Enquanto Epimeteu criava os moldes dos animais e lhes atribuía qualidades, Prometeu supervisionava o trabalho do irmão.

O foda foi que Prometeu acabou por se afeiçoar ao homem, último animal criado pelo irmão, e, objetivando colocá-lo em posição de vantagem sobre os demais, roubou para ele o fogo dos deuses, contrariando o deus do Olimpo, que o havia proibido terminantemente de concedê-lo à criatura humana recém-criada do barro.

Não deu outra: Zeus condenou Prometeu a um castigo horrível, do qual só foi liberto anos mais tarde, graças a Hércules. Mas o fato de a desobediência haver sido de Prometeu não isentava o seu irmão da culpa. Afinal, era ele o artista por trás da criatura humana. E foi a partir desse raciocínio que Zeus teve a ideia de dar a Epimeteu um “presente de grego” (mas essa expressão tem origem em uma outra história, ok?), encomendando aos deuses Hefesto e Atena uma companhia para o homem. E eis que vem à luz uma obra-prima de nome Pandora – do grego “pan” (todos) e “doron” (presente), significando algo como “todos os presentes”.

Criada Pandora, os dois recorreram a outros deuses do Olimpo a fim de dar qualidades à bela criatura. Assim, Pandora recebeu a beleza, a graça, a sabedoria, a destreza manual, a persuasão, a delicadeza, a arte da dança etc. Zeus, porém, objetivando ensinar a humanidade a nunca desacatá-lo, como o fizera Prometeu, concedeu à Pandora um defeito – a curiosidade –, e, paralelamente à criação da jovem, criou uma boceta (caixa ou até jarro em outras versões) de beleza imensurável, aprisionando em seu interior todos os males do mundo: a raiva, a inveja, a tristeza, o ciúme, a preguiça e um outro mal um tanto controverso, sobre o qual falaremos em seguida.

Senhora moldando vaso de barro
Foto de Quang Nguyen Vinh no Pexels

Assim, portando a suntuosa boceta, Pandora foi enviada a Epimeteu como recompensa pela sua contribuição no povoamento da Terra. Todavia, cabreiro pelos alertas dados pelo irmão Prometeu, Epimeteu se decidiu por não sondar a boceta trazida pela sua adorada companheira, pois um presente vindo do outrora irado Zeus não haveria de ser coisa boa. E assim eles tiveram uma vida muito feliz sem tocar na boceta… mas não por muito tempo.

A despeito dos protestos de Epimeteu, Pandora acabou por ceder à sua curiosidade, e, abrindo o recipiente, libertou todos os males, que se espalharam mundo afora e envolveram a humanidade em guerras, doenças e afins.

Assustada, a bela Pandora fechou o recipiente antes que dele escapasse o último mal. Aquele controverso sobre o qual falamos lá atrás: a ESPERANÇA. Deve ser por isso que dizem que “a esperança é a última que morre”

A boceta é, portanto, a maior dádiva e a maior desgraça do homem. A sua glória e a sua perdição. Não é de se estranhar, por exemplo, que o grande Machado de Assis haja mencionado a expressão “boceta de Pandora” em sua obra máxima, “Dom Casmurro”, que nos apresenta a enigmática Capitu.

A boceta que outrora aprisionava os males do mundo tem uma relação análoga com a boceta que ora aprisiona os corações. E não pense você que qualquer semelhança com a alegoria bíblica seja mera coincidência. Uma companheira para Adão, o fruto proibido, a desobediência de Eva, o conhecimento do bem e do mal etc.

A propósito, confrontar as mitologias grega e judaico-cristã nos auxilia, inclusive, na compreensão do papel da esperança nessa história toda. Ora!, o mesmo cristianismo que considera que Eva tenha dado à luz o pecado – tal como Pandora – exalta, sobretudo em sua expressão católica, aquela que teria dado à luz o Salvador.

Então, se tanto a desgraça (pecado) quanto a salvação (o Cristo) vieram de uma boceta, parece incontestável a conclusão de que o uso de tal termo para designar a vulva se dê pelo seu potencial de gerar o bem e o mal. E aqui podemos até estabelecer uma relação com aquela famigerada (e não raro irresponsável) ideia do senso comum de que as crianças são o futuro da nação, da humanidade etc., sendo a mulher o único ser capaz de gestar esse futuro (uma imagem muito poética, aliás).

Baú aberto com luz refletindo
Foto de David Bartus no Pexels

Vale dizer que, se tentamos aqui, por meio de abordagem etimológica e mitológica, desconstruir a conotação negativa de “boceta”, as feministas já o vêm fazendo com uma abordagem mais política como forma de honrar a sua genitália. Tal como as espiritualistas, que lhe conferem – ou reconhecem – a sacralidade. E isso tudo, salvo os exageros, me parece muito válido, sobretudo como forma de fazer face a uma sociedade patriarcal, que, tal como nas alegorias aqui abordadas, culpabiliza a mulher, à qual cabe resguardar-se. Uma sociedade na qual a mulher tem culpa de ser estuprada. Uma sociedade que faz de “galinha” elogio para o homem e insulto para a mulher.

Mas se por um lado o mito pode ser tomado como reflexo de uma sociedade machista por outro podemos fazer dele uma nova leitura, concebendo-o como um elogio ao poder e autonomia da mulher. Veja bem: foi de Pandora a decisão de abrir o recipiente, assim como foi de Eva a iniciativa de provar do fruto da Árvore do Conhecimento. E mesmo a concepção do Salvador demandou o “sim” de Maria. Nós estamos falando sobre CONSENTIMENTO.

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Eis aí o poder do mito, do quanto podemos compreender de nossa sociedade por meio dele e, quem sabe, transformá-la. Eis aí o papel libertador da arte, inclusive no que tange à emancipação feminina, desde “A Origem do Mundo”, de Gustave Coubert, até “My Pussy É o Poder”, de Valesca Popozuda (e não vamos discutir qualidade aqui…).

Faço deste texto uma homenagem à mulher, exaltando a sua presença decisiva no mito e na história, bem como as virtudes por ela ensinadas por meio da sabedoria de Gaia, da poesia de Brighid, da subversão de Lilith, do silêncio de Maria, da soberania de Kuan Yin e da imponência de Iansã. A elas, personagens reais e fictícias, indispensáveis à compreensão do mais remoto passado dos homens. E, claro, à boceta, que nos deu passagem para este mundo e, por conseguinte, a possibilidade de fazermos por aqui algo que valha realmente a pena.

Sobre o autor

Alex Gabriel

Mineiro de Belo Horizonte, Alex Gabriel é graduado em Letras e especialista em Revisão de Textos pela PUC Minas. É poeta, pai adotivo das vira-latas Diva e Nathalie, tem sempre um bom livro a tiracolo, acredita na Educação e vive cheio de fé na humanidade.

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