Autoconhecimento

Existirmos: a que será que se destina?

Mulher branca de braços abertos iluminada pelo sol.
JM Lova / Unsplash

Esta estrofe inicial da música “Cajuína”, de autoria de Caetano Veloso, encerra uma questão essencial à trajetória do homem no mundo. Os filósofos gregos, em especial Aristóteles, e, posteriormente, São Tomás de Aquino, consideravam que todos os seres existem em estado de potência e ato, isto é, trazem consigo as condições de virem a ser. Trazem em si mesmos uma essência predeterminada que pode vir a realizar-se , segundo o fim que lhes é inerente. Por exemplo, uma semente traz, potencialmente, a capacidade de transformar-se numa árvore, uma criança tem em si a potência de ser um adulto. Assim, segundo essa concepção, o ser humano tem uma essência abstrata e universal que o distingue de todos os demais seres: o homem é um animal racional. Tal essência realiza-se, ou melhor, transforma-se em ato pela ação individual de cada ser humano.

Fazendo contraponto à concepção essencialista, o existencialismo do século XIX nega que a ação humana seja predeterminada por essa essência abstrata e universal, afirmando que a existência precede a essência. Isso significa dizer que o homem, na medida em que existe, constrói sua humanidade. Em outras palavras, a vida humana é um projeto em permanente construção, na proporção em que cada indivíduo exerce sua liberdade de agir e ser.

Deixando de lado os reveses que alimentam até hoje a discussão gerada por essas concepções, gostaríamos de tomar como ponto de partida uma constatação: o homem, o ser humano, existe. Ocupa um espaço e um tempo determinados, mas é diferente dos demais seres que vivem no mundo. Ele sempre teve uma percepção clara dessa diferença e, por isso, foi capaz de agir sobre a natureza e produzir cultura, entendida aqui no sentido amplo do termo.

Obviamente, o comportamento do ser humano, ao longo do temoi, deixa marcas visíveis de suas concepções, conhecimentos, hábitos e atitudes. Tais marcas demonstram sua capacidade de transformar o mundo e si mesmo, diante dos desafios da sua existência. Aliás, foram os desafios de toda natureza que permitiram ao ser humano passar pelos vários estágios de evolução, do “homo neanderthalensis” até o “homo sapiens” que, em sua origem, há cerca de 300 mil anos, caracterizava-se por sua capacidade de reconstruir simbolicamente o mundo, produzindo tecnologias para o domínio da natureza, criando novas modalidades de organização do trabalho e da sociedade, aprimorando sua alimentação e seu vestuário, inventando novas formas de comunicação por meio do uso da linguagem. A descoberta e o exercício dessas aptidões possibilitaram ao ser humano chegar até os dias de hoje. Portanto podemos afirmar que a capacidade simbólica e reflexiva fez do homem um ser diferente e especial em relação ao conjunto dos demais seres vivos que habitam o planeta Terra.

É isto, meu caro leitor: somos diferentes e especiais. Evoluímos muito e, com certeza, ainda evoluiremos. Nesse processo, quantas coisas maravilhosas já fomos capazes de inventar (e ainda inventaremos) para tornar nossa vida mais duradoura, aprazível e motivante! No entanto não podemos negar que, apesar de toda essa evolução, não nos sentimos plenamente seguros e felizes. Vivemos tempos conturbados, e isso afeta a nossa tranquilidade. Onde poderemos ancorar nossa vida? Todos nós desejamos ser felizes. Aliás, esse sempre foi o desejo da criatura humana. Porém onde estaremos nós buscando a tal felicidade? O que ela representa para nós? Será mesmo possível alcançá-la na vida terrena, diante de tantas adversidades? O que o estado de felicidade requer de nós?

Mulher de costas sentada jogando areia para cima.
 Frida Aguilar Estrada / Unsplash

Epicuro (um dos maiores pensadores éticos que viveu no século III a. C.) afirmava que o homem nasceu para ser feliz e para isso está destinado. Para ele, o sofrimento não determina a vida humana, mesmo o sofrimento físico. O homem não está à mercê das circunstâncias; ele é senhor de si mesmo. Segundo esse filósofo, a felicidade da pessoa humana reside na sua capacidade de se autodeterminar, de conduzir a sua “nau interior”. A ética de Epicuro propõe uma autogestão da vida interior de tal forma que seja possível ao homem se desviar do inesperado, da fatalidade externa, dos condicionamentos e da mecânica própria do mundo físico. Para tanto, é imprescindível que ele busque o esclarecimento, que cultive o amor à sabedoria, que se afaste da vida pública, onde predominam as turbulências, os antagonismos e as disputas, recolhendo-se ao que ele denominou de “jardim das delícias”. Aí, juntamente com aqueles que cultivam o mesmo ideal, em fraternidade lúcida e esclarecida, poderá construir um projeto pessoal e intransferível de felicidade que, na verdade, é um projeto ético pelo qual conquistará o bem, a serenidade, o prazer, a saúde espiritual. Em resumo, quando se trata do território humano, nenhuma força externa pode interferir em nossa felicidade porque apenas o homem, em seu espaço de autonomia, pode saber o que lhe faz feliz.

Você poderá me dizer: tudo isso não passa de um sonho! Pode ser que você tenha razão. Epicuro acreditava na força do imaginário, no poder do sonho no que se refere à realização da pessoa humana. Mas ele não queria sonhar sozinho, e você há de convir que um sonho coletivo tem muita probabilidade de realização, principalmente quando se trata do nosso bem verdadeiro, da nossa felicidade. Jamais poderemos ser felizes sozinhos, não é verdade? Aliás, as relações humanas estão no centro da discussão atual sobre o sentido da vida. Sabe por quê? Porque é somente na convivência com nosso semelhante que poderemos encontrar a resposta para a pergunta: existirmos, a que será que se destina? A redenção do gênero humano não está no “ego”, vem do outro, no exercício do amor, da compaixão e do perdão, por meio do qual somos incorporados à comunidade verdadeiramente humana.

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Meu amigo leitor, você vislumbra um outro caminho para a descoberta do sentido da sua vida? Como poderemos mudar a face tão feia do mundo no qual vivemos se não buscarmos refúgio em nosso “jardim das delícias”, onde, pelo cultivo do bem, do belo e do sagrado conquistaremos a nossa serenidade, a nossa paz, a nossa felicidade?

Sobre o autor

Conceição Castelo Branco

Sou formada em filosofia e pedagogia. Na verdade, sou uma eterna aprendiz que, aprendendo, também ensina. Sou uma educadora em construção. Nesse processo, descobri meus talentos. Ensinar e aprender foi um deles. Trabalhei com crianças como professora alfabetizadora. Tarefa difícil e desafiadora, mas também apaixonante. Trabalhei com adolescentes e jovens de escolas públicas e particulares de ensino fundamental e médio, realidades completamente diferentes, com desafios complexos. Nesse contexto, atuei como arte-educadora, vivência que me enriqueceu extraordinariamente. Trabalhei, enfim, com jovens e adultos na universidade pública, onde pratiquei o exercício da reflexão e da crítica com maior profundidade.

Durante algum tempo, prestei serviços na Secretaria Estadual de Educação, na área de currículo, planejamento educacional e formação de profissionais de educação. Constatei que, sem a experiência do magistério, o meu trabalho jamais teria repercussão no chão da escola. Fui consultora do Ministério de Educação em alguns trabalhos, entre eles na elaboração dos Planos Municipais de Educação do Piauí. Atuei também como conselheira estadual de educação, função que exige muito estudo e conhecimento da realidade.

Em dado momento de minha carreira, resolvi escrever um livro, no qual abordei os problemas e desafios de quem assume o magistério com compromisso e responsabilidade. Seu título: "Professor, sai da caverna". Foi publicado pela editora da UFPI. Paralelamente a essas atividades, fiz o curso de instrutora de Yoga, cuja prática mantenho até o momento em que vivo. Tenho outros projetos: escrever um outro livro (dessa vez com a participação de alunos) e trabalhar Yoga com crianças de uma escola municipal da periferia de Teresina, cidade onde moro. Talvez eu continue a sonhar até o fim da vida, porque, no fundo, sei quem sou e para que estou nesse mundo.

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