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Falando sobre a negritude: você sabe o quanto temos contribuído para a evolução da humanidade?

Três pessoas negras, uma mulher e dois homens, estão no foco da imagem. Eles levantam os seus punhos das mãos direitas no ar. Eles usam roupas pretas. Ao fundo, há um céu azul claro.
Alena Shekhovtsova / Corelens / Canva
Escrito por Márcia Leite

O continente africano, há muitos anos, traz para o mundo formas de pensar e de viver diferentes da imposta pelos invasores (não colonizadores) e venho instigar o leitor para este tipo de informação, que deixou de ser transmitida.

Outro dia, em uma tarde de forte calor, parei para me refrescar, beber algo gelado, comer uma comida leve, em um lugar agradável, em uma dessas cidades brasileiras, em pleno e gostoso verão. Pensava em quantas pessoas ainda têm a concepção de que indivíduos que ainda se encontram em situações de vulnerabilidade social ou continuam sem acesso à educação de qualidade e, consequentemente, a possibilidade de trabalhar em ocupações melhores e viver em condições mais dignas de moradia e com saúde plena, principalmente a comunidade negra, lutam contra problemas criados no passado e que ainda não foram corrigidos.

O discurso sobre a aplicação de ações afirmativas ser irrelevante tenta impor uma ideia de que, quando uma pessoa simplesmente tem vontade de crescer e se esforça, é capaz de chegar a qualquer lugar, por seu próprio mérito.
Vamos e venhamos! Isso é uma justificativa fraca diante das relações que acontecem em nosso mundo.

Lembrando um pouco da história negra, o fato de que a África foi invadida por países que não respeitaram a divisão do seu território, aumentando os diversos conflitos, que são inerentes à convivência entre humanos, depauperaram o continente africano e descaracterizaram as nações já constituídas por lá.

No continente, viviam povos com reinados e idiomas próprios, com cultura própria, com entendimento do mundo próprio, em que a Natureza era respeitada e não havia a conduta extrativista das riquezas naturais até a sua exaustão. A história mostra que houve interferência dos invasores no modo de relacionamento entre as nações africanas e a divisão do continente entre os países invasores foi o estopim para o agravamento dos problemas na região, que até a atualidade é retratada como área de muita pobreza, doença e fome.

Sendo a África o berço da civilização, tenho a certeza de que aquilo que querem vender como verdade, é uma manipulação da realidade, ainda com a ideia de que nós negros somos inferiores. Mas, então, por que o antigo Egito e todo seu conhecimento é cultuado até hoje? Aliás, a civilização egípcia está localizada na África e, na concepção kemética, a região era composta por maioria negra, antes que os gregos fossem lá beber da fonte de sapiência científica e cultural.

Um jovem negro está no foco da imagem. Ele inclina a cabeça, olha para cima e leva uma mão ao queixo, expressando a ideia de dúvida, de questionamento. Atrás dele, há um fundo lilás.
Prostock-studio / Canva

Encontram-se publicados estudos que descrevem como era a filosofia africana antes da chegada dos gregos e de como foi o descarte de uma linha de pensamento africana em prol de uma eurocentrada. Um deles foi feito por Rosa, em um trabalho recente, em 2017, em que se questiona a narrativa de que os negros da Antiguidade serviam apenas para trabalhos braçais e de subserviência, e seriam incapazes de produzir conhecimento filosófico.

Sempre me questionei sobre o surgimento da filosofia somente com os gregos, cujo início da civilização se deu há cerca de 2.000 anos a.C. e as primeiras civilizações africanas começaram a aparecer por volta de 8.000 a.C. Será que não havia produção de pensamento nesses povos, que os fizeram chegar até a atualidade, enfrentando diversos desafios e os fazendo desenvolver técnicas de sobrevivência, de sociabilização, de observação e de formação de conhecimento tecnológico conforme o tempo em que viviam?

Em um artigo publicado em 2017, por Castanho e Teixeira, pesquisadores da Universidade Federal de Uberlândia, afirma-se que as primeiras técnicas de agricultura e de criação de animais surgiram no período neolítico e, que coincidentemente, corresponde ao oitavo milênio antes de Cristo, nas regiões da Mesopotâmia, China e do Egito.

Partindo destes dois artigos científicos publicados, inclino-me a pensar que a tese de que nós, os negros, somos preguiçosos, não humanos, pouco inteligentes, é facilmente desconstruída quando mergulhamos na verdadeira história, aquela que não foi escrita e nem publicada por razão de conveniência.

Desde a Antiguidade, seguimos produzindo e promovendo inovações tecnológicas, que respeitam a Natureza, buscando o equilíbrio entre as fontes de riqueza e de sobrevivência e aquilo que pode ser extraído, assim como os povos originários da América.

Duas mulheres da tribo Masai do Quênia estão no foco da imagem. Elas estão sorrindo e usam roupas e colares coloridos.
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A invasão, divisão e exploração do continente africano instauraram o caos e muitas nações sofreram e sofrem até a atualidade. Mas existe um outro lado na África que não é divulgado com tanta ênfase quanto as mazelas pelas quais a população passa.

É uma união de países que se desenvolvem em todas as áreas. Recentemente na cidade de São Paulo, houve uma exposição de produtos de países africanos como Gana, Senegal e Etiópia na busca de parcerias para comercialização de seus produtos.

Alimentos, bebidas, livros, pacotes turísticos, entre outros produtos e serviços de um continente que tem grandes possibilidades, mas que são pouco disseminadas. Todo mundo perde quando ignora outras culturas.

Com estas informações, como pessoas, na terceira década do século XXI, ainda conseguem dizer que a meritocracia existe e que os negros reclamam da falta de oportunidade sem motivo?

Uma sociedade que literalmente despreza o que é feito por nós, que acha que sempre pode fazer melhor, que não leva em conta o modo de pensar africano e afrodiaspórico, que se acha no direito de desrespeitar a tradição negra nas escolas de samba, na música baiana, na religião de matriz africana (incluindo modificação seguida de apropriação de símbolos sagrados), no relacionamento coletivo e comunitário, pela devastação das famílias através da negação de acesso aos serviços essenciais e básicos de qualidade e, que mesmo com a elaboração de uma lei (Lei n° 10.639/2003) que torna obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-Brasileiras em todas as escolas do país, muitas instituições educacionais, doze anos depois, ainda insistem em ignorar esta determinação.

De nós, foi retirado tratamento digno ao sermos arrancados do continente, separados da família, batizados com outros nomes (os nossos eram considerados pagãos), tentaram apagar nossa memória, tentaram nos transformar em objetos, usaram dos nossos corpos como força de trabalho extenuante e sexualmente; em alguns países, fomos proibidos de tocarmos nossas músicas e instrumentos, de falarmos nossos idiomas, sendo forçados a aprendermos o idioma do invasor e cumprirmos o dever de incorporarmos alguns de seus costumes, porém, sem que nos fossem concedidos os mesmos direitos.

Quatro homens africanos estão no foco da imagem. Eles fazem uma apresentação ou dança típica da tradição do seu povo e carregam tambores sobre suas cabeças.
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Aliás, além da “Porta do Não Retorno”, localizada em Ajudá – Benin, os nossos ancestrais passavam por um ritual, dando voltas na “Árvore do Esquecimento”, como narrou Laurentino Gomes, em um dos três volumes da coleção Escravidão: “Ela era um Baobá que ficava na Rota dos Escravos … muito triste isso …”. As voltas no entorno da árvore eram para que os negros deixassem ali suas memórias e não as levassem na viagem para o desconhecido, carregados como mercadorias nos navios negreiros. Mas seguimos e vivemos superando todas as barreiras que continuam colocando em nossos caminhos. Provamos que não esmorecemos; provamos que não nos entristecemos. E se fugimos, é somente para recobrar as forças e a autoestima, para retornarmos mais fortes e confiantes.

Se não chegamos ainda no momento da igualdade, é porque continuam tentando nos impedir com políticas de cerceamento do direito de propriedade, do direito à educação e saúde de qualidade, do direito à moradia digna, do direito ao trabalho valorizado e bem remunerado, direito à justiça, sem que as chances de acesso ao que nos foi negado por tantos anos sejam minadas por meio de fraudes sobre a identificação étnica em oportunidades laborais e acadêmicas.

Continuam nos agredindo pela nossa etnia, nossa estética, nossa presença em lugares que antes nos proibiam de estarmos presentes, por nosso conhecimento, que a duras penas fomos buscar, pela nossa oralidade transmissora de sabedoria, pela nossa ancestralidade.

Saímos de um movimento macabro de exploração de mão de obra e de nossos corpos que perdurou oficialmente por 388 anos, mas que na realidade enfrentou outros impedimentos, por ser impossível encontrar trabalhos que nos permitissem cuidar de nossas famílias, sem que os adoecimentos fossem reduzidos, sem que os vícios não proliferassem, com a exclusão efervescente, sendo empurrados para as regiões periféricas, processo que nunca cessou, havendo hoje a chamada hiperperiferia, em que a maioria da população é negra e enfrenta situações dificílimas e de alta precariedade.

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A gentrificação nos atinge fortemente com os valores dos imóveis e do custo de vida sempre acima do que a população negra pode pagar. Mas a comunidade continua a viver, encontrando alegria nas pequenas conquistas e se reinventa, sem se esquecer do Sankofa que nos norteia pela busca da sapiência na nossa ancestralidade.

Querido leitor, com este texto eu repito a pergunta: “Você sabe o quanto temos contribuído para a evolução da humanidade?”

Foi então que um dos sacerdotes já de muita idade lhe disse:

“Ó Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois todos umas crianças; não há um grego que seja velho”. Ouvindo tais palavras, Sólon indagou: “O que queres dizer com isso?” “Quanto à alma, sois todos novos” – disse ele. “É que nela não tendes nenhuma crença antiga transmitida pela tradição nem nenhum saber encanecido pelo tempo”. (PLATÃO, 2011, p. 83).

Sobre o autor

Márcia Leite

Pós-graduada em Gestão Municipal, graduada em Farmácia e em Tecnologia em Comércio Exterior. Através de meu perfil multidisciplinar, busco instigar os leitores a entender que existem outras sabedorias e que é possível conviver pacificamente com todas elas, para atingir a paz coletiva e duradoura.