Esta estrofe inicial da música “Cajuína”, de autoria de Caetano Veloso, encerra uma questão essencial à trajetória do homem no mundo. Os filósofos gregos, em especial Aristóteles, e, posteriormente, São Tomás de Aquino, consideravam que todos os seres existem em estado de potência e ato, isto é, trazem consigo as condições de virem a ser. Trazem em si mesmos uma essência predeterminada que pode vir a realizar-se , segundo o fim que lhes é inerente. Por exemplo, uma semente traz, potencialmente, a capacidade de transformar-se numa árvore, uma criança tem em si a potência de ser um adulto. Assim, segundo essa concepção, o ser humano tem uma essência abstrata e universal que o distingue de todos os demais seres: o homem é um animal racional. Tal essência realiza-se, ou melhor, transforma-se em ato pela ação individual de cada ser humano.
Fazendo contraponto à concepção essencialista, o existencialismo do século XIX nega que a ação humana seja predeterminada por essa essência abstrata e universal, afirmando que a existência precede a essência. Isso significa dizer que o homem, na medida em que existe, constrói sua humanidade. Em outras palavras, a vida humana é um projeto em permanente construção, na proporção em que cada indivíduo exerce sua liberdade de agir e ser.
Deixando de lado os reveses que alimentam até hoje a discussão gerada por essas concepções, gostaríamos de tomar como ponto de partida uma constatação: o homem, o ser humano, existe. Ocupa um espaço e um tempo determinados, mas é diferente dos demais seres que vivem no mundo. Ele sempre teve uma percepção clara dessa diferença e, por isso, foi capaz de agir sobre a natureza e produzir cultura, entendida aqui no sentido amplo do termo.
Obviamente, o comportamento do ser humano, ao longo do temoi, deixa marcas visíveis de suas concepções, conhecimentos, hábitos e atitudes. Tais marcas demonstram sua capacidade de transformar o mundo e si mesmo, diante dos desafios da sua existência. Aliás, foram os desafios de toda natureza que permitiram ao ser humano passar pelos vários estágios de evolução, do “homo neanderthalensis” até o “homo sapiens” que, em sua origem, há cerca de 300 mil anos, caracterizava-se por sua capacidade de reconstruir simbolicamente o mundo, produzindo tecnologias para o domínio da natureza, criando novas modalidades de organização do trabalho e da sociedade, aprimorando sua alimentação e seu vestuário, inventando novas formas de comunicação por meio do uso da linguagem. A descoberta e o exercício dessas aptidões possibilitaram ao ser humano chegar até os dias de hoje. Portanto podemos afirmar que a capacidade simbólica e reflexiva fez do homem um ser diferente e especial em relação ao conjunto dos demais seres vivos que habitam o planeta Terra.
É isto, meu caro leitor: somos diferentes e especiais. Evoluímos muito e, com certeza, ainda evoluiremos. Nesse processo, quantas coisas maravilhosas já fomos capazes de inventar (e ainda inventaremos) para tornar nossa vida mais duradoura, aprazível e motivante! No entanto não podemos negar que, apesar de toda essa evolução, não nos sentimos plenamente seguros e felizes. Vivemos tempos conturbados, e isso afeta a nossa tranquilidade. Onde poderemos ancorar nossa vida? Todos nós desejamos ser felizes. Aliás, esse sempre foi o desejo da criatura humana. Porém onde estaremos nós buscando a tal felicidade? O que ela representa para nós? Será mesmo possível alcançá-la na vida terrena, diante de tantas adversidades? O que o estado de felicidade requer de nós?
Epicuro (um dos maiores pensadores éticos que viveu no século III a. C.) afirmava que o homem nasceu para ser feliz e para isso está destinado. Para ele, o sofrimento não determina a vida humana, mesmo o sofrimento físico. O homem não está à mercê das circunstâncias; ele é senhor de si mesmo. Segundo esse filósofo, a felicidade da pessoa humana reside na sua capacidade de se autodeterminar, de conduzir a sua “nau interior”. A ética de Epicuro propõe uma autogestão da vida interior de tal forma que seja possível ao homem se desviar do inesperado, da fatalidade externa, dos condicionamentos e da mecânica própria do mundo físico. Para tanto, é imprescindível que ele busque o esclarecimento, que cultive o amor à sabedoria, que se afaste da vida pública, onde predominam as turbulências, os antagonismos e as disputas, recolhendo-se ao que ele denominou de “jardim das delícias”. Aí, juntamente com aqueles que cultivam o mesmo ideal, em fraternidade lúcida e esclarecida, poderá construir um projeto pessoal e intransferível de felicidade que, na verdade, é um projeto ético pelo qual conquistará o bem, a serenidade, o prazer, a saúde espiritual. Em resumo, quando se trata do território humano, nenhuma força externa pode interferir em nossa felicidade porque apenas o homem, em seu espaço de autonomia, pode saber o que lhe faz feliz.
Você poderá me dizer: tudo isso não passa de um sonho! Pode ser que você tenha razão. Epicuro acreditava na força do imaginário, no poder do sonho no que se refere à realização da pessoa humana. Mas ele não queria sonhar sozinho, e você há de convir que um sonho coletivo tem muita probabilidade de realização, principalmente quando se trata do nosso bem verdadeiro, da nossa felicidade. Jamais poderemos ser felizes sozinhos, não é verdade? Aliás, as relações humanas estão no centro da discussão atual sobre o sentido da vida. Sabe por quê? Porque é somente na convivência com nosso semelhante que poderemos encontrar a resposta para a pergunta: existirmos, a que será que se destina? A redenção do gênero humano não está no “ego”, vem do outro, no exercício do amor, da compaixão e do perdão, por meio do qual somos incorporados à comunidade verdadeiramente humana.
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Meu amigo leitor, você vislumbra um outro caminho para a descoberta do sentido da sua vida? Como poderemos mudar a face tão feia do mundo no qual vivemos se não buscarmos refúgio em nosso “jardim das delícias”, onde, pelo cultivo do bem, do belo e do sagrado conquistaremos a nossa serenidade, a nossa paz, a nossa felicidade?